O ônibus que levava à pequena vila chinesa na subida ao Himalaia, onde mora Li Tzu, o mestre taoísta, apresentou problemas no motor. Para prosseguir a viagem na estrada íngreme, teria de aliviar parte do peso. Metade dos passageiros desceriam para aguardar outro ônibus. Como de costume, fazia muito frio, ao menos para quem sempre viveu nos trópicos ao nível do mar. Ponderei que aguardássemos dentro do veículo para aproveitarmos sensação de bem-estar permitida pela calefação, não afetada pelo defeito do motor. O motorista explicou que uma regra da empresa determinava que em situações como aquela a decisão caberia ao responsável pelo transporte. No caso, o próprio motorista. Ele esclareceu que o nível de vulnerabilidade dos passageiros determinaria quem prosseguiria e aqueles que aguardariam na beira da estrada por outro ônibus. Este foi o critério estabelecido. Enfermos, idosos e pessoas com crianças teriam preferência. De início, fiquei aliviado. Na época, eu beirava os sessenta anos de idade. Não tinha me atentado à longevidade dos habitantes da região que, não raro, alcançavam quase um século de existência usufruindo de boa saúde. Feita a seleção, eu tive de desembarcar. Ainda procurava pelo gorro e as luvas de lã na mochila, quando um senhorzinho veio conversar comigo. Disse estar disposto a ceder o seu lugar para mim. Sabia que eu morava em um país de temperaturas altas e teria dificuldade para lidar com o frio intenso da cordilheira. Agradeci, mas recusei. Ele insistiu. O outro ônibus demoraria a chegar. Explicou que nascera ali. O frio lhe era companheiro desde a infância. Não teria qualquer dificuldade em esperar por algumas horas ao relento. A voz da conveniência dizia para eu não perder a oportunidade, enquanto a voz da consciência me lembrava de que princípios e virtudes são ainda mais valiosos nas situações limítrofes. Numa atroz luta interna, falei que ficaria bem. Ele sorriu e entrou no ônibus. Foi quando, depois de revirar a mochila, me dei conta de ter esquecido de levar o gorro e as luvas. A minha luta contra o frio, já bastante difícil, ficaria ainda mais complicada. Instantes antes de partir, ao me observar pela janela e perceber o meu problema, o senhorzinho atirou um manto de lã na minha direção enquanto o ônibus seguia a viagem. Surpreendido e encantado pela atitude, gritei em agradecimento, mesmo sem saber se ele me ouviria.
Cheguei na pequena vila chinesa ainda de madrugada. O comércio estava fechado, assim como a única estalagem do local, onde eu sempre me hospedava. Assolado pelo frio, me dirigi à casa de Li Tzu. Como de costume, o portão estava aberto. Como a porta da cozinha sequer tinha chave, entrei. De cima da geladeira, Meia-noite, o gato negro que também morava na casa, me olhou entediado por alguns instantes e voltou a dormir em seguida. O forno à lenha estava aceso, oferecendo calor e aconchego ao ambiente. Acendi a luz. Sobre o fogão havia uma chaleira. Ao lado, dentro de um bule, algumas ervas apenas aguardavam a água quente para a infusão do chá. Preparei a bebida. Sem demora, Li Tzu surgiu na cozinha sem demonstrar surpresa com a minha presença. Tinha tido notícias do problema com o ônibus. Olhou para a lenha em brasa no forno e comentou: “Imaginei que aqui seria o seu refúgio nesta madrugada fria”. Apontou para o bule com o queixo e comentou: “Selecionei algumas ervas regeneradoras ao sistema imunológico. As misturei com outras que oferecem a sensação de bem-estar pelo relaxamento que proporcionam. Você irá se sentir melhor”. A delicadeza do mestre taoísta era encantadora e contagiante. A delicadeza é uma virtude típica ao estilo de vida daqueles que têm o cuidado de evitar qualquer mal, dano ou desconforto, por menor que seja, as outras pessoas, sem importar quem sejam. Em seguida, serviu-nos o chá e se sentou à mesa ao meu lado. Mostrei o manto de lã e contei a história com o senhorzinho. Falei da sensibilidade e preocupação de ambos comigo. Mostraram o quanto eu era importante para eles. O amor demonstrado através de atitudes como aquelas possuí um enorme significado pelo poder de acolhimento e transformação que proporcionam. Confessei que eu gostaria de possuir tamanha delicadeza no trato pessoal. Eu tinha de admitir que algumas virtudes me eram possíveis, outras eram inacessíveis por causa das minhas características pessoais. O mestre taoísta foi categórico: “Você será quem escolheu ser. Nem mais nem menos. Todos trazem em si o poder sobre a própria vida”.
Discordei. Argumentei que há multidões desejosas em ter um estilo de vida diverso daquele que possuem, mas nunca conseguirão. E sabem disto. Eu também queria ser diferente de quem eu era. Embora tivesse tentado por longos anos, algumas particularidades me impediam de efetivar a necessária transformação para alcançar a sonhada conquista. Li Tzu não titubeou: “Se você fala de resultados externos, sem dúvida o raciocínio está correto. Contudo, conquistas exteriores não garantem a vitória interior. Nesta reside o sentido da vida, não naquelas”. Pedi que explicasse melhor. Ele esclareceu: “Não temos o menor controle sobre situações e circunstâncias do mundo, pois, dependem da vontade ou do interesse de outras pessoas convergirem com os nossos. São questões complexas que nem sempre dialogam com a capacidade pessoal. Quando acontece é maravilhoso pelo objetivo alcançado; quando não, também é maravilhoso por estarmos diante de novos desafios evolutivos. A força da vida consiste no poder pessoal de compreender as prioridades e aperfeiçoar as escolhas. Faz-se necessário distinguir onde reside o poder do mundo e onde está a força da vida. São estradas nem sempre alinhadas a uma mesma trajetória. Entender a diferença, assim como traçar uma rota que lhe satisfaça, define um genuíno estilo de vida. Ao contrário do que muitos acreditam, estilo de vida não se altera por fama ou dinheiro, mas na compreensão da importância do gosto e do olhar que o indivíduo tem em relação a si mesmo e ao mundo. Modificamos o jeito de viver ao ritmo das transformações interiores. Mesmo que as pessoas próximas não entendam nem queiram acompanhar. Não há outra maneira de evoluir e encontrar a felicidade. Isto está ao alcance de qualquer pessoa”.
Falei que não era bem assim. Ponderei que temos personalidade e temperamentos próprios, além de estar sujeitos a outras influências, como características físicas e culturais. Sem contar as situações marcantes ou traumáticas do passado, indissociáveis à pessoa à medida de como se compreende. Sem negar a beleza da singularidade e a importância das transformações, algumas características, mormente as essenciais, não são passíveis de modificação. Li Tzu disse não com a cabeça e pontuou: “Esse raciocínio é contrário a ideia de evolução. Inexistem aspectos nocivos ou desagradáveis em uma pessoa que não possam ser aprimorados à perfeição. Evoluir é aguçar a percepção e a sensibilidade para estruturar um novo jeito de agir e reagir diante de todo tipo de situação. Somente isto muda um estilo de vida. Isso todos podem”.
Argumentei que em razão de algumas experiências desastrosas é comum desenvolver um olhar pessimista, a desconfiança sobre tudo e todos, a aspereza nos relacionamentos, o estimulo à raiva, mágoas, inseguranças e medos, a descrença nas virtudes e no amanhã. São apenas alguns aspectos, entre muitos outros, que servem como molde definitivo ao jeito de ser e viver de uma pessoa. Eu era um exemplo dos meus próprios argumentos. Nascido em um bairro hostil e violento, no seio de uma família que não compreendia nem atendia as minhas necessidades emocionais, não havia mais como trocar a forja que laminou no fogo e no martelo a têmpera de quem eu havia me tornado. Algo em mim era passível de transformação; outro tanto jamais seria modificado. Eram marcas definitivas, afirmei com segurança. Delicadeza e paciência, apenas para ficar em alguns poucos exemplos, não eram para mim. O jeito brusco, irritadiço e impulsivo que eu reagia nas vezes que me sentia prejudicado era uma luta que eu sabia inútil. A mansuetude e a serenidade que eu tanto admirava em algumas pessoas, jamais estariam disponíveis para mim. Li Tzu me olhou com doçura e perguntou: “Você me diz que muitas das particularidades do seu temperamento e da sua personalidade, que tanto lhe desagradam, assim como comportamentos alterados e disfuncionais surgidos de situações desconfortáveis do passado serão carregados como fardo e ferida até o último dia do dia sem fim? Que somos vítimas e prisioneiros de características, fatos e circunstâncias sem possiblidade de cura ou libertação?”. Sim, era exatamente isso, afirmei. Temperamento e personalidade são características inatas ou adquiridas muito cedo, se solidificando com o passar do tempo, sendo impossíveis de ser esculpidas mais tarde, ainda que pese o desgosto pessoal. Algumas escolhas me eram permitidas. Outras não, ratifiquei.
O mestre taoísta bebericou o chá sem pressa, como se procurasse as palavras exatas que pudessem mostrar o equívoco de uma crença que me restringia e espremia quanto as minhas próprias possibilidades e capacidades. Ele ponderou: “Você é menos quando poderia ser mais. Isto acontece com quem tem medo de crescer”. Retruquei de imediato o absurdo da afirmação. Claro que eu queria mudar e evoluir. A questão é que eu tinha de ter consciência do que era passível de modificação e o que era imutável. Li Tzu explicou: “Evoluir é se tornar alguém até então desconhecido. Terá de reaprender a lidar com resultados diferentes daqueles aos quais estava acostumado. Assustado, duvidará se a mudança será benéfica. Por se tratar de uma inovação consciencial, uma revolução em si mesmo, teme não saber em quem se tornará. Adiará indefinidamente o momento do movimento. A mente é fértil na produção de desculpas e subterfúgios. Escolherá se amiudar na crença absurda da imutabilidade. Repetirá que não tem escolha até acreditar na própria mentira”. Bateu com o dedo indicador sobre a mesa e pontuou com seriedade: “Quem você é o trouxe até aqui, jamais conseguirá o levar adiante. Para seguir em frente terá que se transformar em outro, precisará ir além de si em si mesmo. E isto passa necessariamente por uma nova moldagem do temperamento e da personalidade como método indispensável a um estilo de vida diferente e aperfeiçoado”.
Achei estranho que o temperamento e a personalidade servissem para desenhar um estilo de vida. Li Tzu esclareceu: “São os alicerces centrais a sustentar os demais traços da transformação. A mudança no modo de vestir, no corte de cabelo, de residência, emprego e profissão, assim como tatuagens ou viagens a lugares exóticos, nem sempre refletem transformações internas. Não raro, demonstram insatisfações íntimas que gritam por compreensão sem que o indivíduo consiga fazer a exata leitura da confusão interna que lhe subtraí o sentido da vida. Funcionam como fugas para uma solução recusada. Em verdade e em essência, o estilo de vida apenas se modifica com a remodelagem do temperamento e da personalidade. Grosso modo, já que o assunto é vasto, o temperamento reflete como a pessoa lida com as suas emoções e sentimentos, como reage diante contrariedades e dificuldades. Por sua vez, a personalidade se aprimora à medida que o caráter e a ética se tornam mais valiosos do que os interesses materiais e desejos meramente sensoriais. O quilate das escolhas e a suavidade dos movimentos se refinam substancialmente. A consciência – seja sobre si, seja em relação a todas as coisas, pessoas e situações –, aos poucos, ganha clareza e perde a amargura. Um novo e genuíno estilo de vida se estabelece a partir da criação de uma criatura diferenciada. Mudam-se as prioridades, posturas, valores e direcionamentos. Não há outro jeito para encontrar as maravilhas do mundo e a alegria da vida”.
Diante daquelas definições, sim, era possível aperfeiçoar a personalidade. Sem dúvida, caráter e ética são passíveis de lapidação. Eu era prova disto. Prioridades e escolhas comuns tempos atrás eram inconcebíveis nos dias atuais pelos erros e absurdos que agora eu conseguia enxergar. Sob o aspecto moral, aquele homem não existia mais. Educar-se tem, entre outras finalidades, aguçar a capacidade de discernir o certo do errado, não se valer do mal sob a equivocada crença de fazer o bem. Um aprendizado necessário e sem fim. Essa era a face cabível à evolução consciencial. De outra face, sobravam motivos para eu acreditar na imutabilidade do temperamento. Eu também era prova disto. Por muito tempo busquei por um improvável equilíbrio emocional capaz de me manter no eixo da luz quando diante de contrariedades e problemas provocados por outras pessoas. Nunca consegui; por fim, desisti. Para mim, definitivamente, o temperamento era uma característica inata ou adquirida na tenra idade que, com o passar do tempo, se tornara imutável. Li Tzu explicou: “A origem do erro está na premissa do raciocínio. Ninguém tem o poder de roubar a paz de ninguém. Cada pessoa faz isso consigo mesma. Acontece quando se deixa dominar pela raiva”. Interrompi para dizer que eu não gostava de sentir raiva. O mestre taoísta ponderou: “Ninguém gosta. É desagradável, nos deixa mal, furta o que há de melhor em nós. A raiva é uma nefasta herança ancestral. A raiva sempre foi usada como instrumento de dominação, subjugação, convencimento, para dobrar alguém as nossas verdades e interesses. Fruto da ignorância e do egoísmo, a raiva nos priva da serenidade, da sensatez e do equilíbrio. Quem me maltrata não é a raiva alheia, mas a minha própria raiva. O que me prejudica não é o comportamento dos outros, mas a incapacidade de interpretar e reagir a eles de outra maneira”. Surpreso, indaguei se ele sugeria que sentir raiva era uma simplesmente uma escolha minha, sem qualquer conexão com a ação vinda em minha direção. Li Tzu não pestanejou: “Sim”, respondeu como se nenhuma outra palavra fosse necessária.
Se era assim, questionei o motivo pelo qual eu não conseguia reagir sem raiva em situações de provocação, contrariedade e conflito. O mestre taoísta franziu a sobrancelha e afirmou: “Falta coragem”. Falei que não fazia sentido. A coragem nada tinha a ver com a raiva, afirmei. Li Tzu explicou: “Estar diante de um problema, dificuldade ou qualquer outro desafio existencial, por condicionamento atávico, nos remete à sensação de guerra. Ora, desde tempos imemoriais, a raiva e o medo são os sentimentos comuns aos campos de batalha. Como o medo nos torna impotentes, aprendemos a usar a raiva para guerrear. De modo inconsciente, acreditamos que a raiva é o sentimento adequado às lutas. Um vício comportamental que aplicamos aos relacionamentos atuais de todo tipo ou espécie. A raiva traz a ilusão de força. Ser mais forte que o outro equivale a vencer a guerra. Um engano comum e vulgar. É neste ponto que nos perdemos de nós mesmos. Afastamo-nos da essência que individualiza, embeleza e ilumina. Então, tombamos no desequilíbrio emocional que tanto fragiliza e reduz a capacidade de movimentos internos e deslocamentos externos”. Perguntei onde entrava a coragem nesse processo. Ele me desconcertou: “Falta coragem para ir a guerra sem medo nem raiva. Ficamos com a equivocada sensação de vulnerabilidade”.
Bebeu mais um gole de chá antes de continuar: “Refiro-me aos relacionamentos como se fossem batalhas conscienciais. E são. Nada há de errado nisto. O erro está em levar a raiva das guerras ancestrais aos atuais desafios existenciais. O indivíduo se perde e se amiúda, o mundo se estreita e corta, a vida amarga e segrega. As escolhas se reduzem, não porque deixaram de existir, mas pela incapacidade de as enxergar. A fragilidade pela perda de poder sobre si mesmo dá margem à instabilidade mental e emocional. A agonia parece não ter fim. Nos tornamos menos quando poderíamos ser mais. Ninguém nos ensinou a lutar sem raiva. É preciso aprender. Então, o temperamento, o qual se acreditava imutável, será remodelado pelas mãos de sentimentos nobres e ideias claras através da manifestação de virtudes como a humildade, a abnegação, a simplicidade, a paciência, a compaixão e a delicadeza. Há amor e sabedoria em todas as virtudes. A força de movimento se expandirá e o equilíbrio, até então impossível, será definitivamente conquistado. O sofrimento vai embora por falta de lugar onde morar. O indivíduo somente se torna senhor de si ao conseguir escolher os sentimentos regentes das suas ideias e escolhas. Do contrário, se manterá escravizado pelas emoções que sempre o apequenaram”. Em seguida, ressaltou: “Faz-se necessário reaprender a sentir os sentimentos. Somente a exata compreensão de cada um deles permitirá que sejam usados a favor da própria evolução”. Abriu um surrado livro do Tao Te Ching, que sempre ficava sobre a mesa da cozinha para consultas eventuais, e me mostrou a estrofe inicial do poema trinta e três: Vencer os outros é poder / Vencer a si mesmo é iluminação. Depois, concluiu: “Alterar verdadeiramente um estilo de vida consiste em mudar o campo de batalha. Nunca será nada contra ninguém. A vida encontra sentido na luta interna para aperfeiçoar a personalidade e redesenhar o próprio temperamento como única maneira de prosseguir na jornada rumo à luz. Não existe outra vitória. Tudo mais se resume a enfeites, maquiagens e enganos”.
O dia amanhecia. Os alunos começaram a chegar para as aulas. Terminamos o chá sem dizer outra palavra. Não precisava. Ainda fiquei na vila por algumas semanas estudando com o mestre taoísta. Não precisava. A lição fundamental a um novo estilo de vida para eu melhor me relacionar comigo e com o mundo tinha sido ensinada naquela madrugada.
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Obrigada
Gratidão 🙏
Contos que edificam a alma humana 🙌🙏🎁