Hipona, África romana. Anos 400. Alguns homens e mulheres trabalhavam na manutenção de uma agradável residência nos arredores da cidade. Envolvidas em heras, cuidadosamente podadas, as paredes verdes davam um encantador frescor à casa. Árvores frondosas e frutíferas espalhadas no entorno tornavam o local bastante acolhedor. Um dos operários me informou se tratar do refúgio episcopal, onde o bispo gostava de se recolher para pensar e escrever, longe do burburinho e das intrigas da cidade. Era uma pessoa culta e gentil, educado em boas escolas pelos melhores professores de Roma e Cartago. Tivera uma vida de prazeres e agitações típica das classes abastadas. Tinha tudo, mas nada lhe bastava. Até se decidir pela estrada da fé para alcançar a alegria serena da paz e da dignidade que tanto desejava. Então, se desfez de todo o patrimônio e se converteu. Perguntei se havia alcançado o objetivo. O trabalhador respondeu que o bispo parecia um homem tranquilo, justo e feliz. Contentava-se com pouco, nada lhe faltava. Era querido e respeitado por todos com quem convivia. Falei que gostaria de o conhecer e conversar com ele. “Podemos fazer isso agora”, fui surpreendido por uma voz alegre atrás de mim. O bispo retornava de um passeio solitário por entre o arvoredo. Ofereceu-me um sincero sorriso de boas-vindas e me convidou a acompanhá-lo. Sentamo-nos na aprazível varanda da residência. Uma bandeja com uma jarra de refresco e copos foi colocada sobre a mesa. Iniciei a conversa ao comentar o fascínio que havia em mim por histórias de transformações angulares de homens e mulheres que mudaram o rumo de suas vidas ao realizar escolhas que poucas pessoas se mostravam capazes. O bispo franziu as sobrancelhas e explicou: “A redenção é parte essencial à jornada evolutiva. Um processo difícil, por todas as rupturas necessárias, porém, belíssimo pelas conquistas advindas. A redenção é o processo de libertação através da regeneração, o renascimento ou a reconstrução em si mesmo, por intermédio de novos fundamentos. Ao remodelar o pensar e o sentir, o indivíduo se permite um diferente jeito de ser e viver. Quando aquele que somos já não mais responde, entrega ou conduz a nenhuma resposta, alegria ou lugar, evidencia que o modelo comportamental utilizado não mais funciona. É momento de se reinventar. Assim acontece com todos. Muitos não se dão conta das prisões que habitam. Viverão cativos enquanto se negarem a romper com os padrões ineficazes pelos quais interpretam a vida e tentam se mover pelo mundo”.
Bebeu um gole do refresco. Esperou que eu também bebesse. Estava delicioso. Perguntei se a liberdade oferecida pela redenção exigia medidas tão extremas como as praticadas por ele. O bispo respondeu que não com a cabeça e ratificou: “De jeito nenhum. Desapego não fala sobre o que deixamos ir, mas sobre as prioridades que precisamos manter. Cada história é única, cada caminho é singular. Não há dois iguais. Contudo, como em qualquer transformação, uma vida de práticas e hábitos precisará ficar para trás. Quase nunca é fácil. Embora haja o sincero desejo pela mudança, temos enorme dificuldade para mudar quem somos. Passamos muito tempo à espera de que o mundo se adeque ou atenda aos nossos desejos, até o dia que adquirimos a consciência sobre onde gira o eixo que movimenta a felicidade e a paz. A vida não se modifica para agradar o paladar de ninguém. Cabe a cada um encontrar a genuína doçura da vida. É impossível caminhar sem transformar a si mesmo infinitas vezes. Um contínuo despir para que a essência possa aos poucos emergir. O mundo permanece o mesmo. No entanto, passamos a nos mover pela vida através de um diferente viés. A resiliência é a mola-mestre dessa engrenagem evolutiva”. Interrompi para dizer que eu não tinha entendido. Ele explicou: “Quando não conseguimos mudar uma situação, resta o desafio de mudar a nós mesmos. Isto não significa se deixar corromper ou deformar, porém, vislumbrar e se moldar a uma nova realidade a partir de um olhar mais aperfeiçoado”.
Questionei o motivo de a resiliência ser a virtude preponderante às transformações pessoais. O bispo observou: “A resiliência não o capacita apenas às mudanças internas, mas o aperfeiçoa para a vida e permite o prosseguimento da viagem em condições ainda melhores. Imagine um viajante cuja estrada o deixa à beira de um penhasco. Ele pode se sentar e chorar, lamentando a falta de sorte ou se considerar abandonado por Deus. Passará o resto da existência amaldiçoando o precipício, culpando-o por sua infelicidade. Pode, também, aprender a escalar, construir pontes ou buscar outro caminho. Não é fácil, porém, sempre possível. Ao fazer, seguirá em frente. O mais interessante é que levará consigo, dali por diante, o poder de não mais temer nem se assustar com os abismos, pois, aprendeu a lidar com a situação e a confiar na sua capacidade de superar as adversidades. Se levar essa ideia como equação para todos os seus problemas, entenderá o metódo pedagógico da vida de utilizar as dificuldades em prol do aprimoramento individual. A superação do obstáculo fornece equilíbrio e força ao movimento seguinte. Assim, passo a passo, adquirimos serenidade e determinação em nossos deslocamentos. A paz não se instala na ausência de problemas, mas na capacidade de manter a tranquilidade para encontrar caminhos diante dos abismos existenciais”.
Bebeu mais um pouco do refresco antes de fazer uma interessante interpretação: “No Livro de Lucas, Jesus ensina: todo aquele que não receber o reino de Deus como uma criancinha, não entrará nele. Muitos interpretam essas palavras como se as crianças servissem de analogia à pureza. Ocorre, que esses pequenos, em verdade, não são puros, porém, ingênuos, pois na tenra idade desconhecem os meandros diferenciadores entre o bem e o mal. A pureza é uma virtude de alto grau consciencial, apenas possível aos indivíduos que já conhecem as exatas dicotomias entre luz e sombras. Estes, tendo o mal à disposição para alcançar os seus intentos, dele abdicam para somente usar o bem como instrumento das suas conquistas”. Fez uma pausa e continuou: “Por esta razão, entendo que o mestre falava sobre a resiliência. As pessoas, assim como as plantas, nascem delicadas e flexíveis, predispostas a crescer e se adequar à vida. Nunca é a vida que se adapta aos seres. Quando um jeito de ser e viver, pensar e sentir, não mais oferece respostas e soluções, demonstra a ineficácia para o levar adiante. Embora o tenha trazido até aqui, suas engrenagens ficaram endurecidas e enferrujadas. Não funcionam mais. Na exigência pela evolução, a vida nos oferece a regeneração. Renascer em si mesmo se traduz na capacidade de se recriar, reinterpretando a realidade sob novas verdades e remodelando os movimentos através de diferentes fundamentos. Ninguém consegue tamanha adaptação sem a devida fluidez para se adequar a um diferente olhar. Objetos sólidos não cabem em muitos lugares; os fluídos têm a capacidade de se moldar a qualquer recipiente. No caso, o recipiente é a nova realidade redesenhada por um olhar mais claro e aguçado. Ali viverá as próximas experiências até que uma diferente verdade se apresente. Sem resiliência, o indivíduo desistirá de viver outra realidade. Ele não caberá nela”.
Bateu com o dedo na mesa para ressaltar as próximas palavras e pontuou: “Somente movimentos internos ousados, e nunca tentados, darão sustentação a deslocamentos criativos e inusitados através dos dias. Assim nos reinventamos. Não se trata de perder a própria essência, mas de a valorizar. Para isto servem os problemas e as dificuldades. Negar-se à transformação é abdicar da evolução. A inflexibilidade equivale à recusa ao desafio da mudança e ao aprimoramento pessoal. Eis a autêntica cronologia do envelhecimento. Antes mesmo de falecer, pessoas de todas as idades morrem rígidas e secas dentro de seus labirintos existenciais por se recusarem à mudança. Negam-se a ir além de quem são. A resiliência e a determinação são amigas da vida. O rigor e o enrijecimento são aliados da morte”. Interrompi para questionar se determinação e rigor não se confundem. Ele foi enfático: “Não. A determinação dialoga com o novo e com as diferenças. O rigor se encerra na intolerância e na estagnação. A determinação é dinâmica. O rigor é estático”.
O bispo abordou outro aspecto interessante da resiliência: “Trata-se de uma virtude afinada ao amor e ao perdão. Todos somos falíveis, imperfeitos e cometemos erros. Sem exceção. Como iremos amar e perdoar, virtudes fundamentais à liberdade, a paz e felicidade, se formos inflexíveis diante dos equívocos alheios? Com qual legitimidade podemos desejar o amor e o perdão das pessoas enquanto o rigor ditar o padrão do nosso comportamento? Exigir de alguém o que não temos para oferecer é a origem de quase todos os conflitos. Arvoramo-nos em credores de bens que jamais tivemos, tampouco entregamos. Assim germinam as ervas daninhas do orgulho, da vaidade, da ganância e do egoísmo no coração das pessoas, os deixando refratários ao amor e ao perdão. Acreditam que soberba é honra, arrogância é força e rigor é justiça. As armas dos tolos. Um exército inflado em ilusões. O poder das armas conduz à derrota. Alvos agigantados são mais fáceis de acertar. Sentem-se poderosos por seus tamanhos aparentes. Esquecem que as árvores grandes são as preferidas dos lenhadores. Apesar de robustas, ficam frágeis frente ao aço afiado do machado da vida. Os inflexíveis são agressivos; os resilientes, pacíficos. Os rigorosos são enormes; os flexíveis, quase imperceptíveis. Os enrijecidos são barulhentos, afobados e imutáveis; os maleáveis são silenciosos, serenos e mutantes. Os inflexíveis lamentam e ficam; os resilientes se transformam e seguem”.
Comentei que ninguém se modifica enquanto não entender que o seu estilo de vida, ao invés de o impulsionar à evolução, o aprisiona em escolhas e comportamentos avessos a qualquer transformação. Existe dificuldade em aceitar os próprios enganos e erros. O bispo concordou com a cabeça e acrescentou: “A humildade é elemento indispensável à resiliência. Não se faz necessário esperar para mudar. Mesmo o que está bom sempre pode melhorar. No entanto, enquanto o indivíduo se acreditar grande, poderoso e detentor da verdade se manterá insubmisso às mudanças. Por se negarem à regeneração contínua, impérios poderosos de outrora terminaram em ruínas. Apegaram-se ao que sabiam e ao que eram. Acreditavam que bastava. Tudo muda. O que é inflexível, pesado e áspero, perece. Assim também acontece conosco. O ciclo da vida se define em criação, desenvolvimento e regeneração. Os novos ciclos trazem consigo aspectos mais aperfeiçoados do que o anterior. Sempre. Esses ciclos regenerativos e redentores acontecem dentro da gente, tantas vezes estejamos dispostos a nos reinventar para evoluir em uma mesma existência. E depois em outras. A marcha do progresso espiritual exige o constante trabalho de reconstrução sob diferentes e melhores fundamentos. Quando nos negamos à regeneração, ciclo se perfaz em criação, desenvolvimento e destruição. Então, iremos desabar em amarguras, angústias, tristezas e revoltas demolidoras, nossos invasores bárbaros, como ocorreu com os sumérios, babilônios e hititas”.
Questionei se esse processo sem fim de desconstrução e reconstrução não seria doloroso demais. O bispo pontuou: “Manter-se cativo das próprias teimosias e incompreensões é muito mais penoso. O sofrimento está diretamente relacionado à resistência oposta à mudança. Quanto maior o orgulho e a vaidade, mais dolorosa é a transformação. Descortinar mentiras que nos fizeram viver personagens com poderes fictícios e belezas efêmeras costuma nos envergonhar pelo ridículo e arrependimento de muitas situações vividas. Também por isto a humildade é fundamental a resiliência. O impacto da verdade não pode causar deformação, porém, conduzir à evolução. Sem nenhum remorso, deixe ir aquele que você não é mais; alegre-se com quem irá se tornar”. Arqueou os lábios em sorriso e fez uma doce provocação: “Quem chegará é bem mais interessante do que aquele que partiu”.
Perguntei como eu poderia melhor conduzir as minhas transformações. Ele explicou: “Para não se tornar pesado e enrijecido, jamais ocupe os compartimentos da bagagem com mágoas e ressentimentos. Perdoe a todos e a si mesmo. Confie nos seus dons, virtudes e verdade; são as perfeitas ferramentas da viagem. Siga suas intuições e inspirações, a voz da alma e a voz do Alto. Escute, mas tenha cuidado com as outras vozes. Conviva com muitas pessoas, os relacionamentos são mananciais de aperfeiçoamento, mas não fique muito tempo afastado do silêncio e da quietude, pois, são fundamentais para elaborar as experiências vividas. Se recuse a ser hoje quem você foi ontem; evolua um pouco todos os dias. Não brigue nem obrigue ninguém a o acompanhar. Ame do melhor jeito que conseguir e siga em frente. O que é leve e suave, prospera. Admita a ignorância caso queira aprender. Quem não se aceita pequeno e imperfeito jamais conseguirá crescer e se aprimorar”. Fez uma pausa antes de concluir: “Sempre é possível evitar o caos. Acreditar-se grande, poderoso e perfeito é causa impeditiva à evolução. Estes, cedo ou tarde, serão varridos pelas tempestades que provocaram em si mesmo. Então, serão obrigados a fazer a reconstrução a que antes se recusaram por aversão à mudança. A vida exige movimento. O caos não chega para punir, mas para ensinar a caminhar”.
Fomos interrompidos por um dos funcionários da casa. O bispo precisava retornar a Hipona. Tinha assuntos a tratar com o governador da cidade. Falei que eu também precisava partir, mas não sabia como. Perguntei se ele poderia me ajudar. Ele respondeu que sim com a cabeça, pediu que eu fechasse os olhos, e disse: “Todas as noites, antes de dormir, faço a retrospectiva daquele dia. Repasso todas as minhas atitudes, diálogos e escolhas, como se um mestre avaliasse um aprendiz. Coloco-me no lugar dos interlocutores das minhas ações e analiso se, caso estivesse no lugar deles, como eu gostaria de ter sido tratado. Compreendo os pontos em que eu poderia ter feito diferente. Não me sinto mal ou culpado por isso, mas assumo perante a mim mesmo o firme compromisso de fazer melhor da próxima vez. A vida sempre oferece a oportunidade de acertar mais adiante. Cabe-nos não desperdiçar”. Fechei os olhos e segui as orientações do bispo. Não foi difícil encontrar vários movimentos incompletos ou erráticos em minhas atitudes recentes. Procurei entender por qual motivo tinha agido desta ou daquela maneira. O erro se conserta na origem para que não haja reincidência. O exercício me mostrou mil possibilidades de transformação. Bastava haver resiliência para eu conseguir morar no meu novo olhar. Ao ficar maravilhado com as oportunidades, me deparei com uma linda mandala ilustrada com sois dourados e rosas vermelhas. Sorri em agradecimento e atravessei o portal.
Poema Setenta e Seis
As pessoas, assim como as plantas,
Nascem delicadas e flexíveis,
Morrem rígidas e secas.
A resiliência e a determinação são amigas da vida,
O rigor e o enrijecimento são aliados da morte.
O poder das armas conduz à derrota,
Árvores grandes são as preferidas dos lenhadores.
Tudo que é pesado e áspero, perece.
O que é leve e suave prospera.
2 comments
Incrível, como sempre! Espero que que lance o livro completo com todos os poemas… já quero!
Sempre em bom momento ler as profundas reflexões e partir para a reforma íntima. Gratidão 🙏