MANUSCRITOS IV

Plenitudes – a paz

O pacato vilarejo chinês estava irreconhecível. Parecia que todos os moradores estavam reunidos na única praça do local. A maioria tinha os ânimos exaltados; alguns falavam alto, tinham as feições transtornadas. Dois homens discutiam e foram afastados para não se agredirem fisicamente. Depois eu soube que eram amigos de longa data. Outro homem subiu em um banco de pedra para discursar. Embora eu não entendesse o que ele falava por causa do idioma, percebi o tom inflamado. Um grupo crescente se aproximava em apoio, com palmas e palavras de incentivo. À medida que eu seguia pelas ruas tortas do vilarejo o barulho diminuía. Quando entrei na casa de Li Tzu, o mestre taoísta, tive a sensação de estar dentro de uma bolha de paz. A quietude, o jardim de bonsais, o perfume dos incensos, transmitiam uma agradável sensação de tranquilidade. Não sem razão, certa vez Li Tzu me disse que uma casa costuma refletir a alma dos seus moradores. Ele tinha terminado os exercícios de ioga e meditava como fazia todos os dias bem cedo antes de as aulas começarem.  Para não interromper, fui para a cozinha. Em cima da mesa havia duas xícaras e um bule fumegante de chá. Ele me esperava conforme combinamos; sorri para mim mesmo. Sentei-me. Enquanto eu me servia, o mestre taoísta entrou e se acomodou à minha frente. Bebemos em silêncio até que eu lhe perguntei se sabia da confusão que acontecia na praça. Ele explicou que tinha chegado a notícia de que o governo planejava construir uma autoestrada cujo projeto obrigava a desocupação total do vilarejo. Perguntei se todos teriam que deixar as suas casas. Li Tzu confirmou com um balanço de cabeça. Esbravejei diante do absurdo. Como tirariam aquelas pessoas de suas casas? Muitos viviam ali por toda uma existência. Era uma violência inominável, exclamei. O mestre taoísta apenas maneou a cabeça como se talvez eu estivesse certo em meu ponto de vista; talvez não, ou houvesse um exagero em meu olhar. Ao perceber as feições serenas de Li Tzu, questionei se ele não sentia medo da remoção, caso acontecesse, pois obrigaria em uma enorme mudança na sua vida. Com o habitual tom calmo de sua voz, ele disse: “O medo é o ladrão da paz.” 

Perguntei se ele não se uniria ao demais moradores em protesto à construção da estrada. Afinal, a vila estava situada naquele local há séculos. O mestre taoísta respondeu: “Ainda não se tem certeza sobre a veracidade da notícia, qualquer movimento agora pode se revelar prematuro. Note que a maioria dos nossos temores do passado nunca aconteceram; sofremos desnecessariamente. No mais, preciso ter em mente que tudo muda o tempo todo. Mudam as pessoas, as cidades, a maneiras de se relacionar, os olhares sobre a vida, as posturas quanto ao mundo. Eu também mudo o meu jeito de ser e de viver. Muda o meu corpo e a bagagem que carrego; eu me transformo. É necessário que seja assim para prosseguirmos no processo evolutivo. Nem sempre as mudanças estão ao meu gosto ou me serão confortáveis; isto costuma acontecer quando me mantenho por muito tempo avesso às transformações; então, a vida me empurra para que eu siga. No entanto, se eu entender que tudo aquilo que acontece é para o meu bem, me permito sair do lodo da estagnação estimulada pela vitimização, típica de quando somos contrariados, e início uma nova jornada. Cresço. Nesta sintonia, na renovação dos ciclos da vida, o Caminho volta a se apresentar para mim. Sigo. Aceitar a mudança é entender e se encantar com a beleza oculta da vida. Haja o que houver. Assim semeio a paz em mim.”

Discordei de imediato. Falei que temos de nos posicionar em relação aos fatos que nos atingem. Ele ponderou: “Sem dúvida, sempre com a preocupação de abranger todos os lados e questões envolvidos. Principalmente, sem rasgar o código de ética pessoal. Dizer simao que acho certo e nãoa aquilo que considero errado. De maneira clara e modos serenos.” Em seguida, argumentou: “Contudo, há momentos na existência que os movimentos do mundo nos atingem como uma tempestade em alto-mar. Não há como evitar.” Pausou antes de concluir: “É disso que falo. São nessas horas que precisamos de um espírito amadurecido, para que mesmo diante dos conflitos inerentes à vida, a paz permaneça firme na alma. Para tanto, não podemos esquecer que os conflitos são importantes impulsionadores da existência e inegáveis mestres dos segredos da vida.”

“Ninguém deseja pela tempestade. Contudo, o bom marinheiro sabe que ela é uma excelente oportunidade de conhecer mais sobre o mar e sobre o próprio barco. Apesar das possíveis avarias, se souber aproveitar o tormento, ele se tornará um navegador melhor a cada dia. Irá mais longe”. Interrompi para dizer que sempre há o risco de um naufrágio. Li Tzu explicou: “É verdade, mas também sempre haverá uma nova oportunidade para se lançar ao mar. Em diferentes condições, às vezes em um barco mais simples, noutras em travessia solitária. Será o mesmo mar, , mas outras águas; o mesmo marinheiro, porém, agora, um marujo que sabe ser capaz de sobreviver aos temporais. Assim germina a paz.”

Olhou-me profundamente e indagou: “Qual o seu maior medo?”

Falei que nunca tinha pensado nisso, mas assim como todos, eu temia me tornar vítima da violência, da traição, de um acidente inesperado, de passar por dificuldades financeiras, de ter uma doença grave, de enfrentar uma separação indesejada ou de ver uma pessoa amada sofrer. Li Tzu balançou a cabeça em anuência e disse: “Sim, esses são os medos mais comuns. Situações pelas quais todos talvez enfrentem um dia. Conseguimos evitar alguns desses perigos, não todos. Por mais prudente que seja uma pessoa não poderá se esconder dos riscos inerentes a uma existência plenamente vivida; do mesmo modo não será permitido escapar de um desastre, seja material, seja emocional. Como lições inevitáveis, eles se encontram fora da esfera de nossas escolhas. Ao menos, as escolhas conscientes.” Fez uma breve pausa e acrescentou: “Lembre que, algumas vezes, a vida precisa nos desequilibrar para que possamos avançar. Não raro, o caos costuma ser a etapa anterior à evolução.” 

“Sentimos alegria ao ganhar. Entretanto, o medo de perder furta a paz da conquista. Tudo aquilo com o qual a sua mente não estiver harmonizada em perder não lhe trará paz ao ganhar.” 

“Enquanto eu tiver medo de perder o dinheiro que ganhei, a casa que construí, o emprego que tenho, a mulher com quem casei, a saúde que me mantém, a partida de um ente querido para outra esfera de existência ou qualquer outro prejuízo, não conseguirei usufruir dessas as conquistas em verdadeira paz. As vitórias serão aparentes, pois se mostrarão frágeis, inconsistentes e rasas. Frágil pela ilusão de eu desejar como eternas as coisas efêmeras do mundo; inconsistente por eu teimar em dominar aquilo que, por estar além de mim, não me cabe controlar; rasa como toda a conquista que não me conduz à paz.”

“Sem deixar de aproveitar, aceite a transitoriedade das coisas do mundo; deixe-se maravilhar com o incomensurável poder que você tem em transformar a sua própria vida e se encante com o intangível. As únicas conquistas definitivas cabem na bagagem que levará consigo quando seguir ao infinito. Todo o resto, apesar de sólido, se desmancha no ar. Ao entender e aceitar isso a paz será verdadeiramente sua. Ninguém poderá tomá-la das suas mãos; ela será inexpugnável em seu coração.”

“Como as demais plenitudes como a felicidade, a dignidade, a liberdade e o amor, a paz não estácontigo; a paz éconsigo. A paz não depende de nada nem ninguém além de você mesmo; a paz é um jeito de ver, ser e viver a vida. A paz não está disponível na prateleira de um mercado nem dentro da cápsula de um remédio; ela nada tem a ver com a sua conta bancária, com o cargo que ocupa na empresa, tampouco está protegida por detrás dos muros altos de uma mansão qualquer. A paz está escondida nos jardins da sua alma. Enquanto você continuar brigando consigo mesmo, mantiver os desejos do ego e as necessidades da alma em renitente batalha interna, a paz se manterá distante”. 

Eu quis saber como era possível viver sem medo. Li Tzu explicou com a simplicidade que lhe era característica: “O medo é uma sombra. Como as demais sombras, o medo é inerente à natureza humana. Todos sentimos medo. Dentro de qualquer pessoa transitam os melhores e os piores sentimentos; o importante é saber o que fazer com cada um deles. Este aprendizado nos define e transforma. Assim como iluminamos o orgulho através da humildade, o medo se espanta com a esperança, se desmancha com a coragem e se transmuta com a fé. Para cada sombra há sempre a lanterna de, ao menos, uma virtude. A esperança não brota da ingenuidade, a coragem não deve nascer de um ato de desmedida irracionalidade nem a fé deve se fazer cega, ao contrário, surgem da perfeita sabedoria em entender como funciona o universo e para onde se movimenta a vida.”

“As virtudes guiam, a consciência ilumina e as escolhas nos conduzem na estrada rumo às plenitudes.”

Ele tornou a usar a metáfora do barco e do mar: “Apenas naufrago diante de uma tempestade se a tripulação se amotina contra o capitão.” Falei que não tinha entendido. O mestre taoísta foi didático: “Se imagine como um barco. O comando está com a alma, o ego é a tripulação formada pelas suas sombras e virtudes. Durante um temporal as condições de como o barco se comportará no mar bravio dependerão muito se tenho ao meu lado o orgulho, a vaidade, o ciúme, a inveja, a ganância e o egoísmo, todas movidas pelo medo. Então, as chances de um desastre são grandes. No entanto, se tenho como companheiros a humildade, a compaixão, a sinceridade, a coragem, a fé e o amor, terei uma viagem bem diferente. A tempestade será a mesma; a navegação não. Isto define a rota, o próximo destino e estabelece a paz durante a travessia.”

“A paz não está sujeita a um mar tranquilo nem as nuvens pesadas no horizonte. O mar é simplesmente o mar; dias de calmaria, dias de vendavais. A paz depende somente da tripulação com a qual o capitão pode contar para navegar.”

Ficamos longo tempo em silêncio. Li Tzu apreciava o chá enquanto eu tentava alocar aquelas ideias. Falei que a paz era um conceito muito simples pela facilidade da sua compreensão e sofisticado pela profundidade de nos levar ao âmago do ser, onde a essência não se permite atingir pelos acontecimentos do mundo; sabe que coisas boas e ruins sempre estarão na pauta do dia. Então, se alegra com as vitórias e aprende nas derrotas. Nunca existirá perdas; sempre haverá ganhos. Contudo, ponderei, não é um processo fácil. O mestre taoísta arqueou os lábios em leve sorriso e acrescentou: “Sem dúvida. A paz é uma valiosa conquista interna. Abro mão dela quando sinto medo de algo ou de alguém. O primeiro passo é entender a razão de algumas situações e pessoas me inspirarem tanto terror. Depois, resgatar esse poder que concedi indevidamente sobre a minha vida. Para se reverter o medo preciso buscar dentro de mim a esperança, a coragem e a fé.”

Tornei a interromper para questionar sobre a necessidade da fé. Eu entendia bem a função da esperança e da coragem na transmutação do medo. A esperança era a certeza de uma resposta na régua das minhas escolhas, não dos meus anseios. De alguma maneira, nem sempre de compreensão imediata, a vida iria me acolher e oferecer outra oportunidade para prosseguir a viagem. Era conduzir o barco para direção certa, à medida da minha consciência, na convicção de que o mar nunca negará a exata colaboração. Afinal, navegar é precisoem sua exatidão, seja quanto a causas e efeitos, seja quanto a precisão da poesia do alquimista lisboeta. Eu compreendia a coragem porque navegar é precisotambém no sentido da sua necessidade. Nenhuma travessia se completa enquanto tivermos o medo ao comando do leme; a vida exige coragem. A coragem consiste em não se deter frente às intempéries e seguir navegando tendo a estrela da vida como guia nas noites da existência. Apenas o mar completa o sentido de um barco; um porto é apenas o estágio transitório entre duas travessias. Portanto, é uma ilusão acreditar que somente no cais encontrarei a paz; é indispensável aprender a vivê-la durante a travessia. É no mar que a vida acontece e o marinheiro se transforma. Entretanto, eu tinha dúvida em relação à necessidade da fé. Li Tzu foi didático: “A fé é a virtude que religa a parte ao todo, sem intermediários, por entender que o todo está contido na parte. Depois do amor, é a virtude de maior poder. É a fé que mantém a conexão entre o navegador e a estrela que o guia. Isto permite que esta ilumine e proteja aquele com maior amplitude. No mais, todas as partes compõem o todo que trago em mim e, cada qual ao seu modo, me ajuda a me tornar diferente e melhor. Ao me permitir essa percepção, a fé se torna um instrumento de navegação indispensável para eu manter o rumo e a serenidade frente às ondas revoltas.” 

Esvaziou a xícara de chá e finalizou: “Nenhuma tempestade vem para me destruir, mas, em verdade, chega para me aperfeiçoar. A paz não é a ausência de temporais, mas sabedoria de navegar sobre as águas de qualquer tormento com absoluta serenidade.” 

Li Tzu se levantou. Podia-se ouvir os alunos chegando para as aulas. Antes de se despedir fez um convite para eu voltar no dia seguinte para mais um chá. 

8 comments

Leandro M dezembro 19, 2018 at 7:08 pm

Excelente!Mais um texto terapêutico!

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Zilda oliver dezembro 19, 2018 at 10:49 pm

Obrigado,amigo yoskraz,essa reflexão hoje veio me transmitir a paz.gratidão!

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Joane Faustino Araújo dezembro 20, 2018 at 7:00 am

Gratidão 🌹♥️

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dra mab davilla roberts dezembro 21, 2018 at 9:06 am

excelente !como tudo que escreves – parabéns – quero aproveitar para desejar a você e família um abençoado e feliz Natal -Deus abençoe você e família !

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Cláudia dezembro 22, 2018 at 10:45 pm

Quantos ensinamentos em um só texto, quanta luz. Quanta paz. Não há como sair dessa leitura sendo a mesma. Gratidão grande amigo, gratidão 🙏🏻

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Nazaré Dimaria janeiro 9, 2019 at 9:10 am

Que maravilhoso. Obrigada!

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Adélia Maria Milani janeiro 20, 2019 at 7:13 pm

Gratidão! ♡ ☆ ♡

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Fernando Machado junho 16, 2019 at 1:20 pm

Gratidão profunda e sem fim irmão das estrelas, sem fim…

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