TAO TE CHING, o romance (Quinquagésimo primeiro limiar – O poder do Caminho)

A cidade do Cairo ainda não existia. O céu era como um teto enfeitado por inúmeras pequeninas lâmpadas multicoloridas. A lua despontava no horizonte, em um lugar onde o deserto parecia se dobrar. As pirâmides de Gizé mostravam impressionante imponência, refletindo nas pedras brancas de calcário a luz tênue das estrelas, dando a sensação de que se auto iluminavam. Sentado nos degraus da Esfinge, de frente para os monumentos erguidos pelos faraós, um homem as observava. Suas roupas de linho e seda mesclavam elegância com simplicidade. Um pequeno turbante, não a moda árabe, mas de acordo com a tradição dos antigos sacerdotes egípcios, me permitiram supor de que não se tratava de um mero turista. Sentei-me ao seu lado. Ele nada disse. Ficamos em silêncio por algum tempo até que comentei ser um viajante em busca da verdade. O homem continuou calado. Falei que tinha aprendido sobre a necessidade do autodescobrimento para ter acesso à verdade, mas trazia comigo a sensação de que faltava algo que eu não sabia o que era, como se fosse o elo a conectar o efeito à causa. O sacerdote, sem tirar os olhos das pirâmides, murmurou: “O Caminho gera a verdade”. Fiquei esperando que complementasse a ideia, porém, nada foi acrescentado. Argumentei que aquele raciocínio não fazia sentido. O homem se virou para mim e disse com a sua voz calma e cadenciada: “Gerar é dar existência, é conceber. Para gerar se faz indispensável que haja as condições necessárias para que algo surja onde antes nada existia. Assim como o solo necessita estar fértil para a semente germinar, precisamos estar amadurecidos para a verdade. Somente então o Caminho se manifesta. Do contrário, nada de novo surgirá. O entendimento e a vontade formam tais condições. A partir daí, o indivíduo se torna receptivo para gerar em si a estrada que o conduzirá à evolução fundamental. Passo a passo, o Caminho instrumentalizará o viajante através das situações cotidianas que o levarão a encontros, descobertas e conquistas pessoais. Tais situações se fazem presentes por todo tempo, mas enquanto não estiver pronto, o indivíduo não as perceberá. O que permanece invisível para alguns, está tangível para outros”.

Perguntei como eu deveria fazer. Ele explicou: “Ninguém é o que sabe. Somos aquilo que fazemos. Embora sejam frutos dos pensamentos que, por sua vez, sofrem influências dos sentimentos, somente a ação tem poder para alterar a realidade. Sem ação, a realidade consome o indivíduo até que ele desapareça”. Discordei. Naquela viagem eu tinha aprendido com um sábio que a verdade se modifica na mudança do olhar. O sacerdote concordou com um movimento de cabeça e esclareceu: “O aperfeiçoamento do olhar concede acesso à verdade. No entanto, apenas a ação cria a realidade”. Fez uma pausa para eu concatenar o arco filosófico que se iniciava e prosseguiu: “Lembre que a realidade é o limite extremo da verdade já alcançada pela consciência que, enquanto não for vivenciada no cotidiano através de um novo jeito de ser e viver, não ultrapassará a esfera abstracionista das ideias. Trata-se de um saber desperdiçado. Sem ação, a melhor ideia restará morta, a mais fina criatividade será desperdiçada, todo amor se perderá. A vida exige movimento. Na ação o indivíduo pode se nutrir ou se envenenar com a realidade, a depender do quanto a sua verdade está próxima da luz ou das sombras”. Interrompi para perguntar como eu poderia identificar a proximidade das minhas escolhas. O sacerdote esclareceu: “Verifique o quanto de força e equilíbrio, leveza e suavidade, estarão presentes quando tiver de lidar com as adversidades”. Tornou a fazer uma pausa antes de concluir: “Não esqueça que o movimento evolutivo é a transformação que se origina na consciência para depois se manifestar nas suas relações com toda a gente. Conhecimento sem ação equivale ao barco que desperdiça o mar por nunca desatracar do cais”.  

Questionei como as transformações se operam na prática. O homem esclareceu: “Quem eu sou me trouxe até aqui. Para ir adiante preciso me tornar alguém diferente e melhor. Necessito equacionar os problemas de maneira até então jamais imaginada para que possa alcançar inusitados resultados. O que me parecia impossível, se faz palpável se passo a viajar de modo nunca tentado. O nível de dificuldade da estrada se apresenta conforme o viajante a percorre; mudar o jeito de andar é o que modifica as condições do caminho”. Voltou o olhar para as pirâmides e disse: “As virtudes aperfeiçoam os movimentos do viajante. Tudo se inicia com o entendimento de que, para cessar com as dores, conflitos e sofrimentos, que furtam o melhor dos dias, existe a necessidade de alterar a maneira como cada pessoa se relaciona consigo mesmo e com o mundo. A viagem começa. Ao se enxergar com mais clareza, começará a ver tudo ao redor com maior nitidez. Por saber que o único poder legítimo que possui reside sobre as próprias escolhas, o viajante compreende que terá de as envolver com doses cada vez mais altas de amor e sabedoria. Aos poucos, o desequilíbrio do orgulho desparece diante da lucidez proporcionada pela humildade; as paixões descontroladas movidas pela vaidade abrem espaço para a serenidade típica da simplicidade; as mentiras inventadas para esconder o que não gostamos em nós, serão suplantadas pela sinceridade e pela coragem de nos reconhecer e aceitar, junto ao firme compromisso de nos transformar naquele que queremos nos tornar; o egoísmo se desmancha diante da beleza da solidariedade e da empatia”. Olhou para mim e concluiu: “Há muito mais. O autoconhecimento nos revela frações da verdade através das experiências oferecidas diariamente; a verdade nos mostra a imprescindibilidade das virtudes para as transmutações pessoais. Isto significa evolução. Por isso, o Caminho é sagrado”.

Indaguei se todos estavam obrigados a percorrê-lo. O homem sacudiu a cabeça e disse com veemência: “Ninguém está obrigado a nada”. Perguntei a razão de muitas pessoas não demonstrarem o menor interesse nessa busca tão valiosa. O egípcio me respondeu: “As multidões ainda precisam viver experiências de prazeres e poderes superficiais, pois, ainda acreditam nelas como sendo o principal sentido da vida; há muito regalo em se guiar por essas prioridades. Enfim, não estão prontos. Precisam se preencher de conquistas rasas até se darem conta do vazio profundo que os consome”. Fez um gesto com as mãos para ressaltar as palavras e falou: “Aqueles que percorrem o Caminho não andam por obrigação, mas por respeito a si mesmos. Embora linda, é uma jornada dificílima. Por sacrifício, ninguém conseguirá. Há de existir prazer e alegria durante toda a travessia. No respeito está a origem do amor-próprio, o autêntico combustível da vontade”. Pedi para que explicasse melhor. Ele foi didático: “O respeito nos ensina que as paixões, pessoas, coisas e situações podem nos oferecer momentos maravilhosos, desde que não nos dominem nem causem qualquer tipo de dependência emocional ou existencial. Ser dono das próprias escolhas, sem nenhuma influência indevida, seja quanto aos interesses alheios, seja em relação aos próprios medos e vontades mesquinhas é ato de elevado respeito por quem somos. Nem tudo que é confortável e permitido me faz bem ou me convém; isto se chama ética, um valioso e robusto pilar do desenvolvimento espiritual por aprimorar as diferenças entre o certo e o errado, a separar o bem do mal; ainda que autorizado por lei, não se deixar arrastar caso entenda indevido ou imoral aquele direito ou permissão. Trata-se de um primoroso código de conduta, cabendo cada indivíduo escrever o seu de acordo com o próprio desenvolvimento consciencial”. Olhou para as estrelas e continuou: “Saber a hora de ficar e partir, assim como deixar ir o que não cabe possuir, são modos de construir uma linda relação de amor consigo mesmo por toda dignidade, paz, felicidade e liberdade que proporciona. O respeito é uma poderosa maneira de amar e amar-se”.

Voltou a se virar para mim e alertou: “O Caminho é estreito e espinhoso. Nada há de fácil na construção de si mesmo, mas ninguém conseguirá erguer essa obra se não for por prazer. Terá que se encantar com a árvore que ainda adormece dentro da semente, do contrário, sucumbirá; faltará tempero, sal e gosto pela caminhada. Dias insossos são dias modorrentos e sacrificantes; o amor é avesso a isto. O amor transborda em alegria por se agigantar diante das grandes dificuldades”. Falei que ter prazer pela dor é masoquismo. O homem me corrigiu: “Não foi disso a que me referi. Todo o sofrimento é desnecessário, perdurando pelo exato tempo que durar a incompreensão do indivíduo sobre si mesmo; por isto a jornada de autodescobrimento, e as consequentes transmutações, conduz à verdade libertadora. Sofrimentos e medos serão deixados à margem da estrada na medida em que o viajante entender o equívoco e o despropósito de os carregar consigo”. Eu quis saber como isso funcionava. O sacerdote explicou: “Sofremos pela sensação de incapacidade em lidar com as adversidades e reveses da existência; tememos o desconhecido pela falta de nitidez sobre o que existe dentro e fora da gente; por não conseguirmos fazer a correta leitura das situações, seus necessários limites e infinitas possibilidades”. Perguntei como alguém poderia se identificar perante essa situação. A resposta foi imediata: “Sofrimentos e medos, sejam quais forem, são os sinais mais evidentes. No mais, impaciência, intolerância, desânimo e mau humor evidenciam desequilíbrios e fragilidades emocionais”. Interrompi para indagar como reverter esses comportamentos de autodestruição. Ele esclareceu: “À medida que nos aperfeiçoamos, substituímos o conteúdo da bagagem. O que não nos serve mais é deixado para a trás; as virtudes passam a ocupar esse espaço. As virtudes são instrumentos capazes de acender e intensificar a luz que orienta os passos e protege dos perigos. Ao acrescer novas virtudes, nossas decisões se revestem em força e equilíbrio, fluímos com leveza e suavidade cada vez maiores. Com a luz, vem a claridade. Descortina-se camadas mais profundas de compreensão sobre a verdade; experiências mal elaboradas anteriormente, causas de todos os sofrimentos, ganham condições de serem reelaboradas com os diferentes ingredientes trazidos pela verdade aperfeiçoada. As dores mais cruéis se desfazem diante de um olhar cada vez mais aprimorado; surge um inusitado e criativo jeito de viver que, por consequência, altera a realidade. O medo desaparece. O refinamento da consciência aliado a regeneração de si mesmo concede sabor à vida e traduz o poder do Caminho”.

Eu quis saber se teríamos como identificar um viajante que já tenha realizado a travessia além dessa curva. O egípcio disse sim com a cabeça e esclareceu: “Ele produz sem se apropriar. Trata-se de um atributo das almas livres. Uma característica daqueles que estão mais interessados nos benefícios gerados pela obra do que na fama ou na fortuna que ela possa proporcionar. A determinação em transformar vidas semeando o amor por onde passar desmanchou o último resquício de egoísmo que havia dentro dele. Está mais interessado na cura do que nos royalties, na utilidade do que no luxo, na luz do que no brilho. Interessa-se mais pelos efeitos da obra do que pelo registro da autoria”.

O homem prosseguiu: “Ele age sem exigir. Fazer sem cobrar nenhuma contrapartida por suas ações é outro atributo das almas libertas pelo Caminho. Agem pelo bem semeado, pelo amor compartilhado, pela luz oferecida; o amor não exige nada em troca, a luz nada perde por iluminar quem está ao redor. Inexiste interesse subliminar. O amor não é negócio. A vitória na virtude da ação praticada, sem qualquer dependência por nenhum resultado. Cada gesto contém a essência dessa conquista pessoal”. Fez uma pausa antes de continuar a elencar as características: “Ele ensina e acolhe sem dominar. Os andarilhos do Caminho jamais escravizam ou aprisionam ninguém através de eventual supremacia financeira, profissional, emocional ou intelectual. Tampouco querem expectadores, seguidores, discípulos, adoradores ou servos. Não exercem nenhum poder sobre quem quer que seja, pois sabem que qualquer domínio sobre outra pessoa, além de ilegítimo e sombrio, criará uma prisão para si pela vigia e controle constantes que deverá manter sobre o prisioneiro. O dominador carrega o dominado na bagagem, um peso incompatível com a liberdade e dignidade necessárias à travessia”.

Ainda não havia terminado: “Ele ajuda sem fazer alarde. Todo bem deve ser manso e silencioso. Quem divulga o bem praticado, não se move por amor. O faz por orgulho, vaidade ou outros interesses menores. Estes indivíduos, apesar do auxílio prestado, nada sabem sobre o Caminho. Ainda não entendem as virtudes, que são mansas para serem poderosas, são silenciosas para se tornarem eficazes. Fora da mansidão resta a subjugação e a revolta; fora do silêncio resta a dívida incabível pelo bem realizado. O amor jamais emite promissórias”. Em seguida, voltou os olhos para as pirâmides e murmurou: “Eis o mistério das virtudes”. Perguntei sobre qual mistério se referia. O homem esclareceu: “O enigma reside na razão de as virtudes se erguerem sob fundamentos opostos aos valores de poder e grandeza ainda procurados e ostentados pelas multidões. O genuíno tesouro se esconde onde ninguém o procura; trata-se de uma riqueza que nada compra, mas que permite possuir o que de mais valioso existe: a si mesmo sem qualquer interferência fora do eixo do amor e da sabedoria. O viajante confia no que já sabe e segue em frente; não se deixa deter pelos rugidos nem ruídos do mundo; as multidões nada sabem sobre ele. Não se importa que ninguém queira acompanhá-lo, importa que ele sabe para onde vai. Caminha sem fazer barulho, segue em paz”. Em seguida, finalizou: “A virtude retira o excesso e preenche o vazio. Trocar pernas por asas sintetiza o poder do Caminho. Os voos do viajante têm o alcance das suas virtudes”.

O sacerdote egípcio pediu para eu o acompanhar. Andamos até a maior das três pirâmides em absoluto silêncio. Paramos diante de uma entrada fechada por uma enorme porta de cobre, na qual hieróglifos dispostos em círculo formavam uma enigmática mandala. Perguntei se eu deveria entrar. Ele balançou a cabeça afirmativamente. Agradeci a conversa e ao me aproximar da entrada, um portal se abriu.

Poema 51

O Tao gera,

A ação cria,

As virtudes aperfeiçoam.

Por isso, o Tao é sagrado.

Aqueles que o percorrem,

Não andam por obrigação,

Mas por respeito.

A luz orienta os passos,

Protege dos perigos,

Concede sabor à vida.

Produz sem se apropriar,

Age sem exigir,

Ensina sem dominar,

Ajuda sem fazer alarde.

Eis o mistério da virtude.