TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Décimo sexto limiar – A grande arte)

A capela estava em construção. Era a maior que eu já tinha visto. Depois de pronta, fiz um cálculo rápido, caberiam mais de mil pessoas lá dentro. Um andaime de madeira subia até o teto, onde um homem de meia-idade, deitado, pintava um enorme afresco. Encantado com o que via, me distrai e tropecei em uma lata com pincéis. O barulho chamou a atenção do pintor que, ao olhar para baixo, sorriu. Acabara de encontrar os pincéis que procurava. De modo gentil, pediu para que eu os entregasse. Subi o andaime. Perguntei o que ele pintava. Sem desviar os olhos da tarefa, disse: “A criação da vida”. Comentei sobre a dificuldade do tema. O artista deu de ombros, como quem diz nem tanto, e acrescentou: “Somos criador e criatura da nossa própria criação. Cada pessoa é a exata obra de arte que foi capaz de criar. A vida é a genuína matéria-prima da Grande Arte que se traduz na obra de si mesmo. Para tanto, seja em si a constante criação através de transmutações sem fim. Assim como palavra e papel; pincel, tinta e tela, os dias e as escolhas definem o artista e esculpem a arte de uma existência. Tudo mais, como poesias e afrescos, por mais maravilhosos que sejam, e são, não passam de observações sobre a Grande Arte”.

Pedi para aprofundar o raciocínio. Ele fez de bom grado, como se aquela conversa o ajudasse a se entreter: “Viver é a manifestação da obra. Conviver é o aperfeiçoamento do artista. Uma tarefa simples que, no entanto, exige percepção e sensibilidade artística. Somente assim é possível entender a magia da transformação do artista como a verdadeira arte”. Falei que não tinha entendido. O homem explicou: “Para conviver é preciso ir além de onde está para encontrar alguém em lugar que nunca estiveram. Não falo do mundo, mas da alma. Isto se denomina transmutação. Não há evolução sem transformação. Evoluir é amar mais e melhor. As diferenças pessoais, quando bem aproveitadas, se tornam a melhor técnica dessa arte”.

Comentei que a aquela teoria me parecia bem complexa. Ele ponderou: “Sim e não. Nada é mais complexo do que o entendimento sobre si mesmo. Compreender quem não somos é um passo primordial de intensa dificuldade. O traço inicial de tinta na tela se inicia quando o indivíduo toma a decisão sincera e corajosa de se conhecer; as verdades que esconde e as mentiras que conta, na vã tentativa de se enganar sobre quem ele é. Então, deixa de ser tudo aquilo que poderia se tornar. A amplitude da liberdade da mente e a profundidade da dignidade do coração se traduzem em felicidade, paz e amor. O convívio com o mundo, além de alegre, precisa estar entrelaçado com a serenidade do convívio consigo mesmo, sem os quais nunca entenderá o movimento essencial da vida”.

Fez uma breve pausa antes de prosseguir: “Muitos confundem correria com movimento. De nada adianta um arqueiro lançar muitas flechas enquanto não conhecer o alvo. O segredo está em ouvir o silêncio, uma fonte inesgotável de recursos por se tratar da estrada que o conduzirá ao âmago do ser, lugar onde o equilíbrio e a força o aguardam. A quietude é a origem do movimentopor orientar a direção. Então, um caminho se apresenta. Do contrário, haverá apenas impulso e instinto primitivo; isto confunde as pessoas que, por acreditarem se mover, em realidade, estão paradas. É impossível conhecer a si mesmo sem mergulhar em silêncio para quietar a mente e o coração. Somente assim é possível ouvir a própria voz. Enquanto reagir nos reflexos das próprias incompreensões, não haverá a libertação das inquietações, sofrimentos e agonias. Para esses, o convívio se prolongará como fonte de eternos conflitos. Intrínsecos e extrínsecos. O mundo parecerá um lugar desagradável para viver. Tudo que me incomoda significa algo que desconheço em mim”. Perguntei como fazer para saber quem eu era. Ele explicou: “Para começar, preste atenção às suas reações. Elas estabelecem o quanto você já se pertence”.

Como me pertenço? Eu não tinha compreendido. Sou dono de mim, afirmei. O artista explicou: “Existem graus de pertencimento. Na medida que você expande a verdade, a realidade se amplia, aumentando as possibilidades de escolhas do ser e no viver. Então, se consegue afastar as influências do mundo que aprisionam a mente, assim como dominar as emoções que o devoram o coração. Nem sempre é simples identificá-las pelos enganos que provocam e delícias que oferecem. Tudo que ignoro em mim são as causas das minhas quedas e dores. Enquanto não me pertencer por inteiro, serei traído por alguém que sou”. Piscou um olho e me provocou a pensar: “Já se deu conta que você não se pertence quando não tem a mente livre e o coração sereno? As ideias ficam limitadas e as emoções impulsionam à destruição. Quando acontece, quem está no controle da sua vida?”.

Atônito, tornei a pedir para que explicasse melhor. O pintor esclareceu: “Existe um Caminho. Não é uma estrada comum, mas uma jornada evolutiva. Há leis que o regem, não a dos homens, mas as do universo. São inexoráveis, ora doces, ora rigorosas, repletas de sabedoria, amor e justiça. Se algumas vezes se mostram severas, jamais atuam com a mera intenção de punir. Educar é o objetivo intermediário; a função final é torná-lo um mestre da Luz. Sem enfrentar a escola do casulo a lagarta não conquistará as asas”. Falei que gostaria de conhecer essas leis. O homem ensinou: “Observe a manifestação das pessoas, perceba o fluxo da vida. Então conhecerás a Lei, um código que trata a todos sem privilégios nem favorecimentos, não importa se rei ou plebeu”. Comentei que havia muito sofrimento no mundo. Ele pontuou: “A dor é uma escolha, por mais absurdo que possa parecer. O sofrimento é uma enfermidade da alma que se recusa a aceitar o elixir das virtudes. Em verdade, Lei protege, ilumina e impulsiona.Caminhamos através das virtudes agregadas; avançamos a cada fino ajuste na arte de si mesmo. cada dia, um pouco mais próximo da verdade.Ninguém se torna um mestre por acaso, ninguém perde sem justo motivo; o amor nunca é em vão. Tudo mais são meros prédios de argamassa e pedras que trocam de mãos até se tornarem ruínas”.

Eu quis saber de qual maneira a verdade, tão exaltada havia pouco, se encaixava nessa via evolutiva chamada de Caminho. O artista foi didático: “A verdade desperta a Luz,que afasta a escuridão,o medo e o mal que têm na ignorância o terreno apropriado para espraiar as suas influências e poder. Não falo dos livros que nunca leremos, mas do quanto desconheço daquele que sou. Do egoísta que há em mim que, por não perceber, mantém árido o solo onde o amor há de florescer. O poder está na mente, mas distante do coração nada me resta. Sabedoria sem amor é a sofisticação do mal. A escuridão, o medo e o mal habitam em mim. O mundo está repleto de perigos, mas sou eu quem mais me prejudico, todas as vezes que escolho por vaidade, orgulho, ciúme e ganância ao invés de me orientar com humildade, compaixão e simplicidade. A verdade que liberta é aquela que me torna dono de mim, ilumina as minhas sombras internas como único meio de me mostrar os equívocos e, assim, fazer com que eu entenda o poder que tenho em desmanchar todos os medos e sofrimentos que me corroem os dias”.

Fez uma pausa, pediu por outro pincel, e prosseguiu: “O Caminho me ajuda a separar as impurezas, a eliminar aquilo que não mais quero em minha vida. Ao depurar o fel sobrará apenas o mel. Ao dissolver o mal restará a pureza do bem.Não usarei mais a fraude ou coação, em qualquer das suas várias espécies, como instrumentos de conquistas. As virtudes não mais me permitirão os enganos típicos das sombras. Aos poucos, me transformo. Sou eu, mas sou outro; mais sábio e amoroso, mais forte e equilibrado. Então, o mundo se torna um bom lugar para se viver”. Deu de ombros e salpicou: “Faz parte da arte”.

Em seguida, prosseguiu: “Essa integração se intensifica ao ponto de o sábio se fundir ao Caminho. Preste atenção, os autênticos sábios nunca estão em evidência; como se desaparecessem na paisagem em sequências de múltiplas transmutações virtuosas, como consequência da indispensável humildade e simplicidade típicas da Luz”. Perguntei quais os requisitos necessários para se candidatar como um andarilho dessa estrada tão luminosa. O pintor respondeu: “Vontade, coragem e amor-próprio. Portanto, cada um depende apenas de si mesmo. A viagem rumo à verdade, embora seja sem fim, aos poucos, concede ao viajante um incomensurável poder manifestado em equilíbrio e força. Nem mesmo a morte representará uma ameaça, mascompreendida como apenas outro portal de Luz. Assim é com todos que se dispõem a atravessar o Caminho”.

O artista pintava as mãos de dois homens se afastando. Perguntei o significado. Ele comentou: “Na verdade, podem estar se afastando ou se aproximando; estar em busca da verdade ou à margem dela. São as mãos de Deus se oferecendo a todos nós, sem qualquer distinção. Recusá-las é um direito; aceitá-las também. Ele se aproxima por intermédio das mil espécies diferentes de amar manifestada através de cada uma das virtudes; afastar-se delas é permanecer em queda. Integrar-se ao todo é parte da autêntica arte. O que o mundo exalta como arte é apenas ilustração com tinta e pincel”.

Em seguida, me apontou para o afresco pintado na parede sobre o altar. Disse que em breve seria apagado para dar lugar a uma nova pintura, na qual abordaria a transição planetária, assim que terminasse a do teto. Sugeriu que eu a examinasse de perto, enquanto ainda era possível. Quando me aproximei, o afresco retratava uma estrada com o sol nascente ao fundo. Segui através dela.

 

Poema Dezesseis

 

Seja em si a constante criação.

O silêncio é uma fonte inesgotável de recursos.

A quietude é a origem do movimento.

Observe a manifestação dos dez mil seres.

Perceba o fluxo da vida.

Então, conhecerás a Lei.

A Lei protege, ilumina e impulsiona.

A cada dia, um pouco mais próximo da verdade.

A verdade desperta a Luz,

Que afasta a escuridão,

O medo e o mal.

Restará a pureza do bem.

Assim, o sábio se funde ao Caminho.

Nem mesmo a morte representa uma ameaça.

Apenas outro portal de Luz. 

3 comments

Magnum março 22, 2022 at 11:17 pm

Obrigado por mais um maravilhoso texto. Cada texto que leio traz um pouco mais de luz para o meu caminho. Gratidão.

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Fernando março 25, 2022 at 1:19 am

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas, sem fim…

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Terumi março 30, 2022 at 1:15 am

Gratidão 🙏

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