TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Décimo quarto limiar – A bagagem do viajante)

O vento parecia a favor. Estufadas, as velas brancas com a cruz templária vermelha impulsionavam a nau com rapidez. Logo atrás, duas velozes caravelas formavam a esquadra. Marinheiros conversavam ao mesmo tempo que realizavam seus serviços. No convés, um homem encostado na murada, olhava o infinito como se pudesse ver além do alcance dos seus olhos. Aproximei-me e fiquei em pé ao seu lado. A sensação do vento no rosto e do gosto salgado da maresia nos lábios eram importantes para me ancorarem naquele trecho da viagem. Não as dos navios, mas a minha em particular. Ficamos sem dizer palavra por algum tempo até que perguntei aonde íamos. O comandante afirmou: “Para as Índias”. Fez uma pausa, deu de ombros e considerou: “Ou qualquer outro lugar aonde o oceano nos levar”. Comentei que deveria ser ruim viajar sem ter noção do destino. O homem ponderou: “Alguém conhece o próprio destino? Só os tolos acreditam que sim”. Tive de concordar com ele, que prosseguiu: “Viver é como se aventurar por mares desconhecidos. Entender o oceano é como compreender o Infinito”.

Falei que não tinha entendido, o capitão explicou: “Na primeira fase da existência, aprendemos a ler o mundo por intermédio dos cinco sentidos básicos. O toque, o gosto, o aroma, o som e o olhar são as maneiras como fazemos a leitura de todas as coisas. É um estágio sensitivo, propício as noções elementares de grande e pequeno, doce e azedo. Em um segundo momento, começamos a usar as palavras para descrever e definir o mundo ao redor, pois temos a necessidade aprisionar o conhecimento para nos deleitar com o poder que ele representa. É a fase intelectiva, na qual muitos se orgulham de si mesmo por acreditarem compreender o mundo. Mais grave, creem que isto concede o saber sobre a vida e o Absoluto”.

Sem tirar os olhos do horizonte, argumentou: “Como descrever algo sem fim? Aquilo que não se consegue ver, ouvir nem tocar causa confusão no povo. Contudo, os falsos profetas se enganam quando acreditam ter respostas para todas as perguntas. Fiam-se no poder do intelecto para explicar além da capacidade que possuem. Como não conhecem o significado do Infinito, mentem para eles mesmos. Assim, enganam a todos. Palavras não servem para descrever uma forma sem forma”. Sorriu como quem se diverte com a travessura de uma criança e comentou: “Pegam as Escrituras, enchem o peito de orgulho e repetem as letras escritas dizendo que somos a imagem e semelhança de Deus”. Fez uma pausa para prosseguir: “Acreditam-se sábios por se creditarem tal saber, então, juram conhecer o rosto de quem está além de qualquer corpo físico. Somos como Deus, não nas tintas ou na aparência, mas na essência que me anima e no potencial de construção da obra. Aproximo-me de Deus em imagem e semelhança à medida que desenvolvo em mim cada uma das Suas múltiplas virtudes. Tenho-as apenas em semente. Fazer com que floresçam é a bagagem do viajante”.

O comandante apontou para o mar e disse: “No conforto dos seus castelos, a realeza me pergunta como são os oceanos. Pedem para que os engarrafe para que possam conhece-los. O oceano não cabe na garrafa, o pequeno conteúdo do limitado vasilhame não traduz a dimensão do incomensurável. Da mesma maneira, os incautos tentam entender aquilo que está além das suas capacidades. Por ora, aceite a infinitude do oceano e navegue em direção ao poente. Aperfeiçoe a bagagem, deixando-a mais leve a cada dia. Isto basta. Não procure no mundo aquilo que não está lá. Indo ao seu encontro não encontrará nenhum rosto. Seguindo-o, não verá qualquer rastro. O destino é o enigma do navegante, entender o destino compreender a dificílima tarefa de conhecer a si mesmo. Então, o finito se funde ao que não tem fim”.

O comandante apontou para o sol à Oeste e quis saber: “Dizem que terríveis monstros nos esperam nas ultimas fronteiras dos oceanos, mas o sol é o único dragão, a luz que persigo todos os dias sem jamais conseguir alcançar. As estrelas são minhas guias, mas também não posso tocá-las. Isto me ensina sobre a sutileza das verdadeiras riquezas. Fazem-me compreender que a felicidade não está nas comemorações estonteantes, nas festas organizadas pelos reis, nas negociações dos doges de Veneza nem barulho dos fogos de artifício. A felicidade surge quando intensifico a Luz em mim. Na superfície, a Luznão possui brilho ou ruído. As virtudes não são espalhafatosas nem barulhentas. Nas profundezas nada tem de sombrio.Ao contrário do que se imagina, não se chega à Luz sem um mergulho abissal onde as sombras se escondem em mim. Ao enfrentá-las me deparo com verdade; então, me elevo. Ao encontrar a minha alma, encontrarei também a alma do mundo”.

Deu de ombros e murmurou: “São muitos os enganos. Para desvendá-los se faz necessário diferenciar o sentir do sofrer; compreender que ter compaixão não é sentir pena; conhecer a intensidade da verdadeira Luz para não confundir com o efêmero brilho das sombras. Apenas se descobre a força do amor quando cansamos de esperar pelo amor e vamos ao mundo oferecer o mesmo amor que sempre sonhamos em receber”.

“Todos esses enganos são as raízes da verdade.Um sábio floresce quando se torna capaz de encontrar o mestre que se esconde por trás dos seus próprios erros. Iluminar a escuridão do mundo só é possível a partir do momento que se compreende a razão dos próprios sofrimentos e aprende como desmontá-los”.

Olhou para mim e disse: “O Oceano é o meu Caminho. Não há início nem existe fim. Esse é o espírito do Oceano”. Questionei se nada de verdadeiro havia. Ele voltou os olhos ao horizonte e segredou: “Existe a bagagem”. Fez uma pausa como se escolhesse as palavras adequadas e esclareceu: “A bagagem define a viagem. Para mudar rota é preciso modificar a bagagem”. Fez um breve silêncio e filosofou: “A bagagem determina o destino, os ventos e as correntes marítimas. Não se consegue atravessar o oceano com a bagagem errada”. Eu quis saber ao que ele se referia. O comandante concluiu: “Eu sou minha bagagem”.

O navegador fez um movimento com a mão; do Sol se fez uma mandala. Fechei os olhos e me deixei navegar.

 

Poema Quatorze

 

Aquilo que não se consegue ver, ouvir nem tocar

Causa confusão no povo.

Palavras não servem para descrever uma forma sem forma.

Indo ao seu encontro, não verás nenhum rosto,

Seguindo-o, não encontrará qualquer rastro.

Na superfície não possui brilho,

Nas profundezas nada tem de sombrio.

Esses enganos são as raízes da verdade.

Não há início nem existe fim.

Este é o espírito do Tao.

 

4 comments

Terumi fevereiro 12, 2022 at 1:43 pm

Gratidão 🙏

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Fernando fevereiro 13, 2022 at 7:02 pm

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas, profunda e sem fim…

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Leticia Fonseca fevereiro 20, 2022 at 1:28 am

“Apenas se descobre a força do amor quando cansamos de esperar pelo amor e vamos ao mundo oferecer o mesmo amor que sempre sonhamos em receber”. Quanta sabedoria em uma só frase. Gratidão!

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Prislaine Cordova julho 15, 2022 at 6:09 pm

“Um sábio floresce quando se torna capaz de encontrar o mestre que se esconde por trás dos seus próprios erros.”

Seus contos tornou-se minha religião, é incrível como é necessário e transformador uma dose diária de seus contos. Você é luz e eu agradeço por compartilhar tamanha sabedoria de forma tão didática conosco

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