Havia algum tempo, eu não visitava o Loureiro, o sapateiro amante dos livros de filosofia e dos vinhos tintos. Como de costume, era madrugada quando o trem me deixou na estação. Era prazeroso, embora exigisse cuidado, andar pelas ruas estreitas e sinuosas daquela pequena cidade. De tanto uso, as pedras do calçamento antigo se tornaram lisas. O orvalho da noite as tornava ainda mais escorregadias. A iluminação precária dos lampiões favorecia ao esplendor das estrelas que preenchiam o céu com infinitos pontos de luz de diversas grandezas, formando desenhos e aguçando a imaginação. De todos os espetáculos de beleza proporcionados pela natureza, e existem muitos, esse é um dos que mais me encanta. Como se não bastasse, uma elegante lua minguante apontava no canto, logo acima do telhado das casas, como se fosse a assinatura do artista na tela sagrada. O único som vinha dos meus passos. Eu pisava devagar para não acordar a cidade adormecida. Ao dobrar a curva da rua, avistei a lendária bicicleta do sapateiro encostada ao poste em frente à oficina, sinalizando que estava aberta. Os horários de funcionamento do ateliê eram inusitados e tão famosos quanto a habilidade do Loureiro em costurar sapatos e ideias. Fui recebido com um forte abraço e um sorriso sincero, como acontece com os bons amigos. O aroma do couro se misturava a fragrância do café. Notei haver mais alguém. Lúcia, uma sobrinha do sapateiro, chegara um pouco antes. Fomos apresentados. Era uma mulher com uma beleza fora dos padrões. Com um pouco mais de trinta anos, tinha cabelos ruivos cortados rente à nuca e olhos penetrantes, num tom castanho, tão claro que se aproximava do amarelo. Características físicas que acrescentavam um intenso magnetismo a sua presença. Embora a fala fosse segura e os gestos firmes aparentassem uma pessoa senhora de si, de dentro dela emanava uma indisfarçável tristeza. Ou seria uma agonia? Eu não sabia qual sentimento a incomodava. Sabia apenas que por trás daquela mulher de aparência forte, havia um sofrimento capaz de demolir as suas estruturas e a levar à ruina existencial, caso não fosse revertido.
A moça precisava conversar. Ela procurava por ajuda e estava ali para isto. Ninguém melhor do que o Loureiro para oferecer lentes claras e de longo alcance para observarmos tudo e todos sob diferentes ângulos e com maior nitidez. Sofremos quando teimamos em ver quem somos, o mundo e a vida com lentes turvas ou para distâncias curtas. Imediatamente, desconversei. Falei que tinha passado somente para um abraço. A padaria não tardaria a abrir, comentei. Eu estava com saudade do maravilhoso sanduiche feito com frios e queijos da região. Ela sorriu diante da minha falta de habilidade em dar desculpas e disse para eu ficar. Estava frio lá fora e ainda faltavam um par de horas para a padaria abrir. No mais, talvez eu pudesse oferecer algumas nuances às múltiplas cores sempre disponíveis na paleta de ideias do seu tio. Aceitei o convite e me sentei. Sem demora, tínhamos três canecas fumegantes de café sobre o balcão de madeira para ajudar a impulsionar o raciocínio.
Lúcia estava casada com Oliver havia dez anos. Tinham terminado de se formar na universidade e começavam a trabalhar quando tomaram essa importante decisão. Estavam apaixonados. Ao longo desse tempo a relação se deteriorou por vários motivos. Alegou que o marido sofria de uma forte dependência emocional em relação aos pais e irmãos, o que a impedia de construir com ele um novo núcleo familiar a partir do casamento. Não sentia que o marido a olhasse como a principal parceira de uma história a ser escrita a quatro mãos, mas como coadjuvante de menor importância, cuja principal atenção se concentrava na casa dos pais. O distanciamento foi inevitável e aconteceu aos poucos. Quando se deu conta, compartilhavam a mesma casa, mas não formavam mais um casal. Faltava a cumplicidade indispensável a projetos de vida alinhados em uma mesma direção. Não havia mais qualquer resquício do amor original. Embora nunca tivessem tocado no assunto, ambos tinham relações extraconjugais. Uma espécie de consentimento tácito e destrutivo. Estava decidida a se divorciar havia algum tempo. Aguardava somente a promoção na empresa para arcar com as despesas de morar sozinha. Considerava um retrocesso retornar à casa dos pais, ainda que por pouco tempo. Administrava o processo de espera da decisão com tranquilidade, até que se descobriu grávida. As chances de o Oliver não ser o pai eram consideráveis. Tiveram relações esporádicas nos últimos meses. No íntimo, havia a convicção de que o filho não era dele. O marido desconfiaria, claro. Por questões filosóficas e humanistas, a hipótese de interromper a gravidez estava descartada. Logo o seu corpo começaria a mudar. Não tinha muito tempo. Uma lágrima rebelde revelou a fragilidade daquela mulher de aparência forte. Disfarçou e, mesmo sem ninguém perguntar, murmurou que estava bem.
Loureiro franziu as sobrancelhas brancas e a corrigiu: “Você não está bem”. A sobrinha o retorquiu: “Sim, estou bem. Eu sei me cuidar. Pode parecer estranho vir de madrugada ao ateliê para conversar, mas há tempos tenho como hábito dormir poucas horas por noite”. Fez questão de mostrar que tinha absoluto controle sobre si mesma. Um vício de comportamento ligado ao orgulho e à imaturidade, numa tentativa desesperada de se manter forte e equilibrada diante do mundo, enquanto no âmago desabava em desespero silencioso. O sapateiro ponderou: “Repetir uma mentira todos os dias jamais terá o poder de a transformar em verdade. Aceite o sofrimento, será o início da cura; admita a sua fragilidade, nela encontrará a semente da força desconhecida. Entenda que está a um passo de perder o domínio sobre a própria vida se não fizer a escolha precisa. Os próximos movimentos necessitam ser firmes, angulares e bem direcionados. Do contrário, se perderá em si mesma, como herdeira do medo e da falta de decisões assertivas”. Lúcia engoliu em seco e abaixou a vista. Aquelas palavras atravessavam o ego para lhe tocar à alma. Loureiro prosseguiu: “Negar, enganar ou entorpecer o sofrimento é método de alienação e grave desperdício de tempo, sem qualquer possibilidade de alcançar um resultado saudável. São mecanismos à serviço da deturpação da realidade e convenientes àqueles que insistem em fugir da verdade. Ao invés de colaborar com a cura, esgarçam a dor até que se torne insuportável. As quedas são abissais. Ninguém precisa deixar que isso aconteça”.
Ainda com dificuldade em admitir a fragilidade e o desequilíbrio que a distanciavam do autocontrole, Lúcia alegou que o sofrimento era a única certeza da vida. Um inimigo impossível de derrotar. Resta-nos aprender a tornar suportável o que não tem fim. O tio voltou a corrigir a moça: “O sofrimento existe na razão direta da dificuldade de compreensão, ineficiente elaboração e consequente erro quanto à resolução das experiências vividas. Logo, da imaturidade consciencial. Uma postura sincera, serena e corajosa de enfrentar o sofrimento, o examinando desde a origem em todos os seus aspectos e modos de funcionamento, demonstra a lucidez daqueles que compreendem que as dores emocionais resultam dos equivocados direcionamentos pelos quais decidiu se conduzir através dos dias. Costumam estar ligados a interesses imediatos, soluções rasas e desejos superficiais, dando causa ao desequilíbrio e à fragilidade que agoniza face às sensações de perdimento, desorientação, impotência e incapacidade. Reações de revolta ou vitimismo servem apenas para aumentar ainda mais a dor. Um processo difícil de enfrentar, mas sempre apto à reversão. Essa é a jornada de cura da alma. Disponível a todos, aproveitada por poucos”. A sobrinha se calou por alguns instantes, segurou a caneca com as duas mão, como representação simbólica de que precisava se agarrar a algo para não desabar diante do medo quanto às incertezas futuras, bebeu um gole de café e confessou estar perdida. Para todos os lados que olhava, não vislumbrava nenhuma saída. Todas as soluções pareciam ruins. O sapateiro a acalmou: “Saídas difíceis não significam soluções ruins”. A moça disse estar disposta a qualquer sacrifício para se ver livre do labirinto que se encontrava. O tio a alertou: “Quando mal compreendido, os sacrifícios nos afastam da essência e nos levam a perder o essencial, gerando ainda mais sofrimento. Trata-se de um erro comum acreditar que esse tipo de esforço conduzirá a uma resolução saudável. Nada impede que a solução difícil seja também alegre e prazerosa”. Lúcia disse não entender como seria possível. Loureiro esclareceu: “Basta que compreenda se tratar da sua reconstrução, da criação de uma nova versão de si mesma. Mais bela, leve e aperfeiçoada. Com maior suavidade, equilíbrio e força de movimento para chegar aonde nunca esteve, seja nos meandros próprio âmago, seja pelos caminhos do mundo”.
Bebeu um gole de café e explicou: “A palavra sacrifício vem do latim, significa sacro ofício ou trabalho sagrado. Se a conotação de sagrado sintetiza tudo o que nos torna pessoas diferentes e melhores, no esforço da transformação temos de ter sensibilidade para jamais abrir mão daquilo que não podemos perder, como o amor-próprio, o autorrespeito e a paz. O autêntico sacrifício se resume em deixar para trás, por mais difícil que seja, o que não nos serve mais ou impede a nossa caminhada rumo à luz, como o egoísmo, a mentira, o orgulho, a vaidade, a ganância, o revanchismo, entre outras sombras pessoais, ainda inseridas nas entranhas do nosso comportamento, personalidade e escolhas”.
Lúcia ponderou sobre a dificuldade de conversar com o Oliver face a enorme possibilidade de ele não ser o pai da criança. Estavam casados. Os seus próprios pais, assim como a família do marido e parte do círculo de amigos em comum reprovariam o seu comportamento. Utilizando um adjetivo grosseiro e inadequado, a moça afirmou estar condenada a viver sozinha com uma criança bastarda. Loureiro foi enérgico: “Não cabem cenas melodramáticas na vida de ninguém. Assim como todos, você está onde se colocou. Seja responsável por suas atitudes e escolhas. Arque com as consequências e cresça com o aprendizado extraído da experiência vivida. Seja sincera consigo para que possa enxergar o mundo e a vida com clareza. Isto é fundamental à maturidade. Se o Oliver tiver um pingo de sensatez e serenidade entenderá que concorreu para esse desfecho. Se não tiver, tampouco importa. Você sabe dos seus motivos, razões, sentimentos e necessidades. Isto basta. No mais, ninguém está sozinho quando tem a si mesmo. Confie na sua capacidade de superação, perdoe-se e siga em frente. As oportunidades oferecidas pela vida são infinitas”. Deu um sorriso acolhedor e disse: “Eu estou aqui. Sempre haverá uma caneca com café quente a aguardando para um boa conversa”. Com os olhos em lágrimas, a sobrinha abraçou o tio por longos minutos.
A moça bebericou o café, como se tomasse coragem para abordar um assunto delicado, e admitiu a hipótese de aguardar que o marido manifestasse a suspeita e pedisse um exame genético para verificar a paternidade da criança. Com um pouco de sorte, tudo ficaria bem. O sapateiro tornou a franzir as sobrancelhas espessas e ponderou com firmeza: “Do contrário, se o Oliver se calar sobre a dúvida, como você se sentirá perante a ele, ao seu filho e, principalmente, diante de si mesma com o passar dos anos? Por que os segredos existem? É possível viver em paz atormentada pelo medo de ter os segredos revelados?”. As perguntas eram de simples retórica. Ele acrescentou: “A mentira nos faz perder o autodomínio por nos afastar da dignidade. Não importa o tamanho do muro que nos esconde, restaremos fragilizados. Quando abdicamos do controle de nossas vidas, ficamos reféns dos acontecimentos. Nada agoniza mais um marinheiro do que estar num barco à devida, com o leme quebrado, ao sabor das marés e correntezas, e não mais ter a capacidade de evitar os rochedos nem o naufrágio. Sofremos porque somos marinheiros que insistem em quebrar o leme da embarcação. A negação em atuar quando temos a responsabilidade de fazer, nos faz escravos desde a origem da omissão. Não cabe reclamar do sofrimento que demos causa”. Lúcia comentou que pensava em substituir um sofrimento por outro; uma troca que talvez tivesse aspectos favoráveis. Loureiro foi enfático: “Ledo engano. Não se consegue trocar um sofrimento por outro. Os fatos e atos geradores não se apagam na sequência de escolhas falaciosas, como se a mentira fosse capaz de atenuar o sofrimento. Caso em que atenuar teria a mesma conotação de entorpecer. Disfarçar a dor serve apenas para postergar a cura. Pintar as paredes e mobiliar um cárcere o torna um lugar mais agradável, no entanto, a condição de prisioneira permanecerá imutável. Apenas a verdade tem o poder de libertar”.
Lúcia balançou a cabeça. Parecia não acreditar. Lidar com a verdade naquele momento seria muito difícil. Temia a reação do marido, da família e dos amigos. Talvez não estivesse pronta, talvez devesse deixar ao sabor do acaso, considerou. Loureiro pontuou: “O amanhã traz o signo do imponderável. Nada sabemos sobre o desenrolar dos acontecimentos em nossas vidas. A dignidade é o lastro da embarcação perante os reveses da existência, a permitir o equilíbrio e manter a direção. Na confluência da ética com o amor, a dignidade consiste em tratar as pessoas como gostaríamos de ser tratados. Um jeito simples e essencial de viver em paz, sem importar a imprevisibilidade dos ventos e o rigor das tempestades. A relação entre verdade e dignidade é simbiótica. Uma não existe sem a outra. Ser digno consiste em ter a verdade como alicerce na construção de si mesmo. Um pilar indestrutível. A desconstrução do sofrimento exige, entre outros aspectos e questões, a reconstrução moral através do alinhamento com a verdade”. Lúcia argumentou que o marido também tinha tido relações extraconjugais. Estavam quites. Loureiro a lembrou: “Não importa o que os outros fizeram. É problema deles. A cada um será entregue conforme as suas obras. Inexoravelmente. O valor que possuímos reside em nossas ações e reações diante dos acontecimentos da vida. Quando justifico as minhas atitudes no erro das outras pessoas me distancio da verdade e revelo quem eu ainda não sou. Afasto-me da luz. A escuridão é o ambiente propício para o sofrimento ganhar vulto e poder”.
Em pequenos goles e sem dizer palavra, a sobrinha bebeu o café até esvaziar a caneca, como se precisasse de tempo para alocar aquelas ideias nas exatas prateleiras da mente e do coração. Depois, fechou os olhos por longos minutos. Quebrei o silêncio para lembrar que nenhuma decisão precisava ser tomada naquele momento. Disse que havia aprendido que escolhas difíceis eram apenas escolhas ainda não amadurecidas. Quando estamos prontos para a decisão, o movimento se torna simples. Lúcia abriu os olhos e sorriu. Era um lindo sorriso. Disse que sabia exatamente o que fazer. Se conduziria pelos trilhos do respeito e da verdade. Convidaria o Oliver para almoçar. Teria uma conversa franca com o marido. À tarde, procuraria um lugar para morar que coubesse no seu orçamento. Não esconderia nada de ninguém. Tampouco havia motivo para se envergonhar. Seria responsável por si, pelo filho e pelos efeitos das suas escolhas. Tornou a sorrir, fixou os olhos nos olhos de Loureiro e disse ter consciência que iniciava um ciclo de enormes dificuldades, mas com grandes aprendizados e profundas transformações. Não seria fácil, mas faria valer a pena. Não desperdiçaria a oportunidade de crescimento proporcionada por aquela experiência. Mesmo que não acreditássemos por causa de todas as dificuldades que enfrentaria, estava animada e bem-disposta, confessou.
Loureiro retribuiu o sorriso e explicou: “Eu não tenho dúvida de que esteja de braços dados com a felicidade. Entre as várias escolhas possíveis, você decidiu por iniciar um processo de cura concomitante a uma jornada de libertação. Em alguns casos, curar um sofrimento é se libertar do imobilismo, do medo e da mentira. É ter a coragem e a ousadia de viver o expoente das transmutações possíveis. Assim, apesar das enormes dificuldades inerentes à mudança, haverá alegria e prazer em cada movimento”. Esvaziou a caneca de café e lembrou à sobrinha: “Há de haver abnegação para deixar ir o que não cabe mais ficar; humildade, para que haja espaço para as mudanças e o crescimento; simplicidade, para afastar os enganos das conveniências; e compaixão para nunca faltar o perdão. A culpa e a mágoa formam o manancial mais comum e vulgar dos nossos sofrimentos”. Fez uma pausa e finalizou: “Por último, mas não menos importante, que o amor permeie todas as suas posturas e escolhas. A dor se afasta à medida que o amor se aproxima”.
A mulher de cabelos ruivos, cortados rente à nuca, e olhos castanhos, quase amarelados, disse que precisava ir. Aquele dia, que iniciara numa madrugada triste, amanhecia em tons de esperança. Ela tinha muito o que fazer. Se despediu de mim, deu um beijo estalado na bochecha do sapateiro e se foi. A moça que saiu da oficina acabara de encontrar uma parte essencial e desconhecida de si mesma. Descobrira, também, o caminho da paz.
2 comments
Gratidão
Bom demais!