MANUSCRITOS VIII

Não é pouco

Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de perpetuar a filosofia ancestral do seu povo através de histórias e cantigas, baforou o seu indefectível cachimbo de fornilho de pedra vermelha, como se procurasse as melhores palavras, e comentou: “A verdade tem um preço alto. O pagamento é sempre à vista. Em muitas situações, traz o desconforto das mudanças indesejadas, porém, indispensáveis. Exige ousadia e coragem. Por não estarem preparados, faz com que muitos se assustem ou a evitem. Apesar do desconforto, esquecem, ou ainda não sabem, que a verdade oferece em troca a liberdade, a dignidade e a paz. Não é pouco. No entanto, poucos estão prontos para fazer destas conquistas as genuínas prioridades da vida”. Observou, por instantes, o bailar da fumaça diante dos olhos e, em seguida, retornou ao raciocínio: “De outra face, a mentira também tem um preço. Não cobra nada de entrada. Costuma oferecer conforto e alívio como um perigoso entorpecente de duração indeterminada. Engana porque transmite a sensação de que nada custará ou sairá quase de graça. Nada fala sobre os juros ocultos a serem pagos a longo prazo. O preço final se torna exorbitante. Em troca, a mentira oferece o avesso da verdade. É a contrafação da vida e da luz”. Deu de ombros e sugeriu: “Cabe a cada um escolher por qual irá pagar”.

Sentado na cadeira de balanço, Canção Estrelada conversava com Aiyana, uma jovem artesã que, assim como ele, também pertencia à etnia Navajo. Com vinte anos de idade, a moça já evidenciava uma rara habilidade na confecção de objetos em cerâmica. Moradora de Jerome, localizada nas montanhas Black Hills, próxima a Sedona, expunha em uma loja de artes na Vila Assombrada, como a cidade ficou conhecida. Erguida em torno da extração de cobre no século XIX, foi abandonada nos anos 1920 após o trágico desabamento de uma das minas e o consequente fechamento da empresa que a explorava. Todos foram embora. A cidade ficou abandonada por décadas. Como muitos prédios permaneceram intactos, artistas da região, com muito talento e pouco dinheiro, passaram a ocupar as casas vazias no final do século passado. Aos poucos, surgiram ateliês, cafés e restaurantes. O lugar se tornou atração turística. Alguns artistas, de pintores a escultores, de músicos a escritores, de artesões a chefs de cozinha, tiveram o trabalho reconhecido mundo afora, graças aos seus talentos, mas também ao encanto e à magia de Jerome. Todas as vezes que eu viajava para Sedona, um dos meus programas prediletos era dançar música country em um dos bares locais. Ao retornar ao Rio de Janeiro, sempre havia ao menos um objeto de algum dos seus artistas na minha mala. De tez morena e cabelos negros presos em tranças, Aiyana usava lindos vestidos com padronagens que remetiam à rica cultura do seus ancestrais. Os olhos da cor de mel e o nariz afilado lhe conferiam uma beleza exótica e apreciada. A jovem estava ali a pedido da avó, cuja amizade com o xamã remontava à juventude.

Cercada por artistas mais antigos e já reconhecidos, porém, igualmente talentosos, a arte de Aiyana ficara ofuscada. Restava pouco espaço para expor as suas obras em Jerome. A carreira se desenvolvia de maneira bem mais lenta do que gostaria. Ou merecia, na opinião da artista. Sonhava em colocar as cerâmicas nas galerias famosas de Londres ou de Nova Iorque. Para isto, acreditava, precisaria morar em uma cidade onde pudesse estar em contato com pessoas influentes. Lugares assim são caros de morar. A jovem precisava juntar um bom dinheiro para se mudar e se manter até que a carreira decolasse. Foi quando, aconselhada por um turista com quem tivera um breve envolvimento, produziu peças com a aparência de terem pertencido aos habitantes de Jerome na época da exploração do cobre. Devido à raridade e à enorme procura, esses objetos eram muito caros. Ele prometeu apresentar Aiyana a colecionadores de antiguidade. Assim fez. Ela vendeu a coleção de peças envelhecidas através de processos químicos. Como o comprador as manteria em casa para o próprio deleite e, talvez, mostrasse para apenas alguns poucos amigos, não haveria risco de ter problemas mais à frente. No mais, argumentou, se o comprador ficara satisfeito com os objetos adquiridos, nenhum mal havia praticado. Ainda que não fossem verdadeiros, o homem jamais se frustraria com aquelas peças. A ignorância protege, garantiu. Tanto ela como o colecionador estavam felizes com o negócio realizado. Nada há de errado em vender um prazer, ponderou a moça. Estava de malas prontas. Viajaria no dia seguinte. Moraria em uma cidade próxima a São Francisco, onde teria o padrão e o ritmo de vida que sempre buscara. Jerome era pequena demais para ela, afirmou. Não tinha dúvida de que residindo em uma cidade cosmopolita, seria mais fácil ter o seu talento reconhecido. Ressaltou que estava ali somente para acatar um pedido da avó. Acrescentou ter a consciência tranquila e estar segura da escolha feita. Deu a conversa como encerrada, se despediu e foi embora.

Estávamos na varanda da casa de Canção Estrelada. A jovem ainda não tinha virado a esquina, o xamã murmurou, como se falasse consigo mesmo, em tom quase inaudível: “Para cada busca, uma recompensa…”. Havia compaixão em seus olhos. Perguntei se ele dizia que a jovem encontraria a recompensa por aquilo que buscava. Canção Estrelada respondeu sim com a cabeça e acrescentou: “A ignorância ilude sobre o alcance do mal, jamais oferece proteção”.  Indaguei se ele se referia à artista ou ao colecionador. O xamã esclareceu: “A ambos e a todos. Porém, a responsabilidade cabe a quem a utiliza para prejudicar outras pessoas”. Comentei sobre o inegável talento de Aiyana. Indaguei se na opinião dele a moça alcançaria a fama e a fortuna desejadas. Ele tornou a confirmar com a cabeça e ponderou: “Contudo, todos os desejos têm o preço condizente ao método utilizado na conquista”. Pontuei que, sem nenhuma dúvida, Aiyana era uma artista extraordinária. O xamã me olhou como se estivesse diante de uma criança e desmontou os meus argumentos: “Uma artista extraordinária perdida em escolhas ordinárias”.

Falei que não tinha entendido. Aiyana possuía o incrível dom de dar vida à terra, de transformar o barro em arte, argumentei. Se para cada busca existe a devida recompensa, nada mais justo que encontrasse o merecido reconhecimento. Talento não lhe faltava. Canção Estrelada me ofereceu um doce sorriso e, como se ainda falasse a um garoto, comentou: “Refiro-me a encontrar a recompensa adequada à busca realizada, não aquela que se espera encontrar. A vida nunca se engana. A genuína recompensa não é a ilusão da conquista mundana, mas a exposição à verdade contida na essência do movimento, não raro, inadmitida pelo buscador. Ao ignorarmos ou desprezarmos os elementos fundamentais da busca, a recompensa parecerá estranha. Nada haverá de errado. Apenas aceite, aprenda e agradeça”. Falei que aquelas ideias me pareciam por demais confusas. Na grandeza dos gestos suaves, típicos das almas maduras que carregam consigo a certeza de que o mau caminho nunca leva ao bom destino, em resposta, ele apenas soprou para longe a fumaça do cachimbo pairada à sua frente. Um gesto ancestral cujo significado fala sobre a verdade escondida por trás das camadas nebulosas dos enganos comuns a quem só consegue ver o que é imediato ou está no raso da existência. Não disse outra palavra.

Passaram-se alguns anos. Lembrei-me desse episódio somente uma única vez, quando em uma viagem, por acaso, soube da exposição da mais recente coleção de peças confeccionadas pela Aiyana em badaladas galerias mundo afora. Ávidos, fosse por um bom negócio, fosse por um raro capricho, marchands e colecionadores disputaram cada peça como refugiados lutando por um lugar ao sol. Nas rodas frequentadas por influentes e endinheirados, ter uma peça confeccionada pela designer era sinal de elegância e vanguarda. Por preços estratosféricos, a coleção fora toda vendida antes mesmo da exposição de abertura na capital, em Washington. Ainda percorreria Nova Iorque, Londres, Madri, Paris e Milão. No encarte oferecido nas galerias, o trabalho foi definido como objetos de vieses incomuns aos aspectos vulgares do cotidiano. Isenta de qualquer sofisticação, a simplicidade transcende ao uso e para além da utilização. A simplicidade serve como condutor à verdade oculta por trás da aparente banalidade das situações do dia a dia, cuja importância se despreza e desperdiça. A simplicidade é a elegância levada ao expoente máximo. Na fotografia da designer no encarte, ela em nada se parecia com a jovem que eu conhecera em Sedona. Embora estivesse muito bonita, era uma beleza diferente, que eu não sabia explicar. Perceber não basta. Para explicar se faz necessário entender.

Foram muitos os elogios. A artista passou a morar num espaçoso apartamento em Upper East Side, sofisticado bairro nova-iorquino, onde também funcionava o ateliê que a designer garantia primar pela simplicidade dos móveis e da decoração. Já havia exposições programadas para a nova coleção ainda em fase de preparação. Enquanto isso, por preços condizentes à fama alcançada, confeccionava peças exclusivas a pedido de clientes especiais. A fortuna também lhe sorrira. Ela recebera a devida recompensa pela incansável busca a que se dedicara desde cedo. Uma pessoa com incrível talento e determinação, pensei naquele instante. Depois, envolvido em meus próprios projetos, esqueci de Aiyana.

Tornei a lembrar da designer ao chegar em Sedona no ano seguinte. Canção Estrelada havia me convidado para os cerimoniais do equinócio da primavera, quando, por causa da sua posição, a Terra recebe do Sol a mesma quantidade de luz e escuridão em ambos os hemisférios. Ao chegar, o xamã conversava com Halona, avó de Aiyana, na varanda da casa. Notei uma inegável tristeza nos olhos da anciã. Ao perguntar o que tinha acontecido, a sábia senhora respondeu que quem está vivo não se acomoda na tumba. Achei estranho. Questionei quem estava vivo. A verdade nunca morre, afirmou Halona. Entendi menos ainda. Ela explicou. Com o falecimento do colecionador que havia comprado as peças de Aiyana, a julgar pelo valor histórico que possuíam, os herdeiros as ofereceram para alguns museus. Como de costume, antes de efetivar a compra, as instituições enviaram as obras para análise. Os peritos não tiveram dificuldade em constatar a fraude. Na época, o colecionador exigira um certificado de autenticidade. Ansiosa por fechar o negócio, e na crença de que a mentira nunca lhe causaria problema, Aiyana forjou um documento com falso teor. Um crime com pena mínima de dois anos de prisão. Caso condenatória, a sentença criminal talvez fosse a mais branda das penas. A condenação social é instantânea e possui uma crueldade própria, exacerbada pela falta de critérios, sensatez e limites. Ao se tornar manchete, de imediato, as exposições foram canceladas. Marchands e colecionadores retiraram as peças dos catálogos e das estantes. A fraude corroeu a carreira de Aiyana de maneira drástica e vertiginosa. A noticiada falta de caráter da artista imprimiu uma mancha de difícil remoção no seu inegável talento. A imprensa e as redes sociais, sedentas por tragédias e malfeitos, precisaram de apenas algumas horas para moldar a artista extraordinária em uma bandida ordinária.

Deprimida, Aiyana estava trancafiada na casa da avó. Não queria ver nem falar com ninguém. Escondia-se do mundo e, sobretudo, de si mesma. Sentia vergonha. Muita vergonha. Ao andar na rua, tinha a absurda sensação de que todos os olhares lhe eram dirigidos com censura. O mais difícil para a artista era se olhar no espelho. Simplesmente, não conseguia. Num desesperado gesto de negação, tapara os espelhos do banheiro e do quarto que ocupava. Nem mesmo olhava nos olhos de Halona que a acolhera com extremo carinho naquele momento de turbulência, instabilidade e incertezas. Canção Estrelada se ofereceu para conversar com a artista. A avó explicou que a neta não queria ir a lugar nenhum nem falar com ninguém. O xamã rufou o tambor de duas faces, entoando uma prece em forma de cantiga para que Aiyana aceitasse ajuda e, ainda mais importante, conseguisse ajudar a si mesma, movimento indispensável para superar o difícil momento que atravessava.

Alguns dias se passaram sem que houvesse modificação no ânimo e no comportamento da artista. Incansável, Halona fazia um inestimável trabalho com ervas e orações para que as vibrações lentas e deletérias emanadas por Aiyana não ganhassem forma e poder na atmosfera da casa. Contudo, sabia que eram medidas paliativas. Caso a neta não modificasse o padrão vibratório dos pensamentos e sentimentos, em breve seria engolida pela própria tristeza.

Chegara o dia do cerimonial referente ao equinócio da primavera. Acompanhados por um pequeno grupo de pessoas próximas, Halona entre elas, subimos à montanha através de uma trilha íngreme na floresta. Paramos num enorme platô onde alguns dos rituais aconteciam desde tempos imemoriais. Lá de cima era possível avistar Sedona ao longe. O céu parecia tão perto que tínhamos a sensação de que bastava esticar o braço para tocar nas estrelas. Foi acesa uma fogueira com tamanho suficiente para arder por toda a noite. Em volta, estendemos as mantas. Sentamo-nos formando um enorme círculo. Ritmado pelo tambor de duas faces, Canção Estrelada entoou uma cantiga que agradecia à escuridão a oportunidade de compreendermos a grandeza da luz, em uma das traduções simbólicas dos cerimoniais dedicados aos equinócios. A luz e a escuridão que cuidam dos rituais não se referem ao determinismo da posição planetária, mas às contradições internas provocadas pelas incompreensões oriundas ao posicionamento do engano e da verdade em nossas vidas. Um conhecimento determinante para distinguirmos o bem do mal. Só assim é possível ajustar rotas e encontrar o bom caminho. A dualidade ainda se faz necessária ao nosso nível de consciência. Graças ao preço cobrado pelos erros é que entendemos a importância da verdade e das virtudes em nossas vidas.

Ao término da música, fomos surpreendidos com a chegada de Aiyana. Estava malvestida, descabelada e com olheiras fundas. Em nada se parecia com a artista elegante das exposições. Como desde criança participara dos rituais, sabia onde cada um deles acontecia. Antes que lhe perguntassem, esclareceu que fora tomada por um ímpeto de vontade de buscar a própria cura. Queria sair do lugar escuro que naquele momento habitava em si mesma. Para isto, sabia, bastava uma nesga de luz, admitiu com os olhos marejados. Estava ali para conseguir reencontrar a luz que havia perdido ou deixado apagar.

Imediatamente, Aiyana foi acomodada no círculo sagrado ao lado de Halona. Sagrado como tudo, cuja razão de existir tenha por finalidade nos tornar pessoas melhores. O xamã entoou algumas músicas para alterar o estado de consciência do grupo. Jamais no sentido de entorpecer a mente ou levar ao devaneio, mas para relaxar o ego, gerente do consciente, e assim permitir a participação eficaz da alma, viajante comumente esquecida nos mares do inconsciente. Ao final das canções veio o silêncio. Ensurdecedor para alguns, suave para outros, o silêncio ecoa palavras que apenas uma consciência serena é capaz de escutar. Canção Estrelada orientou que cada um aproveitasse o momento para encontrar o que estava mal compreendido em si mesmo. Uma maravilhosa oportunidade de se reconstruir através da reelaboração de experiências cujos resultados ainda eram dolorosos devido à mágoa, à culpa ou ao medo. Ao reprocessar as equações existenciais com diferentes elementos, a verdade negada ou ignorada se manifesta. Então, a consciência se expande remodelando a realidade. A lucidez lhe concede esse poder.

O xamã orientou: “As mágoas se dissolvem nas virtudes da compaixão – ao não exigirmos do mundo a perfeição que não temos para oferecer – e da humildade – a honesta consciência sobre a própria pequenez diante da grandeza cósmica e de toda verdade ainda desconhecida. Embora jamais devamos nos maltratar, não podemos fugir das responsabilidades que nos cabem. Pedir desculpas e corrigir o erro restaura a dignidade. As culpas desaparecem quando envolvidas pelo autoperdão – fruto dileto da compaixão e da humildade –, não sem a companhia indispensável da vontade sincera em erradicar definitivamente aquele erro específico do rol das escolhas futuras. Assim, evoluímos”. Fez uma breve pausa antes de continuar: “O medo se desfaz com o entendimento de que nada de essencial jamais faltará a quem caminha pelo lado ensolarado da estrada da vida. Isto se chama fé, a indescritível conexão dos movimentos do viajante com a luz. Claro que sempre haverá desafios e dificuldades à frente, pois, a busca pela superação é um eficiente método pedagógico em favor da evolução. De recompensa, a certeza inabalável de que nada nem ninguém o deterá. Não é pouco”.

Passado um tempo que não sei precisar, o xamã voltou a rufar o tambor de duas faces em músicas de agradecimento aos bons espíritos que iluminaram e protegeram o cerimonial. Agradeceu a presença de todos os presentes pela colaboração na manutenção da linda e fantástica egrégora ancorada no local por diversas gerações. De diferentes maneiras, a depender das permissões individuais, todos que conseguiram emergir com a alma à tona do consciente tinham se beneficiado com o ritual daquela noite. Aos poucos, em pequenos grupos, as pessoas se despediram e foram embora. Ao final, restou junto a mim e a Canção Estrelada, apenas Halona e Aiyana.

A artista se confessou arrependida. Embora o ritual a ajudasse a entender quais movimentos internos eram fundamentais antes dos indispensáveis deslocamentos que a aguardavam pelo mundo e pela vida, a dor ainda era enorme. A avó a abraçou com carinho e sussurrou que o processo era exatamente assim. Nada havia de errado. A função de um cerimonial, assim como da meditação ou da oração, não é a de fornecer a cura. Mas de apontar o remédio. Compreender os movimentos intrínsecos que necessita realizar para conseguir se deslocar pelo mundo daqui por diante, significa a exata trajetória de superação e libertação. Por ser fonte de equilíbrio e força de vontade, a compreensão subjetiva serve de alicerce às atitudes objetivas, sem as quais o entendimento restará desperdiçado. Aiyana afirmou estar disposta a pagar o preço da verdade, embora, agora, fosse bem mais alto. Era a única responsável por tudo que lhe acontecera nas últimas semanas. Portanto, sair de onde estava para se colocar em um lugar melhor, fosse no mundo, ou dentro de si mesma, cabia somente a ela. Canção Estrelada ofereceu um lindo sorriso e disse: “Seja bem-vinda de volta à luz. Tudo que nos acontece é para nosso bem. Inexoravelmente. Esse é o preço e a lição da verdade. Compreender a recompensa adequada à busca realizada é aceitar a Lei de Causa e Efeito como poder ordenador, da harmonia, da justiça e da evolução cósmica. Quando não é júbilo, é correção de rota. Entender que cada pessoa tem plena responsabilidade sobre a própria a vida faz germinar a maturidade da alma”.

Emocionada, Aiyana garantiu que aceitaria com resignação o veredito do processo criminal por fraude. Prometeu procurar os herdeiros do colecionador. Pediria desculpas e os reembolsaria. Estava disposta não apenas a devolver a quantia que havia recebido na época, mas a pagar o valor que receberiam caso tivessem vendido a coleção para algum museu. Sabia que isso a deixaria sem dinheiro nenhum. Sem importar quão alto fosse o preço, o que ela buscava agora eram as recompensas da verdade: a dignidade, a liberdade e a paz. Amanhecia. A Aiyana que desceu a montanha levava consigo uma Aiyana que até então a própria Aiyana desconhecia. Não era pouco.

Voltei a Sedona algum tempo depois. Soube que Aiyana deixara a penitenciária havia algumas semanas. O bom comportamento e o acordo financeiro com os herdeiros serviram para a redução da pena. Perguntei ao Canção Estrelada como ela se sentia ao retornar à liberdade. O xamã me corrigiu o raciocínio: “O término da execução judicial da pena restitui-lhe apenas o ir e vir do corpo físico. A genuína liberdade foi conquistada no dia que Aiyana se reconciliou com a verdade. O desvencilhamento dos erros e enganos aos quais sempre se acreditou, concede uma beleza e uma grandeza inimagináveis àqueles que nunca experimentaram a genuína liberdade do espírito”.

Argumentei que a teoria nem sempre encontra aplicação prática. Ele sugeriu que eu avaliasse com os meus próprios olhos. Contudo, me alertou: “É preciso aprender a ver”. Partimos para Jerome na surrada picape de Canção Estrelada. Fomos recebidos com alegria por Halona e Aiyana. A designer ainda montava o ateliê na casa da avó. A oficina funcionava na sala. A varanda serviria de loja. Trabalhara incansavelmente nos últimos dias para a confecção das peças da sua nova coleção, toda desenhada na penitenciária. Animada, contou que apesar das restrições e dificuldades, tinha sido um período muito criativo e fértil, tanto no aspecto existencial como no artístico. Se a verdade é a última fronteira alcançada pela consciência, quando aquela se expande, esta se redimensiona. Então, tudo se modifica. Essa diferente realidade se manifestava como arte através da lucidez do olhar da artista.

Admiti que era possível notar algo de diferente, tanto na designer como nas suas novas peças. No entanto, me declarei incapaz de identificar a essência da mudança. Aiyana explicou estar na simplicidade. Lembrei que o encarte da sua última exposição abordava esse mesmo aspecto. Perguntei se seria mais do mesmo ou se, de fato, algo havia mudado. Eu mudei, ela respondeu. Em seguida, abriu a gaveta e pegou um derradeiro exemplar que guardara, não como nostalgia, mas como aprendizado. O texto do encarte dizia que a coleção era formada por objetos de vieses incomuns aos aspectos vulgares do cotidiano. Isenta de qualquer sofisticação, a simplicidade transcende ao uso e para além da utilização. A simplicidade serve como condutor à verdade oculta por trás da aparente banalidade das situações do dia a dia, cuja importância se despreza e desperdiça. A simplicidade é a elegância levada ao expoente máximo. A artista comentou que só agora alcançava o exato significado dessas palavras. Na época, foram escritas mais por intuição do que por compreensão. Intuição é a voz da alma nem sempre compreendida pelo ego. Depois de elaborar a recente experiência vivida, ela não apenas entendia, porém, estava disposta a viver o esplendor daquela ideia. A sua arte retratava esse novo estilo de vida. A simplicidade é a virtude de afastar os enganos, ilusões e devaneios que servem de cortina de fumaça para esconder a verdade. Ninguém conhece a verdade antes de conhecer a si mesmo. Logo, é no processo de conquista da verdade que o indivíduo e a realidade se transformam. Um poder arrebatador. Não existe verdade à margem do amor. Tampouco, evolução. Querer o melhor para si, ela sempre quis. Descobrir o que era melhor para si só foi possível quando compreendeu que o amor, assim como a vida, exige que se pague o preço da verdade para, somente então, florescer.

Havia uma luz indescritível nos olhos da artista. A beleza de Aiyana não era igual a da linda jovem de vinte anos de idade, quando a conheci. Era uma beleza diferente. Assim como a atual elegância da designer era bem mais interessante do que na época do glamour da fama, apesar de não mais vestir roupas caras nem de se valer dos inúmeros recursos estéticos de outrora. A artista transparecia o encanto oriundo de quem tinha encontrado um lugar chamado verdade para morar em si mesmo. Não existe porto mais seguro nem pilar mais firme. Ela trazia consigo a alegria da viajante que aprendeu a trilhar o bom caminho dentro do próprio coração. Havia a alegria do renascimento de quem, ao pagar o preço da verdade, encontrou o amor que desconhecia por si mesma. Aiyana estava linda como nunca estivera.

Depois, me mostrou os vários desenhos que esboçou no período de reclusão. Aos poucos, cada um deles ganhava vida no forno do ateliê, onde até poucos dias atrás funcionava a lareira da casa. Para o público em geral, se comparada à época que expunha nas galerias famosas, era uma artista em decadência. Para quem possuía um olhar diferenciado, uma designer extraordinária vivida por uma mulher que se descobrira extraordinária. Ela tinha conseguido chegar a um lugar que poucos conhecem. Aiyana havia ido além de si mesma. Não é pouco.    

Yoskhaz

5 comments

Renan agosto 9, 2025 at 5:39 am

Impecável!!

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Sergio Abreu agosto 15, 2025 at 1:49 pm

Não é pouco o que você faz.. ao compartilhar esses textos. Gratidão eterna!!!

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LUIZ CARLOS DIAS agosto 16, 2025 at 3:15 pm

Gratidão pelo texto, reconhencer que erramos no caminho é muito importante, recomeçar e ressignificar nossa nova vida é uma vitória. Luz e paz.

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Márcia Campos agosto 17, 2025 at 9:17 pm

A simplicidade está na verdade em não se iludir!
Gratidão 🙏😊

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SCHWEITZER agosto 28, 2025 at 4:52 pm

“Nada essencial jamas faltara a quem caminha na estrada da luz”

Acho q essa é uma senão a lição mais importante da vida.

Divino.

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