Amsterdã, anos 1600. Eu flanava pelas ruas pulsantes da cidade quando tive a atenção voltada para uma pequena aglomeração na porta de uma sinagoga. Aproximei-me. Várias pessoas falavam ao mesmo tempo. Comentavam sobre o chérem aplicado a um homem pelas autoridades religiosas daquele templo. O chérem equivale à excomunhão no catolicismo. Na prática, um banimento. Diziam que ele sustentava a necessidade da interpretação subjetiva dos textos sagrados ao invés das leituras dogmáticas e literais. Argumentava que enquanto aquelas expandiam, estas restringiam. As suas ideias causavam interesse e comoção por toda parte. Falavam também que havia recusado o convite para lecionar na prestigiosa Universidade de Heidelberg, pois teria de acatar as normas ideológicas da instituição, o impossibilitando de prosseguir com sua obra de maneira independente. Sustentava-se com o parco salário de polidor de lentes óticas. Perguntei onde se localizava a oficina. Um rapaz me disse para atravessar o canal e dobrar na segunda rua à direita. Ficava ao lado de uma loja de flores. Não era distante dali.
Ao chegar ao ateliê, me deparei com um homem de baixa estatura, cabelos crespos e negros, sobrancelhas espessas e um olhar que misturava perspicácia e sinceridade. Ao notar a minha presença, repousou as ferramentas sobre a bancada e me ofereceu um sorriso amável. Fez um gesto para eu me sentar à sua frente. Tive a nítida sensação de que me aguardava. Após me acomodar, comentei sobre a sua coragem de manter as suas convicções diante das autoridades religiosas, se recusando a se retratar numa época perigosa à liberdade de pensamento. A nuvem sombria da Inquisição pairava sobre a Europa. Havia coragem também em recusar o cargo, salário e prestígio de professor em uma aclamada universidade. Abdicara de dias mais confortáveis e seguros para se manter leal a si mesmo. O filósofo sorriu e pontuou: “A coragem causa a pior morte. De outra face, a coragem oferece o melhor da vida”. Falei que havia uma contradição naquelas palavras. Ele contrapôs: “Assim como nos textos sagrados, não se permita interpretar literalmente a vida. Lembre que aqueles se dedicam ao entendimento desta”. Pedi para que explicasse melhor. O escritor ponderou: “A caridade movida pela generosidade é uma virtude; se praticada por vaidade ou interesses mesquinhos se mostrará como um triste vício. Uma opinião honesta pode ter a intenção de esclarecer, mas pode ocultar a vontade única de ferir. O gesto humilde pode conter um desejo sincero de aprendizado e crescimento, porém, pode esconder o sentimento de orgulho reprimido. A fé pode iluminar para nos libertar dos medos ou aprisionar nos porões do fanatismo. Negar um empréstimo a um amigo pode se tratar de medida sensata a incentivar o trabalho ou mera desculpa para disfarçar a avareza. Diferente não é com a coragem. Sem a devida prudência, a valentia é ato de suicídio inconsciente. Com equilíbrio e bom senso, sem a ingenuidade de ignorar os riscos inerentes à escolha, será uma indispensável estrada a nos levar para além de quem somos. A vida exige virtude. Contudo, na mesma virtude você se perderá entre benefícios e prejuízos se analisar o gesto apenas pelo viés da aparência, desprezando as exatas intenções que as movem. Luz e sombras se confundem em nós enquanto não tivermos a clareza necessária à perfeita distinção. Faz-se indispensável compreender não apenas as razões e sentimentos que nos movimentam, mas entender mais sobre percepção e sensibilidade, os pilares da consciência”.
Interrompi para questionar se razão e sentimento não são sinônimos de percepção e sensibilidade. O artesão disse não com a cabeça e esclareceu: “Trata-se de uma confusão comum que atrapalha bastante a jornada do autoconhecimento, base de toda a evolução. Pensamos e sentimos. Contudo, nem sempre compreendemos a exata origem de cada ideia ou emoção, por qual motivo nos habitam e direcionam. Um processo determinante ao entendimento de quem somos e de como entendemos a realidade e, porquanto, de como nos deslocaremos pelos dias. A razão costuma estar subjugada aos sentimentos. Mais do que percebemos. Quando dominamos as paixões, as utilizamos como força motivadora veiculada com entusiasmo, alegria e esperança. Se dominado por elas, temos as escolhas escravizadas pelo querer obsessivo ou aprisionadas por um medo devorador. No entanto, o indivíduo somente consegue compreender esse relacionamento entre razão e emoção através da percepção e da sensibilidade. A percepção é uma leitura extrassensorial realizada sobre si mesmo e tudo mais ao redor, apenas possível quando conseguimos nos distanciar com a devida isenção da arena de combate entre pensamentos e sentimentos. Para entender esse relacionamento, será preciso se colocar como observador e personagem de si mesmo a um só tempo. Somente então conseguirá discernir as virtudes dos vícios. Quanto mais aguçada for a sensibilidade, mais aperfeiçoada será a percepção. A sensibilidade amplia e aprofunda a percepção. Permite um entendimento para além das crenças e paixões que envolvem todas as questões. A origem de cada ideia, emoção e sentimento a nos moldar o raciocínio e argumentos. Haverá visibilidade sobre os elementos ocultos à superfície dos acontecimentos. Juntos, percepção e sensibilidade permitem a leitura dos textos não escritos pelos fatos, porém, determinantes à compreensão da vida”.
Fez uma breve pausa para eu me alinhar ao arco filosófico e prosseguiu: “A razão pode controlar o sentimento, porém, não é capaz de o transformar. Você consegue travar o ímpeto revanchista do ódio. Impedir que as suas reações sejam movidas pela ira. Sem dúvida, uma grande vitória. No entanto, a razão jamais o desmanchará. O ódio continuará fazendo morada no seu coração. Não se engane, a mágoa é o ódio controlado pela razão. Você até pode acreditar que o tempo se encarregará de resolver tudo. Ledo engano. O tempo é uma estrada que podemos percorrer ou ficar estacionados em suas margens. Tudo parecerá bem até que surja algo que faça o ódio emergir das entranhas para o dominar, atordoar e enlouquecer. Ou adoecer. Não se espante com que é seu e sempre esteve contigo”. Indaguei como fazer para me libertar deste sentimento corrosivo. O filósofo respondeu de pronto: “O amor. Somente um novo sentimento pode desmanchar um velho sentimento. Este poder não compete a razão. Apenas o amor será capaz de transmutar definitivamente o ódio em compaixão e perdão”. Indaguei como fazer para o amor germinar. Ele respondeu: “O amor é um jardim que floresce à medida que o semeamos. Todos os dias mude o dia de alguém. Ofereça um sorriso, abraço ou palavra. Doe o seu tempo, a sua escuta e as suas mãos. Seja delicado e esteja disponível para servir em qualquer lugar e a todo momento. Tudo mais é consequência. Diante do poder avassalador do amor, a mágoa se sentirá insensata e, envergonhada, desaparecerá para sempre do seu coração”.
Falei que era mais complicado do que eu imaginava. O artesão sorriu e disse: “Muitas são as nuances da Luz. Nem para o sábio o entendimento é fácil”. Fez um gesto com a mão e esclareceu: “Não é fácil porque não é simples. Há muitas camadas de enganos, condicionamentos, crenças e fugas que é difícil de descortinar. Ao levantar as mantas do orgulho e da vaidade, que confundimos com autoestima e instinto de preservação, descobrimos alguém que não somos. Nem todos estão prontos ou querem lidar com a verdade. Isto faz da humildade, da simplicidade e da coragem virtudes essenciais à travessia”. Bateu com o dedo indicador na bancada para ressaltar as próximas palavras e falou: “Os seus gostos e sabores têm mais influência para lhe dizer o que é bom do que a sua razão. Submetemo-nos a situações e pessoas na contabilidade dos nossos desejos e paixões, creditando a elas vícios e virtudes, estabelecendo padrões de medo ou esperança à realidade. Encontramos virtudes com menor grau de exigência naqueles que gostamos, relevamos os seus erros com maior facilidade. O inverso se aplica com aqueles que não nutrimos simpatia, nos quais os vícios ressaltam aos nossos olhos e os enganos, apesar de semelhantes, não merecem desculpas. A razão se encarregará dos devidos argumentos e raciocínios tortuosos a sustentar diferentes opiniões para interlocutores em igual situação. No mesmo diapasão, fatos condizentes às crenças que nos agradam fomentam a esperança. Do contrário, nos causam dissabor ou medo. Crenças costumar ter maiores conexões com os sentimentos do que com a razão. Somos propensos a acreditar naquilo que nos conforta o coração e exige menor esforço. O sentimento acalma ou apavora a razão; por sua vez, a razão é capaz de educar o sentimento. A simbiose entre razão e sentimento é absoluta, causa de rigorosos cárceres emocionais ou de valiosos degraus da liberdade, a depender do nível de percepção e sensibilidade do indivíduo. As filigranas da Caminho são sofisticadas porque exigem simplicidade”.
Pedi para que falasse mais sobre a nuances dessa viagem rumo à verdade e, porquanto, à luz. O artesão pontuou: “Existem alguns aspectos indissociáveis ao Caminho. Vencer sem lutar é um deles. Um dos maiores enganos consiste na crença de que estamos em guerra com outras pessoas. Vemos como inimigos aqueles que nos criam obstáculos ou atrapalham. Em verdade, ninguém derrota ninguém. Cada um vence a si mesmo ou não conhecerá nenhuma vitória. Superar os vícios comportamentais, os transformando em virtudes; iluminar as próprias sombras desmanchando medos, conflitos e sofrimentos. Nisto se resume a bagagem do viajante. Antagonistas não são como os adversários dos folhetins; eles estão em nossas vidas para nos transformar em pessoas diferentes e melhores, despertando poderes advindos do amor e da sabedoria ainda adormecidos na alma, para que possamos seguir em frente sem se deter ao comportamento de ninguém. Quanto maior a resistência oposta, maior será o poder revelado. Portanto, agradeça aos seus supostos inimigos”. Questionei que poderes eram estes. Ele respondeu: “Um estágio mais elevado de equilíbrio e força de movimento internos. Novas virtudes agregadas e um pouco mais da verdade alcançada. Maior suavidade e leveza nos deslocamentos pelos dias. A realidade se modifica a cada mudança de olhar”.
O limpador de lentes continuou: “Outra característica valiosa é quando conseguimos responder sem falar”. Falei que não tinha entendido. Ele explicou: “Na filosofia oriental se usa o termo ensinar sem ensinar. Nas entrelinhas, os textos sagrados das mais diversas tradições falam sobre a importância da atitude pessoal como forja de transformação do mundo. Um exemplo vale por mil discursos. Não à toa, dos grandes mestres, cujas passagens foram angulares no ajuste de rota da humanidade, nenhum deles deixou uma única linha escrita. Suas vidas responderam por eles. Ensinar através da ação registra a presença dos melhores sábios”. Ao notar o meu interesse, ele prosseguiu: “Do mesmo modo, o Caminho convida sem chamar. Jamais espere por uma solenidade. O genuíno viajante não aguarda por mensageiros celestes, conjunção dos astros ou momento econômico propício. O interesse surge na necessidade de dialogar consigo mesmo, com clareza e entendimento para que possa descobrir, encontrar e conquistar a si próprio, desconstruindo todas as incompreensões internas, causa dos seus medos, angústias, conflitos e sofrimentos. Trata-se da denominada tomada de consciência, na qual compreende que o Caminho rumo à luz é uma jornada interior realizada por intermédio das experiências vividas no mundo. Nenhum acontecimento será ruim se for fator de aprendizado e crescimento. Este simples entendimento é o guardião sagrado da semente das plenitudes”.
Perguntei quanto tempo é necessário para completar a viagem. O escritor sorriu, como se tivesse de explicar o óbvio a uma criança, e disse: “O tempo é a estrada do viajante. Ocorre que no Caminho o tempo não se apresenta cronologicamente como o conhecemos. Não se mede por dias e séculos, mas por intermédio dos ciclos evolutivos concluídos. Entenda por evolução o aprendizado e a transformação de uma pessoa nela mesma, porém, diferente e melhor. Essa estrada termina onde o tempo se encerra por não mais se mostrar necessário. A cada trecho da caminhada, vivemos distintos personagens nas mais diversas situações para que nenhuma experiência nos seja negada, tampouco algum conhecimento reste suprimido. Assim fechamos os ciclos das múltiplas existências, ou a Roda do Samsara segundo os orientais, método planetário para a formação de mestres. Cada um alcançará a graduação ao seu tempo, à maneira como escolheu para percorrer a estrada e lidar com as adversidades que se apresentam. O Caminho desenha a perfeição sem pressa, respeitando, o ritmo, a vontade, interesse e capacidade do viajante, de acordo com a percepção e sensibilidade pessoal”.
Eu quis saber se todos estavam obrigados ao Caminho. O homem esclareceu: “Ninguém é obrigado a fazer nada. No entanto, não há como se eximir das consequências sobre as suas ações e omissões. Cada pessoa é herdeira dos próprios atos. A responsabilidade é pressuposto indissociável à liberdade. Trata-se de uma lei de amor e sabedoria, equilíbrio e justiça da qual nenhum indivíduo poderá se desvincular. Sem exceção nem privilégio. Embora imperceptíveis a muitos, imensas são as redes do Caminho. No ritmo do tempo de cada pessoa, todos os equívocos serão ajustados, os erros corrigidos, os enganos revelados, as maldades sanadas. Das sombras rompem as virtudes. Não se iluda nem se preocupe, embora sejam largas as malhas da rede, a ponto de, por não a enxergarem, alguns caçoarem da sua existência, outros se sentirem abandonados, ninguém escapará ou será esquecido. A responsabilidade tem o tamanho da liberdade, o alcance da consciência, o peso do poder concedido a cada experiência e a régua pela qual o indivíduo mediu tudo e todos. Sendo assim, eventuais reclamações não terão cabimento”.
Um cliente entrou na loja. Perguntou pelas lentes encomendadas. O artesão pediu que voltasse à tarde, quando já estariam prontas. Entendi que ele precisava retornar ao trabalho. Agradeci a conversa. Era hora de partir, mas eu não sabia por onde. Disse isto ao filósofo. Ele deixou que um raio de sol incidisse sobre uma das lentes. O facho de luz se desfez em múltiplas cores refletidas no formato de uma mandala na parede da oficina. Agradeci a conversa. O escritor se despediu com um sorriso alegre. Atravessei o portal para seguir a viagem.
Poema Setenta e Três
A coragem causa a pior morte;
A coragem oferece o melhor da vida.
Na mesma virtude se perderá entre benefícios e prejuízos.
Muitas são as nuances do Céu;
Nem para o sábio o entendimento é fácil.
O Tao do Céu vence sem lutar,
Responde sem falar,
Convida sem chamar,
Desenha sem pressa.
Imensas são as redes do Céu.
Embora sejam largas as malhas,
Nenhum peixe lhe escapa.
2 comments
Como esse texto me tocou. Estou encantada ❤️
Gratidão!!🙏