MANUSCRITOS III

As maravilhas da dúvida

 

“Qual é a coisa certa?”, me perguntou o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, como fazia Sócrates, o filósofo grego, que devolvia uma pergunta com outra como método de raciocínio. Estávamos sentados na cantina do mosteiro diante de uma caneca de café e um pedaço de bolo de aveia. Desde sempre eu me sentia desconfortável com uma série de dilemas do cotidiano. De questões políticas e sociais que, de alguma maneira, atingem a todos até incertezas quanto à minha vida pessoal, como trocar de namorada, trabalho, cidade ou estilo de vida. Argumentei que a todo instante nos deparamos com dúvidas que nos incomodam em diferentes escalas, algumas são banais, outras muito sérias. O ruim é que as dúvidas causam enorme desconforto. Para piorar, em face das minhas incertezas eu me deparava com pessoas de opiniões divergentes, contra ou a favor, ambas convictas de suas posições e apresentando fortes argumentos. Falei que queria me livrar do incômodo da dúvida e saber sempre a coisa certa a fazer. Então, veio a pergunta do Velho sobre qual era a coisa certa. Respondi que se eu perguntei era porque não sabia e precisava de uma resposta. O monge bebeu um gole de café e disse: “A minha resposta desenha a minha verdade, não necessariamente a sua. É necessário que você se esforce para encontrar aquela que irá lhe completar, por isto o desconforto. Bendita seja a dúvida!”.

Irritado, falei que ele não estava me ajudando. O monge manteve o tom tranquilo da voz para me trazer de volta à agradável ambiência do mosteiro: “As dúvidas trazem os questionamentos; estes se aprofundam e nos levam a procurar a parte que nos falta; apenas no exercício desta busca encontraremos a verdade”. Argumentei que ele estava errado, pois muitas das verdades que me eram absolutas no passado hoje já não se sustentam. O Velho sorriu e disse: “Perfeito e maravilhoso. Tudo muda. Sabe o que isto significa? Evolução”. Pedi para ele explicar melhor e o monge foi paciente: “As verdades se modificam à medida em que alteramos os níveis de consciência e de amor. O entendimento se transforma com o florescimento das virtudes no indivíduo. De flor em flor construímos os jardins da humanidade; de verdade em verdade encontraremos a Verdade”.

Pedi para ele exemplificar. O Velho foi didático: “Voltemos aos anos 1800. Duzentos anos no contexto histórico é um segundo na História, tão pouco tempo que os reflexos daquele período ainda são claramente sentidos nos dias de hoje. Nessa época boa parte do mundo, mormente as Américas, enfrentava o grande dilema pelo fim da escravidão. A escravidão é um assunto resolvido na modernidade, não existindo qualquer dúvida sobre o absurdo de uma pessoa ser proprietária de outra. Claro que você pode questionar que ainda há cativeiros oriundos de relações trabalhistas precárias ou de dependências emocionais. Porém, me refiro à insensatez de a lei permitir o comércio de pessoas como se fossem coisas, sem qualquer manifestação de vontade daqueles que eram cativos. Mas houve tempos em que as pessoas achavam isso normal, entendiam ter esse direito e que, sim, poderiam ser donas de outras. Havia escritura de compra e venda e os escravos eram considerados bens passíveis de herança. Acredite, embora tortuosos, não lhes faltavam argumentos e eram acompanhados por muitos que viveram naquele período. Essa era a verdade de uma parte significativa da população naquele momento”. Deu uma pequena pausa para mordiscar um pedaço de bolo e seguiu: “No compassado processo de evolução da humanidade foi preciso que alguém levantasse dúvidas sobre aquelas verdades e direitos; aos poucos outras pessoas foram aderindo e ampliando os questionamentos, apresentando a possibilidade da existência de uma verdade diferente, onde era possível uma coexistência mais luminosa. Este novo jeito de ser e viver foi se expandido até que vieram as inevitáveis mudanças”.

“As dúvidas de hoje estarão superadas amanhã na perfeita régua da evolução individual que aos poucos se espraia para toda a humanidade, quando, inevitavelmente, surgirão novas dúvidas para que outras verdades possam se revelar. Assim caminhamos”.

O Velho ficou com os olhos perdidos como se falasse consigo mesmo e sussurrou: “Me assusta as pessoas que não têm nenhuma dúvida, sobre qualquer assunto. Daí, não raro, costumam surgir alguns absurdos, quando não, atrocidades. A História está cheia de exemplos”.

Falei que entendia toda a explicação do monge, no entanto, não sabia como me posicionar quanto às dúvidas que eu tinha, todas atuais e influentes no meu dia a dia. Ele me sugeriu de modo enigmático: “Pense na árvore e no fruto”. O ponto de interrogação que surgiu na minha testa fez com que ele aprofundasse o raciocínio: “Conhecemos uma árvore pelos seus frutos. Você é a árvore; suas escolhas são os frutos. Perceba se eles alimentam e alegram quem está a sua volta; se a cada decisão que tomar o mundo se aproximará ou se distanciará dos seus sonhos. Costuma ser um método eficiente para sanear dúvidas momentâneas, quebrar paradigmas, inventar novos padrões e iluminar as ruas escuras pelas quais andamos”.

“Não estranhe se nesse momento uma voz interna venha lhe dizer que o mundo está perdido, que não tem jeito, que as pessoas não vão mudar, que as suas atitudes isoladas serão insignificantes e que você está perdendo tempo. São os conselhos das suas sombras atreladas ao comodismo, ao egoísmo e ao inconsciente coletivo ainda nebuloso e vinculado a experiências sofredoras do passado que não conseguem superar. As suas escolhas, por mais isoladas que sejam, farão toda a diferença. Lembre que o Universo sempre conspira a favor da Luz; logo, nenhum movimento nesse sentido, embora aparentemente imperceptível, será desprezado. Ainda que as mudanças demorem muito tempo para se concretizar, um belo jardim nasce de uma única árvore e da força de seus frutos. Haverá outras pessoas que também têm as mesmas dúvidas e questionamentos, sonhos e verdades; nesse momento a sua atitude será angular para eles se animarem a prosseguir. Cada escolha é um fruto e todo fruto é repleto de sementes. Então, que sejam de Luz!”.

“A dúvida é a semente da transformação da realidade. A verdade é o seu fruto que quando maduro tem o sabor da liberdade”.

Deu uma pausa e acrescentou: “Apenas não esqueça o compromisso que devemos ter com a mansidão e a paz. Mudanças violentas ou impostas na marra não se sustentam por muito tempo, pois são de fora para dentro. A transformação tem que ocorrer de dentro para fora; a verdade tem que estar entranhada no ser ou não será transformação, mas mera maquiagem que desmanchará na primeira chuva”.

Perguntei se as dúvidas apenas traziam benefícios. O Velho franziu as sobrancelhas e disse: “Claro que não. Em tudo na vida existe um ponto de mutação. Se você não souber usar a dúvida como mola propulsora para descortinar o véu que impede um olhar mais apurado e, com ele, alterar a própria realidade, a dúvida o aprisionará na agonia da inércia. A dúvida precisa de enfrentamento e resolução. A verdade nasce do movimento interno pela libertação do ser”.

“A verdade precisa da dúvida para germinar. A sua consciência se alimenta das suas verdades; elas se ampliam até o último dos limites, então se transformam em outras. O nome disso é transmutação, é o que Canção Estrelada, o sábio xamã do Arizona, chama de medicina da cobra: trocar de pele para crescer; ser o mesmo, mas ser diferente e melhor”.

Pediu para eu colocar mais café na sua caneca, bebeu um gole e lembrou: “Por isso a tentativa de convencer os outros quanto às próprias verdades é o exercício dos tolos. Nem sempre a pessoa está pronta para entender a mudança. Cada qual traz uma bagagem de experiências ainda mal resolvidas que precisa decodificar, harmonizar e, posteriormente, extrair as verdades ali contidas. Assim expandimos a consciência. É preciso respeitar e ter paciência com as dificuldades pessoais e o tempo que cada um necessita para completar cada ciclo de conhecimento. Quando expomos a nossa verdade, não raro, encontramos no outro um questionamento aquém ou além do nosso”. Deu uma pausa e concluiu: “Não pense que pelo simples fato de você se sentir acordado, todos os demais que não pensam igual a você ainda estão dormindo; alguns acordaram mais cedo”.

Perguntei o que fazer quando não houver convergência de opiniões: “Exponha os seus argumentos de maneira clara e aceite serenamente o posicionamento alheio. A boa semente não se perde. Isto demonstra respeito por si e sabedoria em relação à vida. O mais importante, viva as suas ideias como modo de animar as próprias palavras. As verdades pessoais nos definem e elas não são os discursos, mas as escolhas que colocamos em prática”.

Eu quis saber o que ele fazia diante de uma dúvida. O Velho arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Quando tenho que tomar uma decisão e a dúvida faz com que uma bifurcação surja no caminho, tenho sempre o amor como estrela-guia a orientar os meus passos. Orgulho ou humildade; vaidade ou simplicidade; egoísmo ou compaixão; desejo ou necessidade; vingança ou justiça; subterfúgio ou pureza. Somente o amor me dirá se a verdade que me aconselha se origina das sombras ou da Luz”.

10 comments

Mauricio março 24, 2017 at 6:57 am

_/\_

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Rafael Barbosa março 24, 2017 at 9:30 am

Não concordo com o seguinte argumento:

“Conhecemos uma árvore pelos seus frutos. Você é a árvore; suas escolhas são os frutos. Perceba se eles alimentam e alegram quem está a sua volta; se a cada decisão que tomar o mundo se aproximará ou se distanciará dos seus sonhos. Costuma ser um método eficiente para sanear dúvidas momentâneas, quebrar paradigmas, inventar novos padrões e iluminar as ruas escuras pelas quais andamos”.

Ao disseminar frutos que alimentam e alegram as pessoas ao meu redor eu não estaria agindo com uma genuina vontade de me agradar inicialmente, e sim agradar aos outros, e isso não está de acordo com outros valores que o autor prega.

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Yoskhaz março 24, 2017 at 4:54 pm

Querido Rafael, obrigado por sua leitura e comentário!!!
Quando nos movimentamos em direção à Luz criamos naturalmente uma ambiência de alegria e serenidade. Veja se não é assim… Causa e Efeito.
Um forte abraço!!!!

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Christina Mariz de Lyra Caravello março 24, 2017 at 10:47 pm

“Argumentei que ele estava errado, pois muitas das verdades que me eram absolutas no passado hoje já não se sustentam. O Velho sorriu e disse: “Perfeito e maravilhoso. Tudo muda. Sabe o que isto significa? Evolução”.

Na maioria das vezes, não acredito que exista uma verdade única. Cada qual tem a sua verdade. O que existe são regulamentos, leis que balizam o comportamento das sociedades para que haja uma certa ordem.

Mas, no âmbito pessoal, muito dos velhos conceitos mudaram…Um exemplo é o comportamento das mulheres face a virgindade. O que mudou? A moral? Antigamente, a moça tinha que se preservar até o casamento. Hoje em dia, ser virgem é quase uma anomalia. Onde ficou a verdade dos argumentos de outrora?

E, principalmente, em relação às mulheres, muitas verdades caíram por terra. Elas sempre tiveram que batalhar pelos seus direitos. Direito de votar, direito de trabalhar, direito, principalmente, de serem donas de seus corpos, de sua vida , de seus comportamentos, de seus destinos. Direitos que eram negados pelas verdades da época.

Interessante também o exemplo do Velho sobre o problema da escravidão. As duas faces da mesma moeda. Dois momentos diferentes da História.

Sou contra verdades pré-estabelecidas e que não admitem questionamentos, dúvidas. Concordo com o Velho quando diz: “Tudo muda…isso é evolução…”
E até quando as mudanças não são benéficas, a necessidade de tornar a mudar acontece naturalmente.

Quanto as dúvidas de Yoskhaz sobre problemas ligados a política, a mudança de namorada, a trabalho, a estilo de vida, etc., creio que ele poderá ouvir muitas pessoas, cada qual defendendo a verdade de seus argumentos, mas a resposta mais verdadeira é a que está em seu interior, em seu coração, em seu discernimento. Sempre de dentro para fora.

“A dúvida é a semente da transformação da realidade. A verdade é o seu fruto que quando maduro tem o sabor da liberdade”.

O que não se pode é ficar estratificado, parado no obsoleto.

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Miquelyna maio 1, 2017 at 9:38 pm

“Somente o amor me dirá se a verdade que me aconselha se origina das sombras ou da Luz”

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Ana Cristina Guimarães junho 8, 2017 at 4:06 pm

O Amor sempre nos mostrará o caminho certo… Seja hoje, amanhã ou daqui a 20 anos… Na dúvida, acredite no seu coração e vá em frente, se a caminhada é longa ou não, só depende de nós e do quanto queremos chegar mais perto do “topo”.
Um forte abraço!

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Maria Cristina Bacci Vieira julho 3, 2017 at 9:40 pm

Muito esclarecedor. Quase sempre as dúvidas mos ajudam à tomar uma decisão correta em varias situações. Obrigado

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Waldir Moreira Jr. julho 6, 2017 at 9:18 am

Acho que você, Maurício, não entendeu ou… seja a sua verdade falando e prevalecendo sobre as demais. Princípio básico para eu me agradar é ser agradável para com todos.

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Paulo Portela julho 11, 2017 at 11:45 pm

Que harmonia Yoskhaz!

E porque necessariamente não estaria Rafael Barbosa?

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fábio agosto 8, 2017 at 1:33 pm

A dúvida faz parte do nosso processo de vida e aprendizado aqui e, como o Monge mesmo disse. É Evolução!

Eu lido com as dúvidas na minha vida da seguinte maneira: faço uma escolha, confiando na minha orientação interior (por mais estranha/controversa que ela possa ser, foco no coração) e observo os desdobramentos dela. Há resultados bons, outros nem tanto, porém tudo faz parte da nossa experiência. E é através desses ciclos de escolher e observar o que se desdobrou dali, é que vamos refinando nossa capacidade de fazer escolhas mais condizentes com o que desejamos de fato criar em nossas vidas. Acredito que estamos encarnados neste planeta-escola Terra para muitos aprendizados, e um deles é aprender a criar conscientemente nossa realidade e dominar as leis de causa e efeito.

E sempre lembrando que escolher não fazer nada e apenas observar também é uma ação. Se chegamos em uma encruzilhada e não sabemos para onde ir, talvez seja o momento de sentar, respirar e esperar por um sinal.

Abraços! Lindo texto. Inspiração sempre.

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