TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance ( Trigésimo terceiro limiar – A verdadeira batalha)

Era uma linda colina. Ao fundo, havia uma pequena cidade. Cogitava em caminhar até lá, quando me dei conta de uma construção em ruínas atrás de mim. Pelo tamanho, deveria ter sido um castelo que em algum momento abrigou alguém com muito prestígio e privilégios. Como sempre faz, o tempo devorara todas as aparências. Beleza física, poderes mundanos e fortunas que a tudo compram, se desmancham no compasso dos dias. Inexoravelmente. O que tenho é o que sou. Tão e somente. A ideia me chegou à mente como se soprada pela brisa suave da tarde. Fui atraído pelo som de água escorrendo que vinha de dentro das ruínas. Deixei-me guiar até lá. Onde talvez tivesse funcionado o salão principal do castelo, além de uma cruz de madeira recém-colocada, havia pequenos espelhos espalhados por todos os cantos do ambiente; no centro, uma fonte de água ainda viva. Dei-me conta que sentia sede. A água estava fresca, me trazendo uma agradável sensação de bem-estar. “Assim acontece todas as vezes que vamos ao próprio coração beber do mel da vida”, escutei. Virei-me na direção de onde vinha a voz. Um homem bem jovem, muito magro, de cabelos negros e lisos, cortados rente à nuca, com a barba por fazer, vestido com os trajes típicos dos frades, confeccionado em lã rústica marrom, amarrado com um cordão na cintura, cuja ponta possuía três nós, me ofereceu um dos olhares mais doces que eu já tinha visto. Os seus gestos eram suaves e a sua fala possuía a delicadeza das flores em botão. Ele acrescentou: “Seja bem-vindo à nossa igreja”. Comentei que o lugar precisava de uma boa reforma. O jovem frade deu de ombros e alertou: “Há outras reformas mais urgentes”.

Questionei o que seria mais urgente do que reconstruir aquele prédio que caía aos pedaços. Os seus olhos pediram para que eu mesmo encontrasse a resposta. Atordoado, eu quis mudar de assunto. Indaguei o motivo de tantos espelhos espalhados por todos os cantos. Para onde eu olhasse, um diferente ângulo me era mostrado. Nenhuma parte de mim me era ocultada. Bastava um simples movimento de cabeça para que qualquer detalhe se revelasse. Ele arqueou os lábios em leve sorriso e explicou: “É parte da resposta referente à sua pergunta”. Fez uma breve pausa antes de prosseguir: “Serve para nos lembrar que, se existe inteligência em conhecer os outros; conhecer a si mesmo é iluminação”. Admiti que aqueles espelhos ajudavam a esse propósito. O moço me esclareceu: “Não me refiro ao corpo, mas à alma”. Perguntei qual seria o espelho da alma. A resposta veio de pronto: “A verdade”.

Indaguei como a encontrar. O jovem monge foi enigmático: “O conhecimento sobre si mesmo é a essência da Grande Arte”. Perguntei do que se tratava. Ele explicou: “Acender a própria luz para iluminar a si, e depois o mundo, é a obra de uma vida”. Eu quis saber como era isso na prática. O frei esclareceu: “Faz-se indispensável o alinhamento inabalável à verdade no último limite já alcançado pela sua percepção e sensibilidade, pois, somente assim é possível forjar adequadamente o conhecimento para que se torne um poderoso instrumento de superação e avanço na viagem rumo às Terras Altas. Na prática, significa caminhar cada vez mais leve e suave, deixando para trás tudo que não podemos ou nos faz mal carregar, evitando os conflitos desnecessários e, não menos importante, acrescentando novas virtudes à bagagem do viajante.  A Grande Arte se aprimora na exata medida do aperfeiçoamento do artista”.

Perguntei se havia uma escola na qual poderíamos aprender sobre ensinamentos de tamanha importância. O jovem disse sim com a cabeça e acrescentou: “Você está matriculado nela. Todos estão. No entanto, tirar proveito das aulas exige atenção constante e permanente refinamento das ideias e dos sentimentos por parte dos alunos. Do contrário, o conhecimento será uma ferramenta bonita sem qualquer serventia”. Interrompi para que explicasse melhor. Ele era generoso: “A mente compreende, elabora e cria; o coração acolhe, movimenta e instala uma diferente verdade dentro da gente. Então, a realidade se modifica, embora as coisas permaneçam no mesmo lugar”.

Foi até a fonte, bebeu um pouco de água, e disse: “Os relacionamentos são experiências valiosas para o entendimento das nossas fraquezas e dificuldades; tudo aquilo que nos incomoda nos outros, sinaliza o que em nós que precisa de ajuste e construção. Contudo, a percepção e a sensibilidade formam a estrada pela qual o conhecimento precisa do viajar; do contrário, não se chegará à verdade”.  Fez um movimento gracioso com as mãos e esclareceu: “Tudo que vivemos se traduz nesse objetivo oculto. Para tanto, se faz indispensável os momentos de quietude e silêncio para que possamos nos encontrar, descobrir e conquistar; do mesmo modo, existe a necessidade do convívio com toda gente para que possamos entender quem genuinamente ainda não somos. Nas duas faces do perfeito espelho, o observador será o próprio objeto analisado. Compreender a autêntica causa das suas reações permite desconstruir as partes mal erguidas, ou mesmo já em ruínas, para iniciar a necessária reconstrução”. Franziu as sobrancelhas e acrescentou: “Trata-se uma obra de extrema importância. Cada um mora dentro de si mesmo”.

Comentei que algumas pessoas eram muito difíceis e complicadas. Ele ponderou: “Vencer os outros é força, vencer a si mesmo é poder”. Falei que não tinha entendido. Ele foi didático: “Não importa o que os outros fazem; o valor reside em como eu reajo diante de cada situação. Fora disso, nada mais me pertence. Tenho sombras e luz em mim; a todo instante defino e redefino a estrada que irei trilhar; em outras palavras, a alegria ou a amargura dos meus dias. Se alguém me irrita ou aborrece significa que conseguiu me arrancar do meu eixo de luz; tal pessoa ainda possui um enorme e indevido poder sobre mim. Enquanto eu não conseguir me desacorrentar dessa influência me manterei escravizado às atitudes, escolhas e palavras dela; se não me pertenço, não sou livre”.

Depois, expandiu a ideia: “Há outras nuances dessa mesma questão. Por vício ancestral, desperdiçamos tempo e energia em intensas e tolas competições, causas de enormes angústias e conflitos. Sem importar se o critério utilizado se refere a fortuna, beleza física, inteligência, prestígio ou privilégios, duelar sobre quem é o melhor será sempre uma disputa tosca, desgastante e inútil. Venço quando vou além da minha luz; perco quando fico aquém de onde poderia ter ido. Venço quando me ergo sobre os pilares das virtudes; perco quando as minhas conquistas estão eivadas em sombras. Ao final, tudo se resume em quem me torno após cada momento vivido. Todos os dias. A todo instante, me questiono se o acontecimento, por mais banal que possa parecer, serviu para me ensinar uma diferente virtude que até então não sabia usar, se fui digno com a verdade e se respeitei a minha luz. Não há outra vitória. Do contrário, restará uma amarga derrota, ainda que tenha subjugado multidões e aos olhos do mundo eu seja aclamado como herói. Não raro, a vida dá o ouro, mas toma a paz e a honra; dá a terra, mas toma o céu. Ninguém vence quando permite que a sua luz se apague”.

Então, concluiu o raciocínio: “Brigamos o tempo inteiro, seja conosco, envolvidos em pensamentos amargos e emoções asperas, seja com os outros, em jogos de interesse e sombras. Perdemos o melhor da vida por não saber lidar com quem somos”.

Sentou-se sobre uma das pedras espalhadas pela construção em ruínas, me convidou a sentar ao seu lado e disse: “Gostamos que as pessoas andem conosco. Não há nada de errado nisto; é maravilhoso quando acontece. Devemos convidar a todos para viajar em nossa carroça; oferecemos os nossos motivos de maneira verdadeira, serena, clara e objetiva; sem exaltação nem enganos; sem palavras demais nem de menos, para que a escuta e o entendimento não restem prejudicados. Contudo, teimar para que nos acompanhem significa exigir que se adequem à nossa verdade, um obscuro método de dominação, mas também de dependência. Só os tolos e orgulhosos, imaturos e vaidosos, insistem nessa prática. Muitas vezes, as pessoas não querem, e têm direito a isto; noutras, ainda não conseguem, cada qual tem o seu tempo. Sem esquecer que, não raro, é o nosso olhar que está aquém da capacidade do outro em enxergar. Há também os momentos em que devemos seguir só. Não se assuste com isto, ninguém está sozinho quando tem a si mesmo. Humildade, simplicidade e compaixão são virtudes basilares que nunca podem faltar, pois, em quaisquer dos casos, serão ferramentas de entendimento, transmutação e, não menos importante, de leveza e suavidade. A fluidez dos movimentos permite avançar sem conflitos nem disputas, quase sempre desnecessários”. O seu olhar vagou pela bela colina que se podia avistar entre partes da parede desabada, e concluiu: “Enquanto não questionarmos os métodos de buscas e conquistas, viveremos como embarcações à deriva, sem rumo, porto e destino, a mercê das marés e tempestades; o naufrágio será inevitável”.

Balancei a cabeça em anuência àquele raciocínio. Ele continuou: “Não existe vitória fora da verdade e das virtudes. De nada vale abdicar da dignidade para alcançar qualquer conquista. Nenhuma paz será alcançada; a felicidade tem como fonte permanente a evolução conquistada a cada dia; a liberdade dialoga com a verdade no limite extremo do olhar. Distante desse entendimento, nos manteremos aprisionados em círculos viciosos de práticas equivocadas nas quais o amor existirá apenas como elemento de ficção restrito às poesias. Se ainda não o sentimos na ponta dos dedos, nem somos capazes de o encontrar no próprio coração, significa que estamos travando a batalha errada”.

Pedi que falasse mais sobre o assunto. Havia uma alma generosa por trás daquela voz: “Quem vive para superar a si mesmo ao invés de derrotar os outros; quem entende que as conquistas do espírito são mais preciosas do que as vitórias no mundo; quem reconhece que o genuíno prazer não está à venda no mercado, mas na clareza da mente e na serenidade do coração, já entende o sentido da vida. Esta é a viagem; construir a si mesmo traduz a Grande Arte”. Ele fez questão de ressaltar outro importante aspecto: “Isto não significa que devemos descuidar dos nossos compromissos e afazeres que nos garantem a sobrevivência. No entanto, a luta pela transcendência deve estar contida e presente em cada gesto da existência. O pão que nutre o corpo deve trazer consigo o alimento da alma. Invariavelmente”.

Argumentei que era muito difícil suprir as necessidades do corpo em harmonia com os valores da alma, nos estreitos e delicados limites entre a sobrevivência e a transcendência. O frei esclareceu: “Sentir-se satisfeito enraíza a prosperidade”. Voltei a falar que não tinha entendido. Ele explicou: “Faz-se necessário saber que o significado de prosperidade está dissociado do conceito de riqueza. Riqueza se traduz no acúmulo de bens materiais. Prosperidade é viver bem consigo mesmo. Para tanto, o suficiente basta. Tudo mais será bem-vindo, mas não é indispensável. Entender esta diferença traz leveza, suavidade e alegria aos dias”. Balançou a cabeça para ressaltar as palavras e disse: “Aqueles que acreditam que as pontes que levam até os territórios das plenitudes são construídas com pedras e argamassa, jamais completarão a travessia. Permanecerão prisioneiros das próprias insatisfações e incompreensões”. Mostrou as mãos vazias e acrescentou: “De quanto menos eu precisar mais livre serei”. Questionei se a riqueza era um erro. Ele foi veemente: “Não foi isso que eu disse. A fortuna em nada atrapalha desde que a jornada da alma não reste prejudicada. O dinheiro é uma ferramenta neutra; a maneira de usar estabelece a polaridade positiva e negativa de todas as coisas. Desse modo, quem segue no Caminho permanecerá inabalável, independente das condições materiais que encontrará. Não se pode derrotar aquele que está além dos conflitos; não se pode atingir o pássaro que voa onde as pedras não alcançam”.

Pedi para aprofundar a questão. Fui atendido: “Durante a jornada, o viajante enfrentará muitos perigos em forma de tentações, dificuldades, dúvidas e medos. A imaturidade oferecerá motivos para desistir ou desviar a rota. Ainda não entendem a essência da viagem ou, se preferir, os fundamentos da escola. Desconstruídos, continuarão vagando sem rumo, colecionando vitórias vazias. Afundam-se em tristeza, angústia e revolta. Nada sabem, apesar dos discursos bem confeccionados usados para anestesiar os sofrimentos cuja origem desconhecem. Para quem não tem alicerces profundos, qualquer brisa equivale a uma tempestade. Contudo, para inserir os pilares é preciso descontruir o castelo. Como ninguém quer abdicar das aparências, as rachaduras nas estruturas continuam sendo escondidas sob insistentes camadas de tinta e verniz. O prédio treme, o desabamento se mostra iminente. Desorientados, invadem o castelo mais próximo; depois outro e mais outro, em sequência desgastante, sem entender que ninguém consegue morar fora de si. Enquanto eu não me tornar um bom lugar para viver, me esgotarei em incontáveis conflitos”.

O jovem frade continuou: “Para quem já atingiu determinado grau de maturidade, possui a consciência de que todos os problemas fazem parte do devido aprendizado e consequente aperfeiçoamento pessoal, não se deixará esmorecer pelas dificuldades, tampouco será levado à conflitos desnecessários. Por não estar em batalha contra o mundo, ninguém poderá o derrotar; por não estar atordoado por mágoas e medos, nada conseguirá impedir o seu voo. Diante de qualquer problema, ele agradece a oportunidade, aprende o que não sabe, acrescenta uma diferente virtude à sua bagagem, conquista um pouco mais de si, oferece o seu melhor e segue em frente. Suave, porém, forte; leve, porém, equilibrado. Através dos acontecimentos triviais ao cotidiano, a luz avançará um pouco mais sobre os territórios dominados até então pelas sombras nas entranhas do próprio viajante. Não há poder maior”.

Questionei como eu saberia que uma existência teria sido bem aproveitada. O jovem me respondeu: “Morrer sem se esgotar é aproveitar a viagem. O tempo é uma estrada para as Terras Altas. Aquele que se dedica à constante transmutação das suas sombras em luz, embora o perecimento do corpo seja inevitável, derrotará o tempo, pois, conseguirá viver para além dele. Passará a viajar por estradas mais plenas e sutis onde o tempo não mais ditará o ritmo”. Em seguida sentenciou: “Quem descobrir o sentido destas palavras não provará a morte”. Desconcertado, falei que já ouvira aquela frase. Ele explicou que nos textos sagrados a palavra morte se refere à manutenção dos ciclos reencarnatórios como método educativo desta fantástica escola planetária; o fenômeno da morte como elemento da realidade traz o significado de que a verdadeira batalha para alguns está em curso, para outros, ainda distante do fim e, para muitos, sequer se iniciou.

Eu tinha mais perguntas para fazer. O frei me aquietou com um gesto para mostrar uma rosa vermelha que germinara na fonte de água viva, ao centro do prédio em ruínas, enquanto conversávamos. Era hora de seguir. Sem dizer outra palavra, trocamos um abraço e parti.  

Poema trinta e três

É inteligência conhecer os outros,

É iluminação conhecer a si mesmo.

Vencer os outros é força,

Vencer a si mesmo é poder.

Sentir-se satisfeito enraíza a prosperidade.

Quem segue no Caminho permanecerá inabalável.

Morrer sem se esgotar é aproveitar a viagem.

4 comments

Terumi outubro 27, 2022 at 12:54 am

Gratidão 🙏

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Rhodolfo Diniz novembro 14, 2022 at 2:47 am

Obrigado! Mais um Lindo texto!

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Fernando Machado novembro 29, 2022 at 5:59 pm

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas 🌟 🌟 🌟 sem fim…

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Maangoba maio 10, 2023 at 5:00 pm

obrigado pela partilha, meu amigo.

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