MANUSCRITOS IV

A clareza nas relações

Entrei na oficina de Loureiro, o sapateiro amante dos livros e dos vinhos, precisando desabafar. Ao perceber, antes que eu começasse a falar, ele me deu um forte abraço. Um aconchegante gesto de empatia, típico daqueles que têm o mundo dentro do coração. Acomodou-me ao lado do antigo balcão de madeira e disse para eu esperar, pois iria preparar um bule de café fresco para acompanhar a nossa conversa. Com as canecas fumegantes à frente despejei a minha incompreensão com o comportamento das pessoas. Parecia que todos tinham perdido o próprio eixo, acrescentei. Contei que um dos meus melhores amigos tinha me procurado na agência de publicidade. Roberto era o seu nome. Ele tinha uma firma de engenharia especializada em captação de energia solar. Embora se tratasse de algo moderno e ecológico, os negócios não fluíam bem. Os prejuízos se acumulavam mês a mês. Marquei uma reunião. Convoquei toda a equipe de criação da agência para sentar com o Roberto e traçarmos uma estratégia de divulgação. O alvo seria concentrado, em um primeiro momento, nas indústrias. Depois visaríamos lojas e prédios comerciais. As residências ficariam para outra etapa. Toda a publicidade restaria distribuída pelas mídias sociais comuns à internet. O resultado não atingiu a meta esperada, mas foi suficiente para tirar as contas do vermelho e capitalizar a firma de engenharia para os próximos meses. O Roberto me ligou para agradecer. Disse que estava muito satisfeito com o trabalho. Loureiro interrompeu e exclamou: “Maravilha!” Como se soubesse o que estava por vir, riu e brincou: “Agora começam os problemas”.

Falei que sim. Afinal, era a hora das contas. Falei para o Roberto que eu estava feliz por ele. Acrescentei que a gerente financeira da agência iria entrar em contato para passar os custos da campanha. Ele se mostrou surpreso. Disse que acreditava que, por sermos amigos há tempos, eu nada lhe cobraria. Falei que era verdade. Contudo, sustentei que embora eu não auferisse qualquer lucro com o trabalho, tinha os custos da equipe que passara dias debruçada sobre o projeto; fora as despesas terceirizadas, como a arte final dos desenhos e as filmagens. Expliquei que o dinheiro não era destinado a mim; eu era apenas responsável pela criação. Porém era preciso realizar o pagamento de outros profissionais envolvidos com a execução do trabalho. Atônito, Roberto perguntou sobre os custos. Quando soube o valor da dívida, o susto virou revolta. A conversa escalou tons até terminar em discussão com acusações mútuas de desonestidade.

Antes que Loureiro se manifestasse, eu disse que não era só e emendei outra confusão recente. Contei que o romance com a Ana, a minha namorada, chegara ao fim depois de alguns anos de ótima convivência. Tudo porque ela queria casar. Ana acreditava que era o momento de darmos esse importante passo, conduzindo o relacionamento para um patamar mais elevado de convivência e intimidade. Ora, eu nunca prometera isso. Eu vinha de dois casamentos frustrantes. Para mim eram suficientes. Embora eu tivesse duas filhas maravilhosas, acreditava que por adorar a quietude e a solidão, o meu jeito de ser não se adequava à divisão de espaço com outra pessoa. Eu nada tinha contra o matrimônio. Ao contrário, me encantava com a ideia da família tradicional. Confessei que muitas vezes me imaginei sentado à cabeceira de uma enorme mesa, com esposa, filhos, noras, genros e netos em alegres almoços de domingo. Sem dúvida, eu seria feliz se isso tivesse acontecido. No entanto, ao menos nesta existência, eu não tinha sido talhado para tal experiência. Eu aprendera a ser feliz ao meu jeito, dentro das possibilidades que a vida me apresentou e não desejava, ao menos por ora, alterar o meu jeito de viver. Argumentei que talvez eu precisasse viver relações românticas diversas ao casamento tradicional para obter diferentes aprendizados. Isto não me fazia uma pessoa nem melhor nem pior, apenas diferente. Embora eu nunca tivesse verbalizado essas razões para a Ana, era inacreditável que ela não tivesse entendido os meus projetos e intenções afetivas.

Perguntei ao Loureiro o motivo de as pessoas não entenderem o óbvio. O artesão me olhou por alguns instantes, tornou a completar a caneca de café, bebeu mais um gole e disse: “Sem a devida compreensão da outra pessoa, tudo aquilo que acreditamos óbvio no relacionamento deixa de existir. O óbvio sempre está na cabeça de quem o constrói, nem sempre no entendimento daqueles com quem nos envolvemos. A falha de comunicação é a maior causa dos conflitos entre as pessoas. Lembre, tudo o que reside e se move na sua mente é um segredo até que você o revele para o mundo. Enquanto isto não acontecer, essa verdade será apenas sua. Logo, não exija que ninguém a conheça de antemão. Ninguém tem tamanha obrigação.”

“Todo o conteúdo que resta subentendido em suas intenções está óbvio apenas para você. Tão e somente. Viva com esse conceito para viver em paz com o mundo.”

Falei que eu era honesto em minhas relações, sejam pessoais, sejam profissionais. Há muito não mentia nem fraudava. Contudo, não era necessário falar tudo, mormente quando o outro tem condições de captar o que está nas entrelinhas. Loureiro foi didático: “Não duvido disso. Contudo, será preciso entender as virtudes elementares à honestidade. A honestidade é a virtude de viver a verdade para com os outros. A honestidade tem um pressuposto, a sinceridade. Esta, a sinceridade, é a virtude de viver a verdade para consigo mesmo. Afinal, existe a indispensabilidade de eu ser sincero comigo para que eu consiga ser honesto contigo. Sem a sinceridade não se atinge a honestidade.” 

“Não é só. Para ser honesto não basta ser sincero; não basta não mentir. A honestidade exige outra virtude como requisito, a simplicidade. Um dos atributos da simplicidade é a clareza. É preciso clareza quanto às minhas intenções para inexistir qualquer fraude no relacionamento. Tudo aquilo que não restar claro pode ser compreendido de maneira diversa ou mesmo passar despercebido. Logo, o outro se sentirá sinceramente enganado quanto ao desdobramento da relação. Quando as intenções ficam obscuras, a honestidade se desmancha no ar.” 

“A verdade não habita apenas fora da mentira, mas também, e principalmente, dentro da simplicidade dos pensamentos expressados.”

“As relações precisam de clareza para serem pacíficas. As relações precisam de clareza para serem justas.”

“Toda fala, discurso ou retórica que deixar margem a mais de um entendimento poderá incorrer em fraude. Ainda que inconsciente. Embora, repita, possa não ter existido uma única mentira. Por este motivo, tanto o Roberto quanto a Ana ficaram chateados contigo.” Argumentei que eram casos diferentes, embora trouxessem algumas semelhanças. Era impossível que o Roberto, como engenheiro e empresário, não soubesse dos custos colaterais de uma campanha publicitária, muito além do meu trabalho de criação na agência. Loureiro ponderou: “O Roberto não é publicitário; ele é engenheiro. São mundos profissionais distintos. Você não pode exigir que ele conheça práticas comuns às agências de propaganda. Do mesmo modo, seria incabível que ele esperasse que você estivesse habituado às nuances da engenharia elétrica.” Bebeu mais um gole de café antes de concluir: “Pode-se saber ou não. O que não se pode é exigir que o outro tenha conhecimento de determinada condição, seja qual for, sem que a deixemos devidamente clara para ele. Isto é um importante marco a estabelecer as fronteiras da honestidade, da justiça e da tranquilidade em todas as relações.” Falei que assim a vida se tornava muito chata. O artesão de ombros e disparou: “Sem a palavra que traz a luz não se pode reclamar dos argumentos das sombras.”

Achei por bem contestar utilizando o problema da minha namorada como exemplo. Argumentei que eu nunca tinha prometido casar com ela. Inclusive, já tínhamos conversado algumas vezes sobre às decepções e inadequações que eu tinha quanto ao matrimônio. A verdade não foi escondida, embora implícita, era notória, sustentei. De outro lado, acreditava que eles, seja a Ana, seja o Roberto, se aproveitaram de alguns hiatos em minhas falas para distorcer o sentido do discurso. Aquilo não era correto; era vitimização. Loureiro concordou, apenas em parte e de forma genérica: “Sem dúvida, a vitimização é uma sombra bastante comum para iludir algumas pessoas das frustrações que não conseguem enfrentar. Fingem não entender; alegam perseguição e esquecem que o mundo tem os seus próprios interesses, não raro, diferentes dos nossos. Entender isso é um passo importante para a maturidade do ser.”

“A honestidade tem uma construção sofisticada. A começar pela erradicação da mentira. Quando atingimos determinado grau de compreensão e avanço, abdicamos da mentira como ferramenta. Trata-se de respeito a si mesmo. Afinal, todas as vezes que eu uso da mentira revelo vergonha ou inadequação por ser quem eu sou. A mentira sinaliza que algo precisa ser aprendido e transformado em mim.”

“Porém, não basta; é preciso ser também sincero. Para tamanha empreitada é necessário vasculhar todas as cavernas do ser até encontrar a mais profunda e oculta das intenções. Não apenas aquelas que omitimos sorrateiramente em nossas relações, mas também as que negamos admitir para não enfrentar o espelho de quem somos. Então, trazê-la à luz.”

“A simplicidade, indispensável às relações honestas, não se utiliza de qualquer subterfúgio quanto às intenções. Não negocia através de discursos prolixos; nada oculta; não se vale de objetivos subliminares; não abre mão da transparência. A clareza desenha a sinceridade; a sinceridade colore a honestidade. Somente assim criamos as relações dignas e justas, com virtude e arte.”

Calei-me. Havia fundamento nas palavras do sapateiro. Era inegável o seu dom, não apenas o de costurar o couro, mas também o de alinhavar ideias. Falei que não sabia o que fazer. Confessei ter dúvidas se, seja a minha namorada, seja o Roberto, não tinham entendido a real dimensão das relações firmadas. Argumentei que, no caso do Roberto, ele podia ter usado o fato de eu não ter sido claro como desculpa para fugir à sua responsabilidade de pagar as despesas. Ou tentar impor o seu desejo, no caso da Ana. Loureiro sugeriu: “Dê a ambos o benefício da dúvida. Isto o tornará mais leve.” Interrompi para dizer que não tinha entendido. Ele bebeu um gole de café e prosseguiu: “Perdoe-os e perdoe a si mesmo. Na dúvida, traga para si o ônus, desde que você o possa suportar. Assuma as dívidas do Roberto. Chame a sua namorada, explique as suas razões de maneira serena, clara e sincera. Peça desculpas por não ter se explicado melhor anteriormente.” Deu uma pausa antes de concluir: “Trazer para si a responsabilidade é bem mais leve do que o peso de uma injustiça da qual você mesmo possa ter dado causa. Pelo sim, pelo não, você não foi claro como deveria, ao menos para legitimar uma postura firme e enérgica a refutar as reclamações do Roberto e da Ana. Assumir a responsabilidade pelas consequências a que deu causa, dignifica. Assumir o ônus material e emocional liberta da dívida moral. Não falo da dívida quanto aos outros, mas em relação à sua própria consciência. Zera-se a conta e, sem nenhum resquício, permite seguir na jornada cósmica.”

Perguntei sobre a consciência dos outros. Será que eles não tinham também questionamentos internos? Será que eles se perguntavam se também tinham obrigação de serem claros? Ou a obrigação era somente minha em não deixar nada subentendido? Loureiro arqueou os lábios em leve sorriso e disse: “Não temos nenhum poder sobre a consciência alheia. Nem devemos ter. Cada um que vigie a sua. Esta é a estrada para a paz; uma maneira segura de se reconciliar consigo e com o mundo.”

Falei para o Loureiro que eu precisava de tempo para pensar os fatos sobre o viés que ele acabara de me oferecer. Conversamos sobre outros assuntos. Dali segui para o mosteiro para mais um período de estudos. Por incrível sincronicidade, o Velho, o monge mais antigo da Ordem, fez uma palestra, com linda interpretação esotérica, sobre o trecho do Sermão da Montanha, quando o Mestre ensina que “Dizei somente: ‘sim’ se é sim; ‘não’ se é não.” Nas horas vagas eu aproveitava o tempo para refletir sobre as questões conversadas com o artesão. Não quis comentar com mais ninguém. Eu entendia que já possuía os conhecimentos necessários para decidir pela minha consciência. Pensei até mesmo em ignorar o Roberto e a Ana e continuar a tocar a vida. Entretanto, eu podia sumir da vida deles, mas era impossível fugir de mim mesmo.

De volta ao Brasil convidei o Roberto para almoçar. No restaurante, falei que eu assumiria a dívida pela campanha publicitária e lhe expliquei as minhas razões. Para minha surpresa, ele disse que tinha pensado muito sobre o assunto. Roberto ponderou que era a sua obrigação ter me perguntado sobre os custos. Admitiu ter sido descuidado. Expôs que os lucros que a empresa auferira eram suficientes para cobrir as despesas publicitárias. No mais, a campanha, uma vez disparada, continuava a gerar bons contratos. Ele não só fazia questão de pagar, mas também de tornar a me agradecer. Selamos a nossa amizade com mais uma garrafa de tinto. À noite, quando procurei a minha namorada para pedir desculpas, a reação foi diferente. Ela se declarou magoada e enganada. Tentei que ela observasse os fatos através da minha ótica; veria que nunca houve mentira nem má-fé da minha parte. Talvez apenas uma falta de cuidado por não ter sido mais claro. De outro lado, pedi para ela se questionar se não estava distorcendo os fatos para transferir a responsabilidade por eu não ter atendido à sua vontade de casar. Confessei que eu gostaria de reatar o romance, embora mantivesse o propósito de não casar. Ana se declarou ofendida, disse que eu era um homem insensível e pediu para eu ir embora. Como eu não morava longe, embora fosse bem tarde, decidi ir a pé. Andei pelas ruas sem pressa de chegar em casa. Eu precisava alinhar os sentimentos à consciência. De início me senti triste pelo desfecho definitivo do namoro. Aos poucos, a tristeza deu lugar a alegria de me sentir digno por ter tratado a Ana e o Roberto com a atenção que eu gostaria de ser tratado. Em seguida senti a agradável sensação da liberdade por não permitir que restasse em mim qualquer dívida moral. Quando cheguei em casa eu estava em absoluta paz comigo mesmo.

Quando deitei naquela noite, a imagem do Loureiro me veio à mente. Lembrei que naquela ocasião, quando eu me retirava da oficina ele me chamou. Virei-me e o sapateiro, sentado por detrás do antigo balcão de madeira, piscou um olho como quem diz para eu não desperdiçar a lição, e finalizou: “Quando disser palavra, diga-a com todas as letras.”

14 comments

Claudia Pires agosto 24, 2018 at 9:23 pm

👏👏👏👏👏

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Tiago Ferreira agosto 25, 2018 at 2:08 am

Boa noite Yoskhaz! Ótima lição de vida vlw pelo o exemplo, gratidão smp por compartilhar sua história de vida a paz seja convosco!!!

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Claudia Pires agosto 25, 2018 at 10:39 am

Maravilhoso! !!!!!

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Joane agosto 25, 2018 at 2:09 pm

Gratidão 💗🌹

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Helvia Dayrell Lopes Pires agosto 25, 2018 at 4:01 pm

Maravilhoso!

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elvis agosto 25, 2018 at 4:12 pm

Muito obrigado mestre (permita que eu assim o chame), cada nova semana uma lição de vida e entendimento a me proporcionar paz de espírito e serenidade para mais um degrau na escada da evolução (como a escada de Jaco). Agradeço imensamente a dedicação e a espontaneidade em nos doar semanalmente pérolas da mais pura sabedoria. Que o universo possa lhe restituir toda sabedoria que nos proporciona.

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Marise dos Santos Gonçalves agosto 26, 2018 at 7:09 pm

Gratidão!!!

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Rita Soares agosto 27, 2018 at 9:27 am

Pois é… “… diga-a com todas as letras” … Tão simples e ao mesmo tempo tão complexo… Mas é a Lei da Vida… Afinal, para que complicar se dá para simplificar?

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Márcia Campos setembro 1, 2018 at 9:31 pm

Honestidade! Tudo de bom

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Adelia Maria Milani setembro 5, 2018 at 6:05 am

Gratidão! ♡♡

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Luciene Domingos fevereiro 9, 2019 at 6:27 am

Uma combinação perfeita : seus textos e a voz da Paula. Gratidão aos dois. 🙏♥️♥️♥️♥️

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Dirceu Ferreira de Lima junho 9, 2019 at 11:49 am

Belo texto. Sempre um ensinamento.

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Terumi dezembro 17, 2019 at 10:43 pm

Gratidão! 🙏

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Michelle dezembro 8, 2022 at 11:32 am

Gratidão

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