MANUSCRITOS III

O sal da terra

 

Encontrei o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, por acaso, do lado de fora dos muros do mosteiro. Ele voltava de um passeio na floresta localizada no arredor. Como havia chovido nos dias anteriores e o sol reaparecera, aquela manhã estava perfeita para a colheita dos cogumelos que germinam aos pés dos carvalhos. Provavelmente, à noite, teríamos a sua famosa sopa. Eu tinha saído para fumar um cigarro. Como sempre, o monge estava bem-humorado, no bom equilíbrio entre a alegria e a serenidade. Cumprimentou-me com um sorriso sincero, mostrou a cesta repleta de cogumelos e comentou que a colheita tinha sido proveitosa. Não teceu qualquer comentário a respeito do cigarro. Quando ele fez menção de prosseguir para atravessar os portões do mosteiro, eu comentei que voltara a fumar para não me suicidar. O Velho apenas comentou: “Trágico, não”? E seguiu. Logo adiante, deu uma pequena parada, se virou e disse: “Estarei na cantina”. Piscou um olho como quem conta um segredo e falou: “Ouvi dizer que um bom café é perfeito após o cigarro”. E tornou a seguir. Com os olhos acompanhei os seus passos lentos, porém, firmes, até desaparecer por entre os muros.

Fumei o cigarro até não restar nenhuma guimba. Fiquei irritado com a postura do monge, que considerei desatenciosa com a minha dor. A minha cabeça estava tomada por um torvelinho de ideias desencontradas. Nenhuma tinha força para me alegrar. Encontrei com o Velho na cantina. Ele estava sentado na última cadeira da enorme mesa coletiva. Sozinho, parecia distraído com os seus pensamentos diante de uma xícara de café e um pedaço generoso de bolo de aveia, acompanhado de uma grossa fatia do delicioso queijo produzido na região. Cheguei na ofensiva. Acusei-o pela insensibilidade de fazer pouco do meu sofrimento. Nem mesmo a possibilidade de cometer um suicídio o comoveu. O Velho me olhou com doçura, fez sinal com o queixo para eu me sentar ao seu lado, se levantou e trouxe uma caneca cheia de café para mim. Tornou a se acomodar e disse: “O drama é para os fracos”, deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Cada um tem os problemas na perfeita medida das lições de que precisa, nem mais nem menos. Não perca tempo com lamentações estéreis e cenas inúteis. Ao invés disto, aproveite a chance oferecida para aprender e se transformar”. Bebeu um gole de café e prosseguiu: “No mais, não precisa se comportar como um menino que foi pego em plena travessura. Você conhece todas os malefícios que envolvem o cigarro e tem plenas condições de fazer as suas escolhas. Acredite, não há qualquer recriminação da minha parte. Fumar fora do mosteiro é um direito seu que não diz respeito a ninguém. Portanto, relaxe. Não fumo porque não gosto e quero aproveitar de maneira saudável o meu lapso de tempo nesta existência; é uma das maneiras que tenho de agradecer e respeitar o universo por esta oportunidade. Além disso, outro motivo pelo qual não fumo, é para não perder o paladar. Ficar sem o sabor dos alimentos deve ser ruim; perder o gosto pela vida é a tristeza maior.

Em seguida, me lembrou que éramos membros da Ordem Esotérica dos Monges da Montanha – OEMM – e este nome não era pelo mero fato de o mosteiro se localizar no alto de uma montanha, mas por ser o Sermão da Montanha o eixo principal de nossos estudos. Este valioso legado filosófico tem a profundidade que cada um estiver disposto a mergulhar. Virou-se para mim e citou de cor um dos trechos: “‘Você é o sal da terra. Se o sal perde o sabor, o que restará? Perde-se o sentido da vida’”.

Sem confessar que, de fato, tinha ficado sem graça por ter sido pego fumando, falei que não havia entendido a ligação entre o trecho do texto e o meu atual momento de vida. O Velho manteve a paciência: “No plano físico o sal é o principal tempero dos alimentos. Como tudo na vida, o equilíbrio se faz necessário. Uma comida bem temperada se torna mais saborosa; com sal em excesso fica intragável; sem sal restará insossa e despida de qualquer interesse. Em metáfora perfeita, assim é na esfera espiritual: o sal da vida é a disposição, o ânimo, a alegria pelo aprendizado, pelo aperfeiçoamento pessoal, pelo compartilhamento das virtudes que adquirimos aos poucos, pela beleza do Caminho, mesmo entre flores e espinhos. Pela percepção do amor e da sabedoria do universo ao se movimentar dentro da gente, tanto na construção de um mundo melhor, quanto na formação do mestre que um dia seremos”. O uso harmonioso do sal é necessário tanto na cozinha quanto na vida: em sua ausência, perdemos o gosto pela busca e atolamos no charco do desânimo e da agonia; em excesso, seremos atrapalhados pelas brumas que impedem o melhor olhar, descambando no precipício do fanatismo”.

“Ser o sal da terra é compartilhar a alegria e a esperança que mantemos vivas dentro da gente; é se movimentar com a convicção que trazemos na alma todo o poder do universo, pois já conseguimos sentir isto, e esta força precisa se manifestar através das nossas escolhas. Caminhar livre e em paz é o exemplo que ajudará a temperar o mundo”. Mordiscou um pedaço de bolo e continuou: “Deixar de ser o sal da terra é o outro lado, uma das faces sombrias da existência. Equivale a se perder no Caminho, restar sem rumo, desencontrar de si mesmo, restar aprisionado no quarto escuro da inércia e dos medos descabidos”.

“Convém lembrar que na época em que o discurso foi proferido, o sal era o método usado para a conservação dos alimentos. Não é diferente no plano espiritual, somos os responsáveis por manter acesos os princípios dignos da vida, os valores nobres da luz, a essência divina do ser, revelando nas atitudes corriqueiras do cotidiano o sagrado que está oculto em todas as coisas; é encontrar a beleza de toda a gente. Ser o sal da terra é conservar os seus sonhos mais lindos apesar de todas as dificuldades inerentes ao Caminho”.

Tentei impedir o choro, mas não consegui. O Velho esperou pacientemente que eu parasse de chorar e brincou: “Prove as suas lágrimas, elas têm sal”. Ri enquanto soluçava. Ele prosseguiu: “Os suicidas não têm por costume avisar sobre o ato de desespero e escuridão que cometerão. No entanto, aqueles que se sentem desamparados e, em última análise, precisam de atenção, costumam usar esse artifício infantil”. Eu confessei que não sabia como lidar com os meus problemas. Ele sugeriu: “Fale; exteriorize todos os seus sentimentos, toda a sua dor, todos os fatos que o oprimem”. Perguntei se ele me ajudaria. A resposta foi doce e sincera: “Não sei se poderei ajudá-lo. Apenas sei que você, mais do que qualquer outra pessoa, possui tamanho poder para ajudar a si mesmo. Toda a luz da qual precisa está adormecida em seu âmago. É preciso acendê-la. Ao falar, você irá ouvir a sua própria voz, as suas razões, o tom das emoções e a insensatez que o alimenta. É um ótimo exercício. Perceberá, também, que enquanto transferir a outros a responsabilidade pela sua felicidade, estará adiando e abdicando do poder que possui sobre a própria vida. Isto fará com que comece a entender quem você é e as transformações que precisa operar em si mesmo. Apenas assim a vida se modifica de verdade”. Eu quis saber se existia outro método para eu não me expor tanto. O Velho aquiesceu com a cabeça: “Sim, a meditação é outra maneira eficiente de chegar ao mesmo resultado. A escolha será sempre sua”.

Confessei uma certa vergonha de expor as minha mazelas e preocupações. O monge franziu as sobrancelhas e disse: “A simplicidade é a virtude de nos aceitarmos do jeito que somos, sem subterfúgios, personagens ou medo. A simplicidade é o poder da transparência, uma poderosa ferramenta para as transformações necessárias ao ser”. Pausou por instante e ofereceu: “Caso queira, estou aqui para ouvir”.

Imediatamente comecei a derramar todas as minhas agonias e sofrimentos. Expliquei como estava insatisfeito com a minha vida profissional e o no meu relacionamento afetivo, que depois de anos, me parecia insuportável. Como era de esperar, culpei os sócios e a namorada pelas minhas dores. Acusei-os de teimosia ao insistirem em agir erradamente, cada qual da sua maneira e com as suas motivações e deficiências. Falei até cansar. O Velho tornou a encher as nossas canecas com café, me ofereceu um olhar bondoso, e disse: “Consegue ver as limitações alheias com muita precisão, não? E quanto às suas próprias dificuldades? Não ouvi sequer uma única palavra. A transferência de responsabilidade sobre a própria felicidade é uma sombra ardilosa e tentadora. É muito cômodo culparmos os outros ou lamentarmos a falta de sorte para justificar o nosso sofrimento. Todas as vezes em que caímos nessa esparrela, abdicamos do sal da vida”.

“Os outros são como têm que ser, com suas dores e delícias, cada um em sua busca, com o nível de consciência e capacidade amorosa que possuem no momento. Ninguém tem a obrigação de se modificar para se encaixar em nossos desejos ou necessidades. Você não precisa de ninguém para ser feliz. Entender este conceito é o primeiro passo para se permitir as asas da liberdade. No entanto, não podemos esquecer que os relacionamentos pessoais são imprescindíveis como oficinas de aperfeiçoamento, pois as dificuldades opostas e as decepções provocadas pelo mundo são eficientes ferramentas utilizadas no processo evolutivo, por nos movimentar e nos reinventar, sempre com um jeito diferente e melhor de ser e viver. Justo as enormes dificuldades e limitações alheias me levarão a entender quais virtudes ainda estão adormecidas em mim e que necessitam florescer, assim como os cogumelos precisam das noites de chuva para germinarem ao sol da manhã. O outro se faz indispensável para que eu possa acender e compartilhar toda a luz que existe em mim, pois o que ainda não consigo dividir, em verdade, não tenho nem sou. Assim, benditas sejam as frustrações! Perceber isto é construir o jardim da paz onde antes existia um campo de batalha”. Sorriu e concluiu: “Dentro do próprio coração”.

Ficamos um longo tempo sem dizer palavra. Quebrei o silêncio para me confessar uma pessoa fraca. Admiti que me sentia sem forças para ultrapassar as barreiras que se apresentavam em minha vida. O Velho franziu as sobrancelhas, como fazia quando aumentava o tom de seriedade, e disse: “O sal da terra tem a sua genesis no autoconhecimento. Esta é a fonte no qual todo o poder se alimenta, é a raiz da magia da vida”. Deu uma pequena pausa e prosseguiu: “Quanto mais uma pessoa se conhece, de verdade, mais forte ela se torna. O contrário também é verdadeiro, atrasando a jornada do indivíduo nas paisagens da ilusão, das desculpas e lamúrias. O insucesso pode ser uma pá de cal a enterrar um sonho ou um poderoso adubo a impulsioná-lo; a escolha será sempre sua”.

“Aceitar quem você é sem subterfúgios e mentiras, mas com a responsabilidade e o ânimo de se aperfeiçoar, concede o poder de modificar tudo ao seu redor na medida que transformar a si mesmo. O método mais eficiente de escalar os obstáculos da existência é com o burilamento das virtudes no ser. As virtudes são os elementos da luz que dissiparão a escuridão; elas mostram que os muros mais altos podem se tornar da altura de um risco de giz no chão”.

Arqueou os lábios em leve sorriso e elencou algumas possibilidades: “Humildade e simplicidade para admitir a perfeição que ainda não possuímos e, portanto, não podemos exigir dos outros; compaixão para com as dificuldades e limites alheios; misericórdia para abraçar o mundo e extinguir as indiferenças; pureza e justiça para estancar a maldade em si mesmo; delicadeza, bondade e paciência a qualquer instante; coragem, esperança e fé para seguir em frente; amor para iluminar todos os cantos escuros que encontrar”. Ficou com o olhar distante por algum tempo e complementou: “As possibilidades de aplicar as virtudes como instrumentos de superação e evolução são infinitas”. Mirou-me nos olhos e sugeriu: “Invente as suas e seja feliz, Yoskhaz. Não desperdice o sal da terra”!

Em seguida, o Velho pediu licença dizendo que estava na hora da sua meditação e se retirou. Antes, porém, bebeu todo o café da sua caneca, deu de ombros e aconselhou como quem não tem maiores pretensões: “Beba sempre até o final”. Na hora não entendi este último comentário. Fiquei sentado na cantina por um tempo que não sei precisar. Somente, então, percebi algo que nunca tinha reparado: que todas as xícaras do mosteiro tinham um coração insculpido no fundo, visível apenas quando estavam vazias. Sorri sozinho. Em seguida gargalhei, comecei a bailar em volta da mesa e abençoei o Velho por sua saudável loucura. Entendi que se eu fosse ao fundo de mim mesmo, me esvaziasse dos condicionamentos, ideias e sentimentos turvos, enxergaria o que nunca tinha visto: o meu próprio coração. Ali está o poder da vida; ali brota o sal da terra”.

 

 

 

15 comments

Eduardo A. junho 15, 2017 at 11:06 am

Perfeito! Obrigado Yoskhaz.

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Thiago oogaiht Teixeira junho 15, 2017 at 12:23 pm

Sempre é uma honra aprender !

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Claudia Pires junho 15, 2017 at 2:21 pm

Amei!!!!. Fonte de inspiração para o despertar.

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Leandro M junho 15, 2017 at 6:21 pm

Muito bom!Melhorou meu dia!

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Paula junho 15, 2017 at 11:05 pm

Sinto tantas coisas parecidas, os textos me dão encorajamento mas ainda é bastante dificil encontrar clareza nos pensamentos e emoções…

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Priscila F. junho 16, 2017 at 2:20 pm

Perfeito… Não sei quem é você mas admiro muito seus textos e a forma como me identifico com muitos questionamentos abordados…

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Christina Mariz de Lyra Caravello junho 17, 2017 at 12:01 am

“Perceberá, também, que enquanto transferir a outros a responsabilidade pela sua felicidade, estará adiando e abdicando do poder que possui sobre a própria vida. Isto fará com que comece a entender quem você é e as transformações que precisa operar em si mesmo. Apenas assim a vida se modifica de verdade”.

E pior é quando se transfere para um ser idealizado, e que na verdade só existe na sua imaginação, na sua carência, na sua vontade, essa responsabilidade pela sua felicidade.

E quando isso acontece, a fantasia vai escondendo a realidade, parece que uma venda impede o seu olhar, você só enxerga o que quer enxergar até um dia que você percebe que não existe nada para enxergar.

Nesse momento, você começa a entender o poder que tem tanto para fantasiar como para desfazer a fantasia e usar esse poder para se transformar e aprender a entender as pessoas como elas realmente são.

” O outro se faz indispensável para que eu possa acender e compartilhar toda a luz que existe em mim, pois o que ainda não consigo dividir, em verdade, não tenho nem sou. Assim, benditas sejam as frustrações! ”

Elas me farão olhar para dentro de mim, me farão compreender as virtudes que terei que trabalhar como instrumentos de superação e evolução.

“O sal da terra tem a sua gênesis no autoconhecimento. Esta é a fonte no qual todo o poder se alimenta, é a raiz da magia da vida”.
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Marise Neves junho 17, 2017 at 9:26 am

Yoskhaz sempre nos lembrando que se ficarmos atentos ,as lições estão sempre disponíveis para nossa constante evolução.
Seus textos me levam sempre a avaliar minhas conquistas e os desafios que estou vivenciando no meu caminho. Gratidão!!

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Koishima junho 17, 2017 at 10:47 am

Meu irmão! Me arrancou lagrimas, confesso.. Estou a alguns dias mergulhado em pura ansiedade de um futuro.. de uma escolha, antes eu estava me fechando e isso me fazia me pilhar e explodir. Fui aprendendo a lidar com isso e fui me esvaziando e entendendo que tudo o que havia na minha mente eram series de pensamentos que eu fui guardando de longos anos e que hoje veio tudo a tona.. Do meu relacionamento, sobrou a distancia.. e isso me machuca demais. Estou aos poucos aprendendo a lidar com o que estou sentindo, vivi dias sombrios de pensamentos horriveis e só consegui me livrar me abrindo a alguem. Me sinto fraco tambem por não ter forças pra ser mais forte que meus problemas e me sinto perder o sal da vida novamente.. Minhas atitudes de medo, me fez correr feito uma criança com medo de bicho.. Quando o medo me ataca eu esqueço quem sou e entra mascara do desespero e ansiedade e já nem lembro mais do que eu havia me transformado até aquele momento.. Isso me deixa muito frustrado.. Porem, a caminhada é longa e a transformação “está no final da xícara”, dentro de mim. Agradeço pelo texto e pela iluminação de meus dias, meu caro amigo, muito amor.

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Michelle junho 21, 2017 at 10:14 am

❤️

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Leila Hsieh junho 26, 2017 at 2:35 pm

Obrigada mais uma vez por dividir um texto iluminado e sábio 💫❤💫.

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Rose junho 26, 2017 at 7:44 pm

Como eu gostaria de ter um dedo de prosa com o “velho”…

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JAILSON junho 29, 2017 at 9:16 am

Transformador, motivador, iluminador, apartir do momento que acendamos a luz do autoconhecimento, a vida se torna mais bela.
Texto magnífico!
Grato!

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Ailton junho 29, 2017 at 10:35 am

Cada texto uma obra magnífica!!!

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Edivalson Fogaça Falcão julho 26, 2017 at 11:08 am

Muito bom….🎆

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