TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Quarto limiar – O laboratório intrínseco)

QUARTO LIMIAR – O LABORATÓRIO INTRÍNSECO

Eu estava dentro de uma mansão típica do Século XVIII. Os móveis eram refinados, sofás e poltronas aveludados, quadros pendurados nas paredes de pé direito alto alternavam cenas de caça e santos católicos. Uma fina camada de poeira cobria a mesa e as cadeiras de jacarandá, sinalizando que a casa não era faxinada havia dias. Apesar da considerável distância entre a casa e os muros que a separavam da rua, era possível ouvir o barulho de uma desconfortável agitação do lado de fora. Dentro, não encontrei ninguém. Ouvi ruídos no andar de cima e subi as escadas. Deparei-me com um enorme cômodo que servia de escritório e laboratório. Papéis, estantes, balcões, livros, tubos de ensaio, frascos de vidro, entre recipientes contendo líquidos de diversas tonalidades, além de outros apetrechos científicos. Um homem e uma mulher, em cantos opostos, se dedicavam aos seus trabalhos. Ele observava um cadinho arder sobre o fogo de uma lamparina, enquanto anotava as suas conclusões; ela desenhava, ilustrando com rara habilidade uma experiência rabiscada em uma folha de papel. Ao me ver, e sem demonstrar qualquer estranheza quanto a minha presença, ela pediu para eu lhe entregar os pincéis que estavam ao meu lado. Obedeci. Ao me aproximar, ela agradeceu com um aceno de cabeça, voltou a se concentrar na pintura. As suas mãos tremiam, não conseguindo manter a mesma qualidade dos outros desenhos que secavam sobre um dos balcões de madeira. Traída pelas emoções que não conseguia controlar, derramou um frasco de tinta sobre a pintura, inutilizando o trabalho e começou a chorar. O homem tocou de leve em meu ombro, como que pedindo para eu me afastar um pouco, se aproximou e a beijou suavemente nos lábios. Com jeito carinhoso, disse para ela se acalmar. A mulher sacudiu a cabeça e o olhou como se ele lhe pedisse algo impossível. O homem fez uma promessa: “Marie, minha querida, acredite em mim. Tudo terminará bem”.

Sem nada dizer, mas sem conseguir conter o pranto, a mulher pediu licença e se retirou. A sós, o cientista explicou o comportamento da esposa: “Ela sofre por aquilo que ainda não aconteceu. Talvez nunca aconteça. Então, terá sofrido à toa”. Deu uma pausa como se esperasse por alguma indagação minha. Como não veio, ele prosseguiu: “O Tribunal Revolucionário criou leis que se aplicam a fatos anteriores a sua promulgação. Uma infâmia. Mormente vindo de homens que declaram ter a intenção de instaurar um sistema político mais justo, no qual a liberdade, a fraternidade e a igualdade sejam as estrelas-guias”. Fez uma pergunta que já continha a resposta: “De que valem belos discursos se desacompanhados de atitudes de igual beleza?”. Deu de ombros e comentou: “Correm boatos por toda a Paris que faço parte da próxima turma rumo à guilhotina”. Diante do meu espanto, ponderou: “Prefiro não crer. Tenho muitos serviços prestados à Academia e a humanidade. Impossível que isto não possua algum valor”. Eu quis saber qual das suas experiências científicas o levaria a uma condenação tão cruel. Ele sacudiu a cabeça e revelou: “Nenhuma. Fui sócio da Ferme Générale, uma empresa contratada pelo rei para realizar a cobrança dos impostos. Desde a Roma Antiga os coletores de tributos são odiados pelo povo, talvez por justos motivos. Contudo, é uma atividade que terá de continuar a existir, independente do sistema político que a Revolução instaure. Quem vai sustentar o Estado além mais daqueles que trabalham e geram a riqueza da nação? Um absurdo? Talvez”. Falei que Economia era uma ciência complexa da qual eu era leigo. No mais, eu me abstinha de qualquer julgamento pelo fato de desconhecer todos os lados de uma mesma questão. Eu estava sendo sincero. O homem balançou a cabeça como quem diz que entendia as minhas razões. Porém, seguiu com a suas argumentações, como se quisesse consolar a si mesmo: “Gritam por justiça, mas querem me sentenciar à perda da vida por um detalhe recortado da totalidade da minha existência. Levam em conta a parcela obscura da minha biografia sem colocarem no outro prato da balança todas as maravilhas do conhecimento que revelei à humanidade. A minha condenação, se acontecer, será a negação da justiça em si mesma. A História há de lhes cobrar tributos dos excessos e da insensatez. Quanto a mim, admito que também poderia ter feito diferente e melhor, principalmente em relação a esse aspecto das escolhas que me cabiam”. 

Ao contrário do que possa parecer, o desabafo não continha qualquer traço de descontrole emocional. A voz estava serena e os seus gestos mostravam um homem equilibrado, como que consciente de que nada do que fizessem a ele poderia lhe alcançar. O seu comportamento parecia além do tempo e da morte. Eu quis saber por qual descoberta científica ele era responsável. Ele mexeu as mãos como quem mostra não saber por onde começar e resumiu: “Revoguei a teoria de Tales de Mileto que perdurou por séculos, a qual declarava que a água era um dos quatro elementos primordiais. Não mais para a Ciência. Trata-se de uma substância composta por hidrogênio e oxigênio”. Ele falava sem nenhuma ponta de orgulho ou vaidade. Comentei que se tratava de um valioso avanço científico. Ele acrescentou: “Há outros importantes conhecimentos que os meus estudos revelaram. Contudo, creio que serei lembrado pelo o princípio universal de que na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Ocorreu-me que tinha aprendido aqueles conceitos na escola que frequentei quando mais jovem. Mas para a minha absoluta surpresa, ele disse que o conceito estava incompleto e não sabia se teria tempo para corrigi-lo. Eu quis saber o que havia de errado. O cientista explicou: “Nada. Não há nada de errado com a teoria. Contudo, ela não se aplica somente à matéria, porém, também ao espírito, cuja criação de si mesmo rumo à iluminação se opera através de múltiplas transformações”. Abriu os braços como quem se vê em um beco sem saída e ponderou como se conversasse consigo: “No entanto, eu seria expulso da Academia se abordasse a questão do espírito. Há setores muito reacionários atrelados à Ciência. Uma pena”. 

O homem seguiu me surpreendendo ao revelar: “As minhas descobertas mais valiosas são as alquímicas. Mas então eu seria considerado um místico ou bruxo, repudiado pelos meus pares e banido dos meios acadêmicos. Uma fogueira diferente daquela que ficou para trás com o fim da Inquisição, porém um tipo de fogo que também queima, se não o corpo, a alma”. Aquela conversava se tornava mais interessante para mim ao entrar no campo da metafísica e da filosofia. Pedi para ele explicar melhor o assunto do qual nunca falou ao público. O cientista apontou para um vaso que repousava no canto do balcão e pediu para eu enchê-lo com água até a borda. Era de porcelana, lembrava uma ânfora, no entanto, possuía um estranho formato completamente desconhecido por mim. Figuras e caracteres orientais o adornavam e me pareceu muito antigo. Tentei algumas vezes sem sucesso. Antes de a água atingir a borda, o vaso se desequilibrava, jogava para fora uma parte da água, retornava à posição de origem com apenas a sua metade preenchida. Nunca ficava cheio nem vazio. Ao ver o meu espanto, o cientista sorriu e explicou: “Consegui com um mercador de antiguidades. Dizem que chegou através da lendária Rota da Seda e pertenceu a Lao Tsé, um sábio da antiguidade. Séculos depois ficou guardado na Cidade Proibida, erguida pelo primeiro imperador da Era Ming, cuja esposa era estudiosa de um livro escrito por aquele sábio”.

O cientista prosseguiu: “O vaso teria a intenção de lembrar que a vida exige movimento. De dentro para fora e de fora para dentro. Por isto a água sai, tanto para saciar a sede do mundo quanto para que haja espaço disponível em seu interior e, assim, o mundo possa caber no vaso, ou seja, dentro de mim mesmo. A vida é uma via evolutiva que tem por finalidade alavancar as nossas indispensáveis transformações. O Caminho é um vaso que enche sem cessar. No entanto, jamais transborda”.   

Pedi para ele aprofundar o assunto. O cientista me corrigiu: “Aprofundar e ampliar. O Caminho é profundo e amplo”. Em seguida, explicou: “Vivemos para descobrir não apenas as maravilhas do mundo, mas também para entender as belezas da vida. Para tanto, se faz indispensável saber tudo aquilo que você pode ser. O passo inicial é entender quem você ainda não é. Sem humildade, o vaso se mantém cheio, impossibilitando novos conteúdos. A humildade é a virtude na qual o indivíduo se percebe um alquimista de um laboratório intrínseco, onde todas as experiências vividas serão elaboradas para serem utilizadas como instrumento do bem viver. Nenhuma experiência, assim como qualquer dos vários ramos da Ciência, é um fim em si mesma. Trata-se apenas de outra ferramenta para abrir mais uma porta de infinitas portas. Este é motivo pelo qual os sábios dizem que a humildade é o portal da lucidez, pois somente a disponibilidade interna permite ver aquilo que ninguém mais consegue enxergar”.

Balancei a cabeça por concordar com o raciocínio. Enquanto esperava o líquido que esquentava no cadinho entrar em ebulição, prosseguiu: “Para começar a percorrer o Caminho, outras duas virtudes são fundamentais, a simplicidade e a compaixão”. Derramou o líquido em um frasco de vidro cristalino e observou por alguns instantes e disse: “A simplicidade é como esse frasco cristalino, incapaz de ocultar o seu conteúdo. É a virtude da transparência. Um atributo típico das pessoas que não têm vergonha de quem são. Vivem sem máscaras, fantasias ou subterfúgios de qualquer espécie. Lidam com a verdade com extrema naturalidade. Embora admitam as suas fraquezas e dificuldades, têm a vontade sincera de se transformar em indivíduos melhores, como uma experiência da alma, único laboratório onde é possível transmutar chumbo em ouro. Assim, fazer de mim a minha melhor invenção”.

Antes que eu traçasse qualquer comentário, acrescentou: “Contudo, de nada adiantará se não tivermos compaixão, a virtude de entender amorosamente a dificuldade de outra pessoa. A compaixão é sentir o coração do mundo pulsar no ritmo do seu próprio coração. Então, o significado de todas as coisas se revelará. Por isto chamam a compaixão de virtude do significado”.

O barulho proveniente da balbúrdia da rua parecia estar no portão da sua casa. O homem sorriu e comentou: “Só existe um Caminho quando há disponibilidade interna. Do contrário, tudo se fecha. O laboratório intrínseco é o local onde as experiências são elaboradas e a realidade é criada. O mundo é o espelho dessa realidade interna”. Deu de ombros e, enquanto fazia uma breve anotação, disse: “As tempestades da rua só me devastam a alma se eu as conceder tamanha permissão”. Olhou através da janela e falou: “Podem destruir o meu corpo, mas a minha essência está em um lugar onde elas são incapazes de alcançar. Este entendimento nos permite encontrar a raiz da paz”.

Atônito com a serenidade do cientista diante do perigo de ter a sua invadida por uma turba descontrolada, pedi para ele explicar melhor. Ele se esforçou: “As virtudes são poderes incomensuráveis à disposição de todas as pessoas. Residem na essência de cada um de nós, ainda em estágio embrionário, a espera que entendamos e façamos os movimentos corretos para que floresçam. As virtudes são como as asas da águia, a força do leão, a sabedoria da coruja e a metamorfose da borboleta. São as mil faces do amor infinito. Então, suaviza o ásperode todas as minhas relações, seja pela compreensão que se tornou disponível para mim, seja por entender que os meus relacionamentos são as valiosas experiências que irei elaborar no meu laboratório intrínseco. Ampliar a verdade para expandir a realidade. Este é o método da criação de quem serei. O meu mestre habita em mim, embora se manifeste por intermédio das dificuldades da vida. Assim, ele cega fio da navalhaque uso para sangrar a mim mesmo e rasgar o mundo; começo a entender onde mora a paz. Desata os nós da existência, desmanchando os traumas, as mágoas e as decepções; me libertando da prisão sem grades que criamos para viver. Afinal, não podemos exigir a perfeição que não temos para oferecer. Enfraquece os brilhosda vaidade, do orgulho e da ganância, iguala todos na poeira, mostrando que ninguém é melhor do que ninguém; o que muda é apenas a compreensão sobre si mesmo e da verdade que desenha a realidade do mundo, sempre um espelho de quem somos. Grandes são os humildes, simples e compassivos. Para ter tal tamanho, não dependo de nada nem de ninguém, salvo da minha disposição interna de buscar por esse poder. Isto me concede dignidade, pois sempre me será possível tratar todas as pessoas do jeito que gosto que me tratem. Assim, me permito amar mais e melhor a cada dia e, ao olhar para trás e perceber o quanto consegui caminhar, onsigo tocar na felicidade como quem saboreia uma doce maçã. Um poder difícil de explicar em palavras pelo valor incomensurável que possuí. Das virtudes, muitos conhecem os seus frutos”. Apontou para o próprio peito e concluiu: “Porém, poucos sabem sobre a semente”.

Aflita, a esposa retornou ao cômodo onde estávamos. Os olhos dela transbordavam lágrimas e pânico: “Antoine, eles ameaçam derrubar o portão”. Sem deixar que a serenidade lhe escapasse, a orientou ir para os fundos da casa. Uma carruagem a aguardava e a levaria a Genebra. “Um grupo de amigos irá lhe acolher”. Colocou nas mãos da esposa um documento e tentou arrefecer a sua agonia: “Marie, nessa conta bancária há dinheiro para que viva com conforto até o último dia do dia sem fim. Quando possível, irei ao seu encontro para trazê-la de volta a Paris”. A mulher hesitou em partir sem o marido, mas o olhar amoroso do homem quebrou a resistência da esposa. Acompanhamos Marie até a carruagem. As suas malas já estavam acomodadas. Ela entrou, o cocheiro partiu apressado e logo sumiram de vista. Perguntei a razão de ele não ir com a esposa. Como quem diz uma obviedade, Antoine responde: “Não existe liberdade na fuga. Apenas medo”. Ouvimos barulho de coisas se quebrando dentro da casa. O homem admitiu: “Eles chegaram. É a minha hora”. Virou-se foi ao encontro do destino. Debaixo de uma árvore frondosa, uma linda mandala se abriu em forma de flor multicolorida. Segui a minha viagem.

Poema Quatro

O Tao é um vaso que enche sem cessar,

No entanto, jamais transborda.

É profundo e amplo.

Então,

Suaviza o áspero,

Cega o fio da navalha,

Desata os nós,

Enfraquece os brilhos,

Iguala todos na poeira.

Muitos conhecem os seus frutos,

Poucos sabem sobre a semente.

6 comments

Terumi outubro 31, 2021 at 5:53 pm

Gratidão 🙏

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Cassiana novembro 1, 2021 at 12:54 pm

Sou fã de vocês! Gratidão!

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Fernando novembro 4, 2021 at 10:23 am

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas, sem fim…🌱🍀♻️

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Neide Maria Testa novembro 7, 2021 at 9:03 pm

Gratidão!

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SCHWEITZER novembro 19, 2021 at 2:04 pm

Uma estoria q vc le como um poema, amei as sementes de sua sabedoria, e o sabor doce do seu conhecimento.

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Aprendiz dezembro 21, 2022 at 10:46 pm

Obrigado <3

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