MANUSCRITOS VI

Significados perdidos

A palestra tinha sido maravilhosa. O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, sabia expor as suas ideias com extrema clareza. Assuntos considerados difíceis se tornavam de fácil entendimento. Assim fazem os sábios. Quando a explicação é nebulosa, significa que a ideia ainda não está madura naquele que a expõe. Contudo, nas aulas do bom monge, apesar do raciocínio claro e objetivo, ao final, tínhamos a sensação de que ele sempre deixava algumas reflexões subliminares, como palavras não escritas de um livro, porém, fundamentais para o entendimento mais amplo e profundo da história. Naquela tarde, ele falara sobre um tema delicado, o sentido da vida. Muitas teses já foram desenvolvidas sobre o assunto. Todas de extrema valia. Ao seu modo de nos fazer compreender questões complexas, ele costumava simplificar a ideia em uma única palavra. Este era o ponto central de onde o pensamento seria expandido. Um eficiente método. Como se o conhecimento sobre a aldeia na qual habita fosse o movimento primordial para o indivíduo entender o mundo. E é. Havia assuntos que sempre considerei complicados de entender. Carma era um deles. Li várias explicações sobre o assunto; ouvi muita gente discorrer sobre a complexidade do tema, na maior parte das vezes repetindo frases que pareciam mais esconder do que mostrar. Lembro de quando o Velho iniciou a aula sobre o assunto da seguinte maneira: “Carma é aprendizado. Tudo mais são comentários sobre essa importante questão”. Cerca de uma hora depois, finalmente havia entendido com clareza o que ninguém conseguira com frases enigmáticas, durante anos, me explicar. 

Naquela tarde não foi diferente. O bom monge começou a palestra bem ao seu estilo: “O sentido da vida é evoluir. Tão e somente”. Fez uma pausa antes de acrescentar: “Todavia, entender a evolução, para então vivê-la, é um exercício sem fim”. Ele nos entregava a boa semente para nos fazer jardinar a árvore. Ao ritmo com que ela crescia em nós, entendíamos a sua utilidade e beleza. Assim funciona a tão falada, e nem sempre compreendida, expansão de consciência. O Velho explicava que, entre várias coisas que atrasavam o processo evolutivo, o fato de perdermos ou desvirtuarmos o significado das palavras era um dos aspectos mais comuns e despercebidos. Segundo ele, propositalmente. O fato de uma mesma palavra possuir diversos significados, como alma, por exemplo, era prova desse atraso. Fomos interrompidos pelo sino do mosteiro que nos convocava para o almoço. 

Estávamos animadíssimos. Como costumamos ficar sempre que uma ideia faz despertar algo importante que, até então, não tínhamos notado. Ver o que nunca enxergamos equivale a cura para a cegueira da consciência. A sensação da descoberta é maravilhosa e primordial para as etapas seguintes de encontros e conquistas. Sentados nas compridas mesas coletivas da cantina, conversávamos sobre a palestra interrompida. Tentávamos não apenas decodificar as entrelinhas do conteúdo oferecido, assim como seria a abordagem da parte faltante. O Velho se sentou perto de onde eu estava. 

Em determinado momento, o Guilherme, um dos monges que estavam próximos, comentou que faria uma viagem para passar um período em um conhecido ashram, na Índia, pois acreditava que as práticas milenares de meditação, ali praticadas, o ajudariam a compreender o que nunca conseguira entender em si mesmo. Assim, teria uma melhor leitura de todas as pessoas à sua volta. Outro monge, o Renê, muito amigo do Guilherme, o felicitou e disse sentir uma invejinha boado colega. Neste instante, o olhar do Velho se mostrou atento a nossa conversa. Ele franziu as sobrancelhas e, sem dizer palavra, voltou à refeição. Percebemos e calamos. Renê perguntou se teria dito algo indevido. O bom monge explicou: “Não por acaso, esse foi o tema da palestra de hoje”. Fez uma pausa antes de explicar: “Não existe inveja boa. Ainda que se use a palavra no diminutivo para parecer carinhosa. Como toda sombra, a inveja necessita de iluminação para que não cause sofrimento”. Renê argumentou que todas as coisas possuem polaridades negativas e positivas. Diferente não eram as sombras. O Velho aprofundou: “A polaridade positiva das sombras consiste em despertar uma virtude para substituí-la em sua consciência e escolhas. Inveja é sentir incômodo pelas conquistas de outra pessoa. Este é o genuíno significado da palavra. Penso não ser saudável tal emoção. Tudo mais são distorções de fuga”. 

Renê tratou de esclarecer de que o seu sentimento era diverso daquela definição. Em verdade, tinha admiração pela busca espiritual empenhada pelo Guilherme e se alegrava pelo fato de o amigo estar preste a experienciar mais uma importante etapa na sua existência. Confessou que um dia gostaria de fazer o mesmo. O Velho sorriu e o tranquilizou: “Sei do seu bom coração, incapaz de tentar se apoderar de algo que legitimamente não o pertença. Nesse caso, não tenho dúvida que você está alegre pela oportunidade permitida ao Guilherme. Ainda que também queira viver uma experiência parecida, não sente nenhum desconforto com o fato. Isto não é inveja, porém, alegria e admiração”. Bebeu um gole d`água e prosseguiu: “Dentro de todos nós habitam os sentimentos sublimes, assim como as emoções nebulosas. Aceitar esta realidade nos protege de nós mesmos. A importância do exato significado de todas as coisas, as palavras entre elas, consiste em não nos deixar enganar quando a autêntica inveja se fizer presente. Não haverá riscos de ficarmos tentados a acreditar que a tal emoção é a suposta invejinha boa. Pois, se acontecer, a deixaremos viver solta em nós. Logo teremos sérios problemas; sem darmos conta, as sombras assumem o controle da nossa consciência. O maior truque do mal é nos convencer que ele não existe em nós”.

O Velho acrescentou: “Outro perigo comum são os ditados consagrados, porém incompletos em sua compreensão. Por exemplo, costumamos dizer que aprendemos pelo amor ou pela dor. Em verdade, a dor nada ensina; apenas serve para despertar o amor adormecido pela pressão interna que exerce. Do contrário, nenhuma serventia terá”. O bom monge tinha toda a nossa atenção. Ele prosseguiu: “Quando o sofrimento consegue atingir a sua única utilidade, faz o amor acordar assustado, como quem perdeu a hora para o trabalho. No entanto, finalmente pode mostrar todo o seu poder e luz. Apenas ao envolver a situação com amor, conseguiremos encontrar a solução que nunca vimos, pois a passagem estava em um canto escuro da consciência que até então não tínhamos acesso ou acreditávamos incapazes de alcançar. Somente o amor concede a força e o equilíbrio necessários para a superação das inerentes dificuldades da vida. Do contrário, ao nos mantermos refratários ao amor, sucumbiremos em sofrimento até o dia sem fim. Fato comum na existência de muitas pessoas. Enquanto se alimentarem da própria dor, em dieta restritiva, nada aprenderão”.

Inteligente, Renê argumentou que aquela ideia não se aplicava em todos os casos. Em seguida, articulou: “O medo está na raiz de todas as sombras. Uma sensação destrutiva e limitante. A princípio, algo que necessite de erradicação. No entanto, o medo pode ter utilidade ao nos salvar de perigos e desastres”. O Velho fez não com a cabeça e mostrou outro viés de uma mesma ideia: “O medo enfraquece e desequilibra. Nos convence que jamais conseguiremos. Ele limita, coage e oprime. O que nos salva dos perigos e dos desastres é o conhecimento, a sensatez, a percepção apurada, a sensibilidade refinada, a precaução e também a coragem. Estas virtudes nos lembra que precisamos ter cuidado, atenção, avaliar a hora de ir, o momento de ficar; porém, nos avisa que não podemos ficar estagnados. Tampouco fugir da vida ao se negar aos riscos de encontrar o desconhecido, indispensável à expansão da vida. Sob a desculpa de dias tranquilos, o medo aconselha a nos esconder de quem somos. O medo apavora, diz que nos daremos mal e grita para nunca irmos, pois, muitos já quebraram a cara. Enfim, uma cruel prisão erguida sob os pilares de criações mentais equivocadas. Para evoluir, o medo necessita de desconstrução, como um prédio que, além de ocupar muito espaço, nunca será um bom lugar para se morar. O medo nos apequena, pouco a pouco, até nos anular por completo”. 

Em seguida, levantou uma questão retórica citando o sábio Zalu, em suas consagradas e desconfortáveis perguntas: “Nunca tentar é melhor que errar?”. Sem evitar o dilema, ofereceu o seu olhar: “Não há perigo maior do que uma vida desperdiçada por falta de tentativas. Não existe risco maior do que se negar a aprender com os próprios erros; mestres por excelência, desde que bem aproveitados. O medo é a rota de todas as fugas”. Fez um gesto com a mão para marcar a conclusão do raciocínio e disse: “Onde há medo não existe um Caminho”.

O jovem monge não parecia disposto a desistir dos seus argumentos e ponderou: “O medo é fundamental a sobrevivência da humanidade. Sem ele, seríamos uma espécie em extinção”. O Velho tentou demonstrar o equívoco daquela ideia: “Em verdade, o amor é fundamental à vida. Posso viver sem medo, jamais sem amor”. 

No final da tarde, ao lado do Marcel, outro monge da Ordem, embalados por canecas de café, conversávamos na agradável varanda do mosteiro. Falávamos sobre a palestra, assim como ao acréscimo da ideia oferecida pelo Velho durante o almoço, quando ele surge à procura do Marcel. Trazia uma boa notícia. Uma prestigiada universidade francesa, de acesso restrito, tinha aceitado a inscrição do seu filho. Emocionado, Marcel revelou ter muito orgulho do rapaz. O Velho estava disposto a mostrar a aplicabilidade do tema da palestra em nosso cotidiano: “Você acredita que o seu filho está acima da média dos demais jovens da idade dele?”. Marcel fez não com uma das mãos e esclareceu que não quisera dizer que o filho era melhor que os demais rapazes.  Disse que se alegrava pelo fato dele ser dedicado, estudioso e atencioso. Além de possuir um bom coração. Porém, nada que qualquer jovem também não pudesse se tornar, caso estivesse disposto. O bom monge instou o raciocínio do Marcel: “Então você fala de alegria, satisfação e até mesmo da sua autoestima em razão de ter participado da educação dele”. Fez uma pausa para acrescentar: “Orgulho é uma sombra que nos convence de absurda superioridade moral, intelectual ou social, cujo objetivo é esconder as fraquezas que não admitimos confessar. Enfim, acreditar que somos melhores do que os outros para evitar lidar com as dificuldades que não queremos enfrentar”.

Esclareceu: “Quando uma mesma palavra possuí significados opostos, revela que criamos uma rota de fuga na tentativa de evitar o inevitável confronto. Aquele que todos um dia terão com a própria verdade”.

O Velho explicou o motivo de insistir na ideia desenvolvida na palestra: “O sentido da vida é a evolução. O mundo melhora a partir do aperfeiçoamento individual. Não há outro jeito”. Olhou para as montanhas por breves instantes, como se buscasse inspiração, e prosseguiu: “Contudo, evoluir exige esforço. Dá muito trabalho desconstruir as imperfeições para abrir espaço onde um novo indivíduo irá se erguer. A mente humana é pródiga em encontrar atalhos sinuosos na tentativa de encurtar o longo, porém indispensável, caminho. Assim como o medo, o orgulho é uma das sombras que mais sofrimentos causa, seja pelo desequilíbrio que alimenta, seja pela fragilidade do poder  que não existe. Desmanchar o orgulho com a luz da humildade é um dos trabalhos mais difíceis e necessários em nossa jornada às Terras Altas. Não raro, são necessários séculos de lutas para que a vitória se estabeleça dentro de si mesmo, o mais valioso dos campos de batalhas”.

Ele continuou: “Como disse, os atalhos surgem na tentativa de fugir das tarefas árduas. Aparentemente, fica mais fácil criar novos significados para as sombras ao invés de enfrentá-las uma a uma. Como em um show de ilusionismo, ao estalar dos dedos do mágico, surge a inveja boa de dentro da cartola, a vantagem em sentir medo vem de dentro da manga, o orgulho bom é tirado do bolso da casaca. Meros truques de salão”. 

Fez um gesto com o dedo para lembrar: “Apenas para ficarmos nos exemplos citados hoje. Temos por costume fazer o mesmo com as demais sombras”. Franziu as sobrancelhas e alertou: “Então, ao sentirmos inveja, medo ou orgulho, atribuímos as emoções que nos atrasam a caminhada como sendo movidas por bons motivos. Em nós, tais sombras são do bem. Maus são os outros”. Tornou a olhar para as montanhas por instantes; depois, se virou para acrescentar: “Engana-se quem acredita que conseguirá evoluir sem enfrentar a si mesmo. Quando, ao invés de evoluir o indivíduo ressignifica o mal, se utiliza de truque que, embora conceda um ganho de superfície, instantâneo e aparente, traz uma perda profunda, prolongada e verdadeira. Não há engano maior. Fechar os olhos faz o mal desaparecer. Desaparecer não significa deixar de existir”. 

Até ali eu era um expectador privilegiado daquele aprendizado. Decidi entrar em cena. Usei o dicionário como argumento. Ao procurar a palavra orgulho, o significado principal era sentimento de prazer, de grande satisfação com o próprio valor, com a própria honra. O Velho arqueou os lábios em leve sorriso, como se já esperasse por isso e quis saber se havia outra definição para a palavra. Nada mais, ao menos no dicionário que eu usava como aplicativo no celular. O bom monge balançou a cabeça e disse com um tom sereno de voz: “Vejam o que fizemos conosco. Misturamos orgulho com autoestima, confundimos orgulho com honra e não mais o diferenciamos da alegria. Nenhuma linha sobre os malefícios da soberba, arrogância e prepotência que tal sombra provoca. O insalubre comportamento de pretensa superioridade foi apagado dos nossos dias, não por conquista luminosa, mas por astúcia abusiva. Como se tivesse deixado de existir. Sem demora, haverá o ódio do bem, o mau será bom e o mal será figura de ficção. Ao inexistir distinção entre a palha e o trigo, não haverá razão para se reclamar do gosto azedo do pão. Tornaremo-nos perfeitos sem precisar esculpir a obra inacabada. Para tanto, bastará ressignificar todo o mal”. 

Calei-me. Não houve mais palavra. O Velho pediu licença e se foi. A sós com o Marcel, admitimos que teríamos de prestar atenção, senão seríamos pegos nas armadilhas dos raciocínios tortuosos, que nos enganam sobre quem somos. No dia seguinte, enquanto aguardávamos a continuação da palestra, um dos monges nos mostrava no celular um vídeo de curta duração, uma coletânea de cenas filmadas ao acaso, onde ocorriam tombos desastrosos. As famosas vídeo-cassetadas. Ríamos à vontade quando o Velho entrou. Ele nada disse. Ao iniciar, quis saber o que pensávamos sobre as pessoas sádicas. De imediato, todos repudiaram tal comportamento. Sentir prazer no sofrimento dos outros era algo repulsivo, afirmamos sem qualquer dúvida. Ele fez uma pergunta simples: “Do que vocês riam?”.

Desconcertados, argumentamos que não se tratava de sadismo, mas de situações engraçadas. Apenas isto. Não fazíamos por mal, ponderamos. O Velho disse: “A maioria de nós jamais fará o mal por desejo. Fazemos por desconhecer o autêntico significado do bem”. 

Sem que precisasse acrescentar palavra, nos demos conta de que ainda éramos capazes de dar gargalhadas com as quedas alheias. Qual personagem mitológico traz em si tal hábito? O silêncio que veio em seguida era de arrependimento. Ao contrário do remorso, uma triste prisão emocional, o arrependimento se caracteriza pela consciência do equívoco e a vontade da transformação. Um genuíno movimento de luz. Naquele instante, como se o silêncio falasse, cada um consigo mesmo, assumimos o compromisso em nos desvencilhar da armadilha que até então não tínhamos percebido, mas ainda nos amarrava. Em seguida, o Velho deu continuidade a palestra do dia anterior, sobre evolução, com a seguinte frase: “Evoluir é também encontrar os significados perdidos. Das pessoas, coisas e palavras”.   

5 comments

MARCELLO MELLO SCHWEITZER julho 29, 2021 at 1:58 pm

“A maioria de nós jamais fará o mal por desejo. Fazemos por desconhecer o autêntico significado do bem”.

Acho que aqui resumimos muito bem a grande revelação desta bela estoria, o mal, na grande maioria das vezes não é visto como o mal por aquele que o pratica. Pelo contrario, é sempre uma triste e inesperada consequência do que acreditamos ser nossas boas intenções.

Um mentira contada por nos mesmos, ao ignorar a dor que causamos ao outro, e a dor que machucar ao outro causa em nos.

Amei.

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Terumi julho 30, 2021 at 9:58 am

Gratidão 🙏

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Marcel Andrade agosto 2, 2021 at 11:14 am

“Engana-se quem acredita que conseguirá evoluir sem enfrentar a si mesmo.”

O encontro conosco é invitavel.

Belissímo Texto!!

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Fernando agosto 2, 2021 at 12:12 pm

Gratidão profunda e sem fim irmão Amado, sem fim…

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Karllus setembro 12, 2021 at 7:58 pm

Um fato triste nesse sentido é a zombaria de toda sorte feita abertamente com figurinhas que procura ridicularizar alguém de alguma forma, isso feito com um milhão de explicações que não tem nada demais,. Outro dia me pus a pensar sobre isso e posso afirmar que isso tem raiz no mal. Não importa que falem que é uma brincadeira, que não é nada demais, a raiz disso está no mal, isso é mal.

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