MANUSCRITOS III

O melhor mágico do mundo

 

Eram dias modorrentos. Eu andava desanimado naquele período em que estava no mosteiro para estudos. Não conseguia me concentrar nas leituras nem nas meditações. As palestras e debates pareciam de uma chatice sem fim. As atividades físicas, como a ioga ou caminhadas pelas montanhas também não me despertavam interesse. Aos que me perguntavam sobre a razão do meu “olhar sem vida”, respondia que não mais alimentava ilusões quanto à humanidade. Argumentava que as nuvens da vaidade, da inveja, da ganância, da mentira e do medo tinham deixado o mundo para sempre sob as suas sombras. Até que encontrei o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, acomodado em uma poltrona na varanda do mosteiro, entretido com um livro. Ofereci de ir à cantina buscar uma xícara de café e ele aceitou com um lindo sorriso. Quando acomodei a caneca na mesa ao seu lado, o monge me convidou para sentar. Sem que ele me perguntasse nada, assim que me acomodei, soprei um vendaval de lamentos quanto à inutilidade da vida. Confessei que não via sentido em viver e, talvez, aqueles que viviam pela busca constante do prazer estivessem certos. O Velho deu de ombros e disse: “Depende daquilo que você entende como prazer”.

Fechou o livro e prosseguiu: “É preciso definir um sentido para a viagem. Caso contrário, nenhuma paisagem será capaz de lhe encantar os olhos. Nada nem ninguém terá beleza. Em natural reação, você não terá nada de bom a oferecer em razão do vazio que o habitará. Então, tudo parecerá chato, triste e abandonado, inclusive você. É preciso que sempre haja flores e frutos para compartilhar em nosso cesto sagrado, o coração”.

Contestei com a surrada retórica de que conhecia muitas pessoas, que apesar de furtar e corromper, usufruíam do melhor da vida. Enquanto outras, que seguiam uma vida de acordo com proclamados valores morais, atravessarem por inúmeras dificuldades. Disse-lhe, com enorme convicção, não acreditar que a vida fosse justa, pois, nem sempre quem pratica o bem é agraciado com o doce da existência. Acrescentei que isto era um fato incontestável. O Velho me ofereceu um olhar que nunca esquecerei. Era um olhar de compaixão e bondade. Em seguida, citou um pequeno trecho do Sermão da Montanha, que durante séculos foi interpretado de maneira equivocada por aqueles que se mantêm à margem, agarrados às boias toscas da literalidade: “‘Se o teu olho direito te escandaliza, arranca-o e atira para longe de ti’”. Assustado, questionei que sugestão absurda era aquela de automutilação. O monge deu um gostoso sorriso, balançou a cabeça como quem diz “não é nada disso” e me explicou com paciência: “É preciso ensinar os olhos a ver para que não percamos o essencial da vida, a face preciosa de todas as coisas, sempre na profundidade do ser, distante das aparências da existência. A escolha entre o brilho ou a luz, define o prazer, o sentido e a dimensão da vida”.

Pedi para ele explicar melhor. O Velho foi didático: “Na superfície está o brilho escancarado para os olhos míopes do ego que não conseguem enxergar além das sensações primárias e imediatas; o brilho é a fantasia predileta das sombras. De outro lado, na profundidade está o encanto da existência para quem busca a luz através do olhar refinado da alma no encontro consigo mesmo, com os sentimentos e ideias nobres, na descoberta das virtudes valiosas, pois, somente assim conseguirá abraçar deliciosamente a vida. A escolha dos olhos que usaremos define o mundo que veremos, a rota que seguiremos e o sabor das experiências que cada um quer e terá para si”. Deu uma pausa e concluiu: “Todo o resto é consequência. Decepção ou encanto pela vida? Depende apenas dos olhos que cada um possui”.

“Grosso modo, todas as pessoas, de maneira consciente ou não, buscam os cinco estados de plenitude do ser: felicidade, paz, liberdade, amor e dignidade. Onde os encontrar define o trajeto da viagem pela estrada das sombras ou pelo caminho da luz. Aqueles que insistem nos crimes, roubam ou ludibriam, no fundo, acreditam que os produtos desses atos possibilitarão uma vida melhor. Ledo engano, pois os efeitos sempre estarão atrelados às causas. Inexoravelmente. Apesar de, muitas vezes, morarem em mansões ou navegarem em imponentes iates, terminarão assolados pelas intempéries das sombras como a raiva, a depressão, o medo, a falta de amor sincero, entre outras escuridões silenciosas da existência. Outros, ainda nas veredas do brilho, embora em estágio não tão sombrio, imaginam achar os estados da plenitude na vitória sobre os demais, na ostentação do luxo, na fama vazia e nos aplausos fáceis. Suas escolhas privilegiam aquilo que os olhos conseguem enxergar na superfície, na aparência, longe do mel da essência, abandonado no âmago do ser. Se iludem em buscar fora aquilo que somente encontrarão dentro de si. A sombra mais poderosa, rainha de todas as demais, é a ignorância”.

“Quando não sabemos quem somos, vagamos perdidos e abrimos mão de todo o nosso poder e magia”.

Interrompi para perguntar se ele se referia aos espetáculos de mágica. Acrescentei que desde a infância eu adorava os shows de ilusionismo. O Velho explicou que não era exatamente isso, mas a usaria como metáfora para sublinhar as diferenças: “Não podemos confundir mágica com magia. Mágica é brilho, ilusão e sombras. Magia é luz, transformação e evolução. Um dos melhores truques das sombras é a ilusão através das aparências. Como qualquer bom mágico, o segredo do seu sucesso está em enganar os olhos da plateia. Não raro, a distração é a ferramenta utilizada para desviar a atenção do público para o que realmente interessa. Então, ocorre a troca que nos leva ao engano. A diferença é que quando estamos assistindo a um show, sabemos de antemão as regras, a verdade de que tudo são truques e a enganação faz parte do espetáculo. Na vida, enquanto não percebermos que somos bem mais do que espectadores, mas personagens influentes no palco da existência, ficaremos entretidos com o resultado aparente do truque, sem usufruir da plenitude, que na verdade se revela aos poucos, oculta no processo infinito das transformações íntimas”.

“Nunca houve um mágico mais sofisticado do que as sombras, a ponto de muitos até mesmo negarem a sua existência. Para estes, qualquer cartola é um celeiro de coelhos. A ignorância da plateia em relação aos truques sustenta o sucesso do mágico através dos tempos. A vaidade, o orgulho, a transferência de responsabilidade, a fuga da realidade, a descrença, o desânimo são algumas das ferramentas de ofício. O medo é a ilusão no qual as sombras, no papel de hábil ilusionista, envolve a plateia para, sem que se perceba, fazer acreditar que a valiosa plenitude pode e deve ser trocada por um desejo efêmero, o qual surgirá na manipulação do baralho que reúne as várias cartas do egoísmo”.

“No espetáculo das sombras, o dinheiro deixou de ser um precioso instrumento de modificação da realidade no plano físico para significar a bandeira da vitória; o sucesso profissional se tornou a escalada sobre os demais ao invés de representar o aprimoramento e a superação pessoal. O amor se esgota na crença do controle e da dominação alheia, pela obrigação do outro em relação a mim. A liberdade acaba confundida com a mera facilidade de visitar vários países durante as férias; a dignidade se perde nos vãos do discurso e se desmancha pela falta de exercício. Muitos se iludem que a paz se resolve com atos de ordem pública; e a felicidade os aguarda em festas barulhentas, sem entender que a agitação nem sempre garante a alegria”.

“Elegância não se traduz em roupas chiques; sisudez não é sinal de dignidade; andar por aí não significa liberdade. Riqueza é algo bem diferente da prosperidade. O amor não é uma troca nem uma prisão; a paz é uma conquista interna. A felicidade pode ser infinita e não apenas gotas de orvalho na noite da existência”.

Ficamos um tempo sem dizer palavra. Rompi o silêncio para perguntar se ele achava que o mundo era um bom lugar para se viver. O Velho disse com serenidade: “Vivemos em perfeita sintonia com o nível de consciência e a capacidade de amar que possuímos. O mundo está de acordo com as preferências que se elege para a vida pessoal. A cada um resta tão e somente os resultados das escolhas pessoais. Um aguardado show de ilusionismo e brilho ou um cerimonial diário de transformação e luz? Mágica ou magia se definem pela capacidade dos olhos em ver. Quando tudo parece cinzento, caótico e vazio pode significar um bom momento para ‘arrancar os olhos’ e se permitir um novo olhar. Bons olhos animam e encantam o coração, permitindo uma leitura aperfeiçoada da vida. A depender dos olhos, uma tempestade existencial trará ruínas e tristeza. Então, ficará o anseio por mais um truque de mera aparência. No entanto, a destruição de si mesmo, e de toda a realidade que o cerca, pode ser vista como uma oportunidade imperdível de transformação profunda e infinita beleza através do ritual sem fim de encontrar a luz muito além dos brilhantes fogos de artifício oferecidos pelo mágico das sombras”.

Olhou-me nos olhos e finalizou: “Somente assim poderemos ter um verdadeiro caso de amor com a vida e com o mundo”.

7 comments

Brunão setembro 19, 2017 at 11:29 am

“…os efeitos sempre estarão atrelados às causas. “

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Claudia Pires setembro 19, 2017 at 11:53 am

Maravilhoso!!!!

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cleberson jamile de oliveira araujo setembro 20, 2017 at 1:40 pm

Sou grato por todos os textos que pude refletir.

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Michelle setembro 21, 2017 at 8:17 am

🌹

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Dhaniel setembro 22, 2017 at 5:36 pm

Gratidão , Yoskhaz mudou minha vida!

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Rê Feitas setembro 24, 2017 at 3:45 pm

Obrigada. <3

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Arian novembro 6, 2017 at 9:18 am

Fantástico! Parabéns e obrigado.

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