TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Quadragésimo sétimo limiar – A Grande Arte)

Era o acampamento de uma caravana da lendária Rota da Seda. Os animais descansavam. Estacionadas em círculo, as carroças formavam um cinturão de proteção face um eventual ataque noturno realizado por saqueadores, comuns por toda a viagem. Uma enorme fogueira ao centro servia para aquecer, iluminar e cozinhar alimentos. Andei à esmo pelo acampamento sem que ninguém se importasse com a minha presença. As mercadorias eram conferidas e rearrumadas nas carroças. Vi grandes quantidades de tecidos, chás, porcelanas e especiarias que teriam seus preços de origem multiplicados em mais de mil vezes. Os lucros eram gigantescos. Os riscos também. A minha atenção se voltou para um mercador europeu. Eu sabia disto não apenas pelos traços étnicos, mas também pela roupa que usava e o idioma que falava para transmitir algumas ordens a outro homem, provavelmente um funcionário. Eles conversavam em italiano. Após dispensar o empregado, me aproximei do mercador. Ele conferia algumas pedras preciosas, mas não se incomodou comigo. Havia uma pequena fortuna na palma da sua mão. Literalmente. Ele me olhou por alguns instantes e voltou a atenção ao que fazia. Em seguida, guardou as gemas em uma bolsa de couro presa à cintura. Perguntei se estavam longe do destino. O homem respondeu: “A viagem entre Cambalique e Veneza pode demorar meses ou mesmo anos. Depende de uma série de fatores que independem da minha vontade ou controle”. Deu de ombros e complementou: “Então não há razão para eu me preocupar com isso. Concentro-me naquilo que posso fazer. Tudo mais pertence ao acaso… que não existe”.

Mostrei-me surpreso com aquela afirmação. Ele explicou: “Sorte ou azar são crenças típicas dos tolos. Cada pessoa escreve o próprio destino no somatório das suas ações e omissões. Uma história que começou a ser escrita num tempo que a memória não alcança, mas que fica registrada nas estrelas. Tudo que me acontecer nos próximos dias foi escrito pelas minhas mãos em algum momento, mesmo que eu não me recorde. Trata-se de uma narrativa que ensina por intermédio dos erros e acertos como maneira de apurar a percepção e a sensibilidade de cada indivíduo, ao fazer com que se torne responsável pelos efeitos que em algum momento ele próprio provocou. Resta-me ter atenção para escrever uma boa história nas páginas que ainda estão em branco, nunca por mero interesse, mas sempre pelo mais puro amor aliada a uma sabedoria refinada pelas transformações intrínsecas dos aprendizados decorrentes dos fatos vividos. Assim, aos poucos, defino o meu destino. Um lugar mais seguro do que os tribunais dos Doges de Veneza ou mais turbulento do que os dias que aguardam as muralhas de Constantinopla. Embora não seja de fácil compreensão, é uma viagem exata na medida do merecimento e da necessidade evolutiva do viajante”.

Indaguei se esse era o motivo de ele fazer viagens tão longas. O mercador me atordoou: “Não por esse motivo. Sem sair de casa posso conhecer o melhor do mundo”. Antes que eu o interpelasse, ele se adiantou: “Viajei a lugares extravagantes, conheci cidades e povos exóticos; passei toda a minha existência em busca de fortuna e aventura. Agora, tudo que quero é viver em casa. Não se faz necessário ir tão longe quando se entende que a viagem mais excêntrica é também a mais simples; a maior riqueza está escondida no quintal da minha casa”. Eu quis saber se ele enterraria as pedras preciosas que levava consigo no terreno da sua residência quando lá chegasse. Ele sorriu como se a pergunta tivesse sido feita por uma criança.  O homem pontuou: “Não importa se você reside em Alexandria, Bagdá ou Gênova, em verdade, cada pessoa mora dentro de si mesma. Não há aventura que exija maior coragem, tampouco fortuna mais preciosa do que viajar ao encontro do desconhecido que existe em você para o pacificar e se unir a ele. O que era sombra se torna luz; então, terá ao seu dispor todo equilíbrio e força necessários para lidar com quaisquer dificuldades inerentes aos dias; serenidade e determinação, mansidão e firmeza serão as tônicas dos seus movimentos dali por diante. Um poder sutil e incomensurável. Para tanto, se faz indispensável se despir de todos os enganos e subterfúgios com os quais escamoteamos a verdade que temos dificuldades em enfrentar. Por isto falo do exotismo da simplicidade, por ser artigo raro em qualquer canto do mundo”. Olhou para estrelas como que pedindo por inspiração e disse: “Para conseguir favores dos imperadores, muitos os presenteiam com animais raros, tapeçarias finas, ervas medicinais e diamantes caríssimos. Contudo, ninguém, por mais rico ou poderoso que seja, poderá oferecer o único produto que os libertaria das suas angústias e medos. A verdade”. Fez uma pausa antes de prosseguir: “Trata-se de uma descoberta pessoal e intransferível. Ninguém pode a oferecer a ninguém. Pode-se indicar um caminho, nunca conduzir até o destino. O motivo é simples: nenhuma pessoa conhecerá a verdade sem antes conhecer a si mesmo”. Alisou a barba e comentou: “Os césares se corroeriam de remorso se soubessem do seu valor. Veriam o desperdício das batalhas que travaram; nenhuma das vitórias alcançadas por seus exércitos couberam nas bagagens que levaram às Terras Altas. Não raro, as glórias daqui são consideradas crimes por lá. Por ignorância, escreveram tristes capítulos para as histórias que ainda viverão. Nenhum lamento é justo, todos herdam as próprias escolhas. O acaso é pedagógico”.

O mercador prosseguiu: “Poucos têm disposição para ir ao encontro das suas sombras e travar o combate para as iluminar. Lutar contra Kublai Khan nas planícies da Mongólia é para os selvagens; os sábios se dedicam a enfrentar o orgulho e a vaidade que ainda dominam as suas escolhas, a ganância e o ciúme que influenciam os seus desejos. Atravessar os desertos da África ou sobreviver às intempéries do Mar da China não é aventura que se compare a viajar ao âmago de si mesmo para dissolver traumas, medos e dores existenciais. Viver em paz consigo próprio é infinitamente mais confortável do que morar no mais luxuoso palácio da Pérsia. Ninguém precisa olhar pela janela para conhecer as maravilhas da vida”. Interrompi para dizer que era impossível se encantar com as pirâmides de Gizé sem ir até o Egito. O mercador voltou a sorrir como se eu fosse um garoto questionador e pontuou: “Caso não descubra as maravilhas da vida dentro de si mesmo, jamais as encontrará em qualquer outro canto do mundo. A paisagem é apenas adorno do Caminho, jamais a sua essência. Quando prioriza a paisagem, o viajante desvia a rota e perde o rumo. Aproveite as belezas do mundo sem renunciar ao Caminho. Do contrário, jamais conhecerá as maravilhas da vida”.

Olhou-me com compaixão e argumentou: “Há muitos destinos. Todos possuem suas delícias e agruras. Cada pessoa define onde quer chegar. Uma escolha que também estabelece a espécie e o quilate das riquezas que encontrará”. Indaguei sobre como definimos os nossos destinos. O homem respondeu de pronto: “Pelo gosto e sabor”. Falei que não tinha entendido. Ele explicou: “A vida vista como um sacrifício se resumirá em dias desperdiçados. A vida exige prazer para que a alegria supere o cansaço, a fé e a coragem afastem o medo, a vontade vença o desânimo, o errado não se torne lei, as sombras não apaguem a luz. Há de haver prazer na elaboração da Grande Arte; a construção de si mesmo. Tudo mais é menos”.

Perguntei se ele sentia prazer em viajar para lugares tão distantes. Ele maneou a cabeça e disse: “Acreditava que em terras exóticas conheceria as maravilhas da vida. Estive em lugares belíssimos, provei iguarias deliciosas, conversei com pessoas interessantes. Encontrei falsos sábios e pessoas do povo com extrema sabedoria. Ambos são comuns tanto em Cambalique quanto em Veneza. Estive em cidades tranquilas e organizadas; embora ajudassem a me sentir seguro, a paz não criava raízes em mim. Participei de grandes festividades, nas quais o povo esfuziante se esbaldava em danças e cantorias; apesar de toda euforia, eu não me sentia feliz. Conheci lugares que a maioria das pessoas jamais ouviu falar, sempre andei por onde tive vontade; contudo, todo esse movimento nunca foi capaz de me tornar genuinamente livre. Tornei-me um homem rico, mas nada que eu comprasse supria o desconforto que morava em mim. Havia algo de errado. Entendi que quanto mais longe se vai no mundo, menos se sabe sobre o essencial. O meu gosto pela novidade não me permitia conhecer o sabor do novo. A novidade é um mero adorno; o novo é uma poderosa ferramenta de transformação que precisamos aprender a usar”. Questionei se deveríamos nos trancar em casa, o mercador esclareceu: “Não foi isto que eu disse. O intercâmbio com o mundo é fundamental à Grande Arte. Os relacionamentos são os exatos espelhos que refletem as nossas dificuldades e avanços; todo problema oculta uma oportunidade evolutiva; portanto, agradeça ao invés de lamentar. Eu não me ergo no mundo; mas dentro de mim. No mundo somente expresso as transformações intrínsecas efetivadas. Quando vivencio as situações sem que haja os devidos pilares existenciais a me sustentar em equilíbrio e força, desabo diante das menores contrariedades. Ainda que mostre um poder aparente, escudado pelo orgulho e pela vaidade, internamente a amargura e sofrimento são enormes. Mera maquiagem”.

Esperou que um funcionário da caravana passasse para continuar a explicação: “Viver no mundo é extremamente valioso. Não posso prescindir dos abraços, dos beijos, das mãos estendidas, das ajudas recebidas, das soluções surgidas quando acredito não haver equações possíveis, da imprevisibilidade da vida que nos ensina a seguir em frente sob quaisquer circunstâncias. Do mesmo modo, preciso dos problemas para me ensinar sobre algo que desconheço em mim, das traições para entender o poder do perdão, de me perder nos labirintos da dor para compreender que a porta de saída é o amor. Entretanto, o mundo não ensina nada disso”. Ao perceber um ponto de interrogação nas minhas feições, esclareceu: “O mundo é apenas uma fonte inesgotável de prazeres ou de dores, a depender de como o viajante consegue lidar com cada situação. A quantidade e a qualidade dos prazeres e das dores mostram o ponto em que se encontra a minha construção; o quanto já compreendo sobre a Grande Arte. Se faço a leitura de cada momento com as lentes do orgulho, da vaidade, da ganância, do ciúme, da mágoa, da possessividade, enfim, das sombras que ainda moram em mim, o resultado será de dor. A reação, ainda que disfarçada, poderá até enganar as pessoas ao redor, nunca evitar o gosto amargo saboreado pela alma”. Enrolou o cachecol no pescoço por causa do vento frio da noite e continuou: “De outra face, se interpreto os mesmos acontecimentos com humildade, simplicidade, compaixão, sinceridade, respeito, desapego, coragem e delicadeza, ou seja, das virtudes que já habitam comigo, o resultado será de prazer”. Sorriu antes de concluir: “Sim, não se espante. Ainda que o fato seja desagradável, trará aprendizado e crescimento; a reação equilibrada, serena e firme diante da adversidade permitirá que a minha alma saboreie o gosto doce da maturidade proporcionada pela superação sábia e amorosa da dificuldade”.

Perguntei se aquela era a sua última viagem pela Rota da Seda. O mercador negou: “De jeito nenhum”. Falei que tinha entendido que agora se dedicaria mais a sua casa. Ele confirmou: “Exatamente. Como disse há pouco, cada pessoa mora dentro de si mesmo”. Apontou para o próprio peito e continuou: “Para cuidar da casa podemos estar em qualquer lugar. Não importa qual profissão exerça, nem o local da sua residência. As incompreensões dão origem a todos os dissabores e desencontros. Mercadejar é um trabalho como qualquer outro e não me faz melhor nem pior que ninguém; construir-me é um estilo de vida singular, pois me torna único”. Fez um movimento com a mão, como se falasse o óbvio e indagou: “Quem quero me tornar?”. Fez uma breve pausa para eu começar a concatenar o raciocínio e prosseguiu: “Esta é a pergunta inicial. A resposta definirá a sua estrada e destino. Quem nunca a fez, navega em um barco à deriva, levado pelos sabor das marés e dos ventos, sem qualquer controle sobre a viagem que realiza. Significa estar perdido de si mesmo. Se quero ir do Chipre à Síria, sei das dificuldades e delícias que encontrarei no trajeto, tenho consciência que surgirão imprevistos e desafios. A minha determinação e amor-próprio serão fundamentais para eu chegar ao destino. Durante muitos anos, acreditei que a Rota da Seda me daria tudo eu queria. E deu. Até que descobri que a viagem mais importante da vida não é para chegar em algum lugar. Em verdade, este lugar não existe. A viagem da vida consiste em encontrar alguém”. Olhou-me com seriedade e ensinou: “Aquele que conheço precisa se unir ao estranho que habita em mim. Formamos uma mesma pessoa, porém, enquanto estivermos afastados, restarei fragmentado. Incompleto, não consigo me deliciar com o mel da vida, as plenitudes permanecem como um destino distante”.

Apontou para a bolsa de couro, contendo as pedras preciosas, presa à cintura, e disse: “Compram palácios, privilégios e muitos prazeres, mas são incapazes de adocicar a alma. Para se conquistar a paz preciso dissolver os medos, sofrimentos e incompreensões; para a liberdade tenho de exercer as escolhas no limite da verdade alcançada; uma verdade que permanecerá curta e rasa enquanto eu não me conhecer mais e melhor. Nunca haverá dignidade enquanto eu não tratar as pessoas do jeito que gostaria que elas me tratassem; o amor consiste em transformar os meus desertos internos em jardins floridos; a felicidade acontece nos dias em que me transformo em uma pessoa diferente e melhor; e todos os dias são perfeitos para isto”. Franziu as sobrancelhas e disse: “Esse é o grande poder, a riqueza incomensurável. Um destino impossível aos tolos que buscam por lugares mágicos e conquistas douradas. O sábio chega, sem viajar, pois, não procura por nenhum lugar, mas caminha ao encontro de si mesmo. Todas as condições e circunstâncias externas são perfeitas para quem se dedica à Grande Arte, pois servem para mostrar aspectos e características próprias que, embora ignoremos, influenciam as nossas escolhas e comportamentos, motivos pelos quais ainda não nos sentimos confortáveis em casa”. Deu de ombros e confessou: “Entre me tornar inteiro e conquistar Roma, prefiro as delícias de me dedicar à construção inexpugnável de onde moro ao invés de ter todos os centuriões e messalinas ao meu dispor e prazer”.

Falei que quase todas as pessoas diriam se sentir confortáveis em morar dentro de si mesmas. O mercador balançou a cabeça e afirmou: “Tolos que se deixam levar pelo orgulho e vaidade. Nada sabem sobre a arrumação da própria casa. Varrem a sujeira para debaixo do tapete e acreditam ter deixado tudo limpo. Quando o vento da vida força a janela e levanta o tapete, uma nesga de luz bastará para evidenciar o lixo escondido. Sentem o desconforto, mas negam ou reprimem a sensação. Então, correm para fechar a janela. Preferem manter a escuridão da casa a ter de lidar com a sujeira que não querem ver. Como aparentemente está tudo arrumado, acreditam que logo se sentirão bem. Ledo engano. O lixo se acumula até tornar a casa inabitável. Por teimarem em olhar com os olhos, não conseguem ver. Não conseguem por não estarem prontos ou porque não querem. Por isso, o sábio conhece sem ter a necessidade de olhar. Ele não enxerga com os olhos, mas com a alma; ou se preferir, com a consciência, no limite da percepção e da sensibilidade que já desenvolveu, pois essa é a estrutura que, na medida que a construção avança, ergue, dá robustez, mantém a casa limpa, clara e arejada, fazendo dela o melhor lugar do mundo para se morar”.

Comentei que a Grande Arte era invisível aos olhos da maioria da pessoas. O homem esclareceu: “A construção de si mesmo é a obra da vida. Tornar a casa agradável para morar é parte da arte. Como se trata de um poder extremamente sutil, riquezas nem sempre perceptíveis aos olhos físicos, nenhum encantamento costuma oferecer às multidões enquanto fascinadas pela suntuosidade dos palácios de pedras e a beleza dos adornos e paisagens que embelezam o mundo. Ainda não distinguem o brilho da luz. Nada sabem sobre as maravilhas do Caminho. Desprezam o sábio porque ele faz sem agir”. Interrompi para saber o que aquela frase significava. O mercador explicou: “Como os movimentos do sábio são intrínsecos, as suas construções se expressam através de conquistas internas – tais como ser feliz, livre, digno, viver em paz consigo e preencher-se de amor –, que embora essenciais à vida, permanecem invisíveis aos imaturos que só conseguem ver aquilo que está ao alcance dos olhos. Enquanto insistirem nesta prática, ignorarão quem são, estarão distantes da verdade e se sentirão mal onde moram”.

Antes que eu falasse palavra, o mercador abriu a bolsa de couro e retirou as pedras preciosas. Colocou-as em minhas mãos. Em seguida, as distribuiu de maneira que, quando me dei conta, formavam uma linda e improvável mandala de cores vibrantes. Ele fez um gesto com a cabeça de despedida; sorri em agradecimento e segui em frente.

Poema Quarenta e Sete

Sem sair de casa

Pode-se conhecer melhor o mundo.

Ninguém precisa olhar pela janela

Para conhecer as maravilhas da vida.

Quanto mais longe se vai, menos se sabe.

O sábio chega sem viajar,

Conhece sem olhar,

Faz sem agir.

2 comments

Terumi setembro 6, 2023 at 1:44 am

Gratidão 🙏

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Rhodolfo Diniz setembro 12, 2023 at 3:09 pm

Gratidão! 🙏🙏

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