MANUSCRITOS VII

O cais e o caos

Nada havia mudado na pequena vila chinesa no sopé do Himalaia desde a última vez que lá estive. Desci do ônibus na praça em frente a única estalagem do local. A dona me recebeu com a indiferença de sempre. Fiz o pagamento e ela me entregou a chave do quarto sem dizer palavra. Deixei a mochila e fui à casa de Li Tzu, o mestre taoísta. No trajeto, para espantar a fome, comprei uma momo, uma espécie de trouxinha de queijo cozida no vapor, vendida nas ruas e muito apreciada na região. Como de costume, o portão da casa estava aberto. Atravessei o jardim de bonsais com recorrente encantamento. Eu me perguntava se a dedicação do mestre taoísta às plantas era a causa da cativante serenidade que expressava em seus gestos e palavras. Ao entrar na cozinha, Meia-noite, o gato preto que também morava na casa, se espichou, eriçou o pelo, saltou de cima da geladeira e desapareceu em fração de segundo. Espantei-me. Tinha ouvido falar que algumas espécies de animais possuíam aguçada sensibilidade, sendo capazes de identificar o sentimento das pessoas. Apesar de serem transmutadores energéticos, quando muito denso o sentimento, por vezes, os gatos preferem se afastar. Como não havia mais ninguém na cozinha, estranhei. Eu vivia um momento de tranquilidade. Nenhum conflito significativo me atormentava os dias. Sem entender a reação de Meia-noite, sentei-me à mesa a espera de Li Tzu, que não tardou a chegar. Sempre comedido no modo de expressar as emoções, vi nos olhos do mestre taoísta a alegria por me encontrar. Sem demora, colocou algumas ervas em infusão para o chá. Pediu notícias do Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem. Tinham sido contemporâneos em uma universidade inglesa nos anos 1960. Uma amizade que vencera as turbulências do tempo. Comentei sobre a admiração que eu tinha sobre esses encontros, capazes de superar os reveses e as asperezas comuns à existência. O mestre taoísta sorriu e relatou: “Somos almas afins, com semelhante padrão de consciência e sintonizadas a um mesmo objetivo”. Perguntei qual seria esse objetivo. Ele revelou: “As grandes tradições filosóficas ensinam que o sentido da vida é a libertação dos sofrimentos”. Questionei se a principal motivação não seria a evolução espiritual. Li Tzu respondeu que sim com a cabeça e acrescentou: “Evoluir é amar mais e melhor. O amor exige o necessário aprendizado sobre a origem, funcionamento e a desconstrução dos sofrimentos, para encerrar definitivamente os atormentantes ciclos de dores emocionais contínuas. Do contrário, o amor ficará aquém quando poderia ir além. O sofrimento registra o potencial perdido do amor ainda desconhecido”.

O mestre taoísta fez o assunto retornar ao Velho. Salientou que eu não havia respondido à pergunta que fizera. A conversa tomara outro rumo sem que eu desse notícia do seu amigo. Falei que ele estava bem, dirigindo a Ordem Esotérica dos Monges da Montanha e orientando os diversos cursos ministrados no mosteiro. Não me estendi além do básico. Li Tzu me olhou com seriedade e pediu: “Conte-me o que aconteceu”. Insisti em dizer que estava tudo bem. O mestre taoísta ponderou com candura: “Sei da importância do Velho na sua formação filosófica, assim como do carinho e do respeito que nutre por ele. Contudo, nunca o vi tão sucinto para falar sobre alguém com tamanha luminosidade. Para corroborar as minhas impressões, a repentina mudança em suas feições também o denuncia. Algo está fora do lugar”, afirmou. Em seguida, me deixou à vontade: “Não se sinta forçado a falar sobre o que não deseja ou o deixa desconfortável”. Expliquei que não era nada demais. Apenas tinha discordado do Velho quanto a algumas decisões administrativas. Havia alguns anos, eu fazia parte da diretoria da Ordem e era responsável por um dos cursos oferecidos no mosteiro. Ocorre que ele convidara outro monge – como são chamados os integrantes da irmandade –, o Alex, para um cargo recém-criado, o de coordenador-geral de cursos e estudos. Tratava-se de um monge estudioso e bem-preparado, mas muito jovem. Não se podia negar o valor das novas ideias que trazia, nem o seu intenso dinamismo em implementar algumas mudanças. Confessei que já assistira algumas aulas do Alex e não me agradava o tom de voz alto nem o excesso de pirotecnia, como me referi aos tantos recursos tecnológicos que ele usava em sala de aula. Considerava desnecessário. O importante será sempre o conteúdo, argumentei. Defini-me como alguém mais clássico e tradicional. Decidi me afastar da diretoria e abdiquei de ministrar o curso no qual eu seria responsável no próximo período de estudos. Comuniquei a minha decisão ao Velho em mensagem escrita. Entendia que precisava me afastar para oferecer espaço à indispensável renovação. A evolução exige mudanças, pontuei para concluir.

Li Tzu franziu as sobrancelhas e observou: “O discurso está perfeito, porém, sem nenhuma conexão com o coração. Você foi polido, e quase gentil, mas nem um pouco sincero. O sentimento reprimido sobre o fato, gera o sofrimento que o atormenta. O equilíbrio que demonstra é parte do personagem de aparência bem-resolvida, sem o necessário respaldo de uma consciência em paz consigo mesma”. Falei que ele estava enganado. Comentei que eu passava por um período sem qualquer sofrimento. Um momento de grande estabilidade emocional. Todas as questões prementes estavam equacionadas. Eu estava em paz, afirmei. Li Tzu comentou ter visto Meia-noite sair em disparada no instante que eu entrara. Admiti que também estranhara, uma vez que me sentia bem. Ele alertou: “Alguns sofrimentos são tão antigos que já os consideramos parte indissociável de quem somos. Outros, se manifestam com tamanha recorrência que passam desapercebidos. Existem também aqueles que negamos por considerar absurdo suas presenças, face o desenvolvimento espiritual que acreditamos já ter alcançado. Acostumamo-nos as essas dores a ponto de sequer considerar que existam. Criamos uma crosta espessa de proteção em volta do coração, aos moldes das cascas surgidas em pés descalços forçados a caminhar em terrenos pedregosos. Ambos, coração e pés, se tornam insensíveis às asperezas da vida e da estrada. Em situações extremas, ficar insensível pode se apresentar como a defesa possível para o indivíduo não restar destruído pela dor insuportável. Porém, não podemos esquecer que se trata de um mecanismo temporário de autopreservação, sem jamais o confundir como uma solução definitiva”. Encheu as xícaras com o chá recém-tirado da infusão e acrescentou: “A sensibilidade é parte essencial à consciência. Logo, tem importância direita de como elaboramos as experiências e aproveitamos os dias. Com a diminuição da sensibilidade perdemos a capacidade de discernir e valorizar os sentimentos. Dores e amores se estreitarão na mesma medida. Sufocar as dores da existência não devolve as cores da vida. Negar nunca foi um método eficaz de desconstrução. Não sem razão, um sábio alquimista de Kesswill ensinou que não seremos derrotados pelos adversários que surgem nos entreveros das relações, mas pelos sentimentos e sofrimentos que insistimos em ignorar. Uma prática que os permite campear soltos até nos dominar por completo. Assim como as doenças do corpo, as enfermidades da alma se alastram por falta de tratamento. A insensibilidade não simboliza qualquer vitória, porém, uma triste redução de potencialidades. Um jeito de se amiudar para sobreviver de um jeito acanhado ao invés de crescer para viver da melhor maneira possível”.

Bebemos o chá sem pressa e sem palavra. Li Tzu me instava a pensar sobre o meu comportamento, a maneira como eu lidava com os meus sentimentos e elaborava as experiências à medida que as vivia. Um exercício indispensável de autodescobrimento, fundamental às genuínas transformações. A base da evolução. Tudo mais é maquiagem e encenação. Confessei que havia uma série de situações que me fizeram sofrer. Algumas tinham ficado para trás, pertenciam ao passado. Outras, como algumas relações profissionais e familiares prosseguiam por se manterem ativas. Contudo, eu as tinha equacionado dentro de mim. Disposto a colocar o meu coração diante do espelho da verdade, o mestre taoísta questionou: “Acomodou-se ao sofrimento, o tornando suportável, ou alcançou a vitória de o desmanchar definitivamente?”. Falei não saber como identificar a diferença. Li Tzu desfez a dúvida: “Se ao relembrar os fatos for tomado por uma sensação desconforto, significa que houve somente uma acomodação. Ele está guardado, porém, ativo. Caso a lembrança traga a alegria do aprendizado e da superação, o sofrimento foi desmontado definitivamente. Já não causa mais dano”.

De diferentes maneiras, todos sofrem. Comentei que gostaria de entender melhor sobre o funcionamento das dores emocionais. Li Tzu foi didático: “Fomos condicionados a sentir medo, a guardar mágoas, a reagir mal diante de situações insignificantes. A usar coisas, como automóveis e casas, como representação da imagem pessoal. Bens materiais são utilizados como régua de sucesso. Privilégios sociais, políticos e jurídicos funcionam como fonte de poder e superioridade. Idolatramos os perfeitos contornos do corpo em detrimento à beleza da alma. Invertemos os valores da vida. Criamos um ambiente propício a frustações e contrariedades. Passamos de um aborrecimento a outro sem descanso nem trégua. O comportamento dos outros incomoda sobremaneira, a ponto de o sujeito desconsiderar a si mesmo como o centro gerador do próprio bem-estar. Fomentamos a intolerância e a impaciência. Estabelecemos como meta de felicidade conquistas que independem da nossa vontade ou capacidade. Abrimos mão do poder de redirecionar a vida. A nossa própria vida. Sem darmos conta, nos esgotamos sem sair do lugar. Somos o oceano dos sofrimentos que nos afogam”. Bebeu um gole de chá e prosseguiu: “O sofrimento tritura os sentimentos até o limite do insuportável. Desequilibra, fragiliza, infelicita, impacienta, leva a conclusões falsas, reduz possibilidades e faz desperdiçar oportunidades. Estimula a agressividade ou o desânimo conforme as estruturas mentais e emocionais do indivíduo. Um perigoso círculo vicioso que se retroalimenta com dores contínuas e crescentes”.

Questionei como eu poderia me tornar apto para reverter o processo. O mestre taoísta explicou: “Há prazeres que geram dor desmedida, existem prazeres que proporcionam sincera alegria, mas desaprendemos a distinguir qual é qual antes de o sofrimento se instalar. A diferença estabelece o cais ou o caos. Onde podemos aportar em segurança ou os mares que iremos naufragar”. Perguntei se ele se referia a alguma situação específica. Li Tzu esclareceu: “Falo do todas as situações, mas falo também de uma situação específica. No caso, ao seu ato de renúncia aos cargos que tinha na Ordem. Por não saber identificar ou se recusar a aceitar o sentimento que o envolveu ao saber da decisão do Velho em nomear o Alex para uma função na qual você ficaria subordinado, o fez reagir mal. Contudo, na tentativa de esconder de si mesmo e ocultar dos demais monges o autêntico sentimento que movia a sua escolha, elaborou uma renúncia com ideias nobres de abnegação e renovação. Se houvesse sinceridade, a paz transbordaria. Como não há, permanece uma tensão velada em seus gestos e palavras”. Contestei. Ele estava enganado. Questionei o modo pelo qual chegara àquela conclusão. O mestre taoísta mostrou a sua perspicácia: “Pirotecnia”, disse somente. Sim, eu tinha usado esta palavra para adjetivar o modo de agir do Alex, mas não entendia o que ele queria me mostrar. Ele esclareceu: “O tom sarcástico no uso do termo para ilustrar os fatos, mostrou existir um sentimento incompreendido e revelou a dor reprimida. O sarcasmo e a ironia são nefastas vias de agressividade disfarçada, porém, socialmente aceitas. Sendo até mesmo aplaudidas como suposta manifestação de bom teor intelectual. No entanto, a aceitação social não excluí a violência embutida no ato. A depender do indivíduo e da situação, o sofrimento tem o poder de comprimir ou esgarçar, implodir ou explodir, nos fazer acabrunhados ou impetuosos”.

Desconcertado, deitei a xícara sobre a mesa e perguntei se ele alegava que eu tomara a decisão de me afastar dos cargos de diretor e professor movido por ciúme ou inveja. Falei em tom de indignação. A acusação era severa. Li Tzu não se alterou, manteve a serenidade, os seus olhos fixos nos meus e devolveu a pergunta: “Defina o cais que aportará ou caos que viverá… Diga você”.

Contive o ímpeto de me levantar e ir embora. Ele queria me ajudar. Para tanto, eu tinha que ficar e enfrentar. Não a ele, mas a mim mesmo. Como ensinou o alquimista do Recôncavo, narciso acha feio o que não é espelho. Ciúme e inveja, jamais. Sentimentos sombrios já transmutados e superados, afirmei. O ciúme se caracteriza pelo incômodo de não ser o polo principal do interesse de alguém. A inveja se restringe a indivíduos que não se conformam com as conquistas alheias. Em ambos os casos, insistem em reagir por instinto sem deixar aflorar os mais belos sentimentos. A minha postura não se adequava ao ciúme nem a inveja. Eu apenas não me alinhava às novas diretrizes determinadas pelo Velho. Para não atrapalhar, me afastei. Simples assim, expliquei. Li Tzu sacudiu a cabeça como quem diz não e contrapôs: “Simplória, sim. Simples, jamais. Se fosse, descortinaria os enganos que você teme revelar”. Indaguei por qual motivo eu recearia admitir os meus enganos. Em resposta, ele apenas me olhou. Não carecia de palavra. Abaixei a cabeça. Eu sabia que não há mentira maior, nem mais grave, do que aquela que cada um conta para si mesmo. Daí, o caos ao invés do cais.

Fechei os olhos e me calei por um tempo que não sei precisar. O mestre taoísta demonstrou não ter pressa. Manteve-se sentado à minha frente com uma calma e uma paciência inabaláveis. Para fazer do caos um cais, eu precisava admitir os genuínos sentimentos que moveram a minha decisão e começar a trabalhar com a verdade. Respirei fundo e confessei que, embora até então não admitisse, sentira ciúme pelo fato de o Velho ter escolhido o Alex, e não a mim, para o cargo de coordenador-geral. Eu sentira inveja ao ouvir tantos elogios quanto método pedagógico que ele utilizava, assim como da leitura diferenciada que oferecia sobre a matéria que lecionava. Sim, o Alex era muito bom. Contudo, ao invés de me valer da verdade desconfortável, porém, libertadora, eu escolhera uma saída de palavras elegantes para esconder sentimentos falaciosos. Era o prazer de curta duração com sofrimento de longo prazo de que Li Tzu falara há pouco. Tive de vencer todos os meus dragões internos para verbalizar que, sim, eu agi por ciúme e inveja!

Ao contrário do que imaginava, fui envolvido pelo frescor de um sentimento puro de autocompaixão e amor-próprio. Quando um sentimento surge para substituir outro, a transmutação se faz sem demora. Somente assim pude desafazer o sentimento que me afogava em sofrimento. O Alex e o Velho mereciam todo o meu amor. Eram pessoas maravilhosas e gostavam de mim. Entendi, na prática, que o ciúme e a inveja são incompreensões internas que criam contrariedades e conflitos desnecessários, em movimentos desgovernados de auto traição. Então, amargamos a vida, apagamos a luz. Faz-se indispensável emergir com a inveja e o ciúme à tona da consciência para reconhecer suas presenças e o alcances, assim como os enganos e desastres que provocaram, como meio de estancar suas atuações e influências. Perdoar-se a partir de um arrependimento sincero, oferece as perfeitas condições de transmutação desses sentimentos por outros, como o carinho, o respeito e a admiração. Da mágoa se faz o amor. Então, a luz volta a brilhar. Reconhecer a própria fragilidade faz germinar a semente da força. Se a verdade oferece o remédio, o amor faz cicatrizar. A renovação que o Alex levava ao mosteiro também serviria ao meu aperfeiçoamento, desde que não me faltasse humildade e simplicidade. A regeneração consiste no renascimento e na reconstrução de si mesmo com diferentes e melhores fundamentos. Era isto que me esperava.

Encerrei a minha confissão com os olhos marejados citando um axioma popular: aprendemos no amor ou com a dor. Li Tzu discordou: “A dor nada ensina. A dor é o recurso limítrofe da vida para despertar o amor desconhecido ou desprezado. Enquanto o amor não chegar, o indivíduo não aprenderá. O sofrimento estreita a mente, turva a visão e envenena o coração. Se insistir em se manter distante do amor, a dor o fará naufragar após sucessivas colisões com os rochedos da incompreensão e da amargura. Somente quando a dor aceita o amor como timoneiro, a embarcação da vida ajusta a rota, saindo dos mares tempestuosos do caos para aportar no cais seguro da paz”.

Neste momento, Meia-noite, o gato negro que também morava na casa, entrou na cozinha, saltou para cima da geladeira, me olhou por alguns instantes, bocejou e adormeceu, em claro sinal que aprovava o meu novo padrão vibracional. Rimos. Ponderei que aquela conversa tinha encerrado a função da viagem. O meu coração pedia para eu partir rumo ao mosteiro. Encontrar com o Velho e o Alex, os abraçar, admitir os equívocos e pedir que me fosse permitido reingressar na Ordem. Tive o amor e a alegria traídos pelo orgulho, vaidade, ciúme e inveja. Tudo se resumia aos meus desencontros comigo mesmo. Li Tzu pontuou: “Todos os conflitos são projeções externas de nossas insatisfações e incompreensões internas. Em verdade, ninguém tropeça por culpa de ninguém, salvo pela própria inabilidade em andar com os próprios pés”. Ofereceu-me um lindo sorriso e disse: “Agora, vá! Faça o que precisa ser feito. Não deixe a vida esperar. Quando não entendemos o cais, somos envolvidos pelo caos”.

Ao sair, passei pelo jardim de bonsais. Lembrei ter me perguntado, ao entrar, se cuidar das plantas era a razão de Li Tzu expressar tamanha serenidade em seus gestos e palavras. Embora o contato com as plantas fosse salutar, a resposta era não. Há tempos, o mestre taoísta aprendera a discernir a estrada que leva ao caos do caminho que conduz ao cais.

1 comment

Terumi janeiro 26, 2025 at 2:18 am

Gratidão 🙏

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