TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Sexagésimo sexto limiar – A quintessência)

Centenas, talvez milhares, de pessoas desciam de uma pequena montanha. Mulheres e homens traziam no rosto a expressão do encantamento. Comentavam sobre a palestra proferida pelo maior dos mestres, cujo conteúdo, em síntese, sustentava que o amor deveria se tornar o eixo central da vida de todos. Do contrário, tudo restaria perdido. Sugeria soluções desconcertantes para situações e conflitos comuns ao cotidiano, em viés de comportamento bem diferente aos condicionamentos usuais de vitória e derrota aos quais tinham sido educados. O poder das suas palavras tinha origem nas atitudes que as exemplificavam. Interessei-me em conhecer esse mestre. Andei na contramão da multidão em direção ao local onde ocorrera o evento. Ninguém. Ou quase. Solitário, sentado sobre uma pedra, um jovem fazia anotações. Perguntei se era o mestre de que falavam. Ele me observou por breves segundos, como se surpreso pela pergunta, e disse não com a cabeça: “Apenas anoto o que consigo me lembrar de tudo que foi dito. Desejo que as futuras gerações possam também se alimentar desses frutos”. Eu quis saber onde o encontrar. O jovem arqueou os lábios em singelo sorriso e pontuou com convicção: “Busque-o no seu coração. É o lugar certo para achá-lo. Então se tornará capaz de estar com ele em todos os lugares e situações. O verá através de todas as pessoas e coisas do mundo”. Indaguei sobre o que foi dito. Eu precisava entender o poder daquelas ideias. O moço explicou: “Foi um passo a passo para uma vida melhor. Não apenas em teoria, mas sobre a importância da devida aplicação prática. Um manual para a iluminação. Todos os sofrimentos e medos são decorrentes das incompreensões internas ou de comportamentos que estimulam a competição ao invés da colaboração. Enquanto os duelos, nas suas mais diversas espécies de rivalidade, se sobreporem à solidariedade, nada terá mudado. A mágoa e a dor manterão seus impérios. Viver essa nova verdade, tão simples por somente precisar da determinação e da boa vontade da própria pessoa, e ao mesmo tempo tão difícil face às velhas formas de pensar e sentir que, de tão calcificadas, nos impedem de ir para além de quem somos, é o movimento essencial à redenção, a plenitude em seu aspecto mais profundo e genuíno. Equivalente ao leite e ao mel do Reino dos Céus prometido pelos antigos profetas”. Eu quis saber como chegar a tal lugar. O homem me olhou com a compaixão típica de quem está diante de um ignorante e esclareceu: “Conquiste o Reino que existe dentro de você. Assim, viverá Nele onde quer que esteja ou vá. Nada nem ninguém será capaz de o arrancar de lá. Não importa o que aconteça, terá sempre consigo os tesouros do amor, da liberdade, da dignidade, da paz e da felicidade”.

Questionei como fazer para alcançar tamanho intento. Ele me respondeu: “Domine as suas sombras e vícios pessoais; faça florescer as virtudes ainda em semente; mova-se através delas em todas as suas relações. Por viver abaixo dos vales, o mar é o rei de todas as montanhas”. Falei que não tinha entendido. O jovem explicou: “A chuva traz a água do céu, que desce pelas montanhas, irriga os vales, tornando-os férteis e floridos. Depois, formam os rios que terminam por desaguar no mar. Por se situarem nas altitudes mais baixas, todas as águas terminam por se unir ao mar. Inexoravelmente. Daí, toda a sua grandeza e poder. Muitos se acreditam superiores quando pautam seus comportamentos no orgulho e na vaidade; imaginam estar acima quando, em verdade, estão abaixo. Tratam os simples e humildes como se fossem pobres em espírito e desprovidos de valor. Nada sabem sobre grandeza, nobreza e valor. A suavidade e a leveza são mais fortes do que o grito e a brutalidade; a paciência e a delicadeza levam mais longe do que a irritação e empáfia. Todo indivíduo iluminado, por princípio filosófico, é uma pessoa simples e humilde, as virtudes básicas para se conhecer e viver o amor na sua expressão mais sublime. Todo aquele que quiser se tornar grande terá de viver como o menor de todos. Servirá às pessoas ao invés de exigir que elas o sirvam. O amor que temos é o amor que oferecemos; o amor que recebemos é de quem nos ofertou. Fazer o bem é o único método seguro e eficaz de engrandecimento e iluminação. De nada adianta conhecer as teorias do amor, mas exigir notas de consideração ou reconhecimento como pagamento pelo suposto amor oferecido.  Isto não é amor. Para amar é preciso entender o amor. No amor não cabe cobranças, trocas, exibições ou comentários. Do mesmo modo funciona a prática do bem. Que uma das mãos não saiba sobre os bons gestos da outra; que o bem não seja nem mesmo motivo de vaidade calada, mas tão somente de alegria silenciosa. Do mesmo modo, o bem não pode gerar desconforto ou dívida para não se perder pelas entranhas do orgulho e da vaidade. Quando o praticar, se possível, seja invisível; negue o seu próprio valor e importância para que possa ajudar sem constranger aquele que necessita. Agradeça-o pela oportunidade de ele estar ali como exercício de amor e instrumento para a sua escalada rumo à luz”. Fez uma breve pausa, como se procurasse encontrar as exatas palavras para explicar um assunto que costuma gerar muito desentendimento, e disse: “Dar e receber são partes de uma mesma arte. Muitos não sabem dar por se colocarem em suposto plano superior e se deixam envolver em orgulho e vaidade; outros tantos não sabem receber. Sentem-se humilhados por necessitarem de ajuda. Ambos são espíritos ainda eivados em orgulho. Doar e receber com humildade e gratidão são requisitos indispensáveis para aproximar corações. Nem toda ajuda se resume a questões materiais. Um abraço, um sorriso, uma palavra de esperança podem se mostrar mais valiosos do que um saco de moedas de ouro. Todos, sem exceção, em algum momento da existência terão oportunidade de doar algo que possuem, seja amor ou dinheiro, assim como de receber o bem em quaisquer das suas inúmeras espécies”. Repousou o lápis sobre o bloco de anotações e continuou: “Como todo e qualquer poder, o amor precisa de aprendizado e direção, sabedoria e ética para que seja valioso, útil e nobre; equilibrado, sereno e manso. O amor precisa de compromisso para que não seja raso; para que não se reduza a belos discursos. O amor precisa da ação para se completar. O amor nunca chega pronto, há de existir aprendizado e prática. O indivíduo compromissado com a luz sabe que apenas ficará à frente ao se colocar atrás. Em qualquer das suas múltiplas modalidades, o amor é humilde como a verdadeira nobreza; simples por não lhe caber subterfúgios, enfeites, brilhos e adereços; é silencioso, manso e quieto como tudo que é autenticamente grandioso. As paixões e ações escandalosas são meras expressões sombrias do desequilíbrio emocional incontido, um sentimento enfermiço que muitos confundem com o amor. O bem praticado sob o brilho do alarde não tem por finalidade o resgate alheio, porém, a exaltação de uma personalidade arrogante e soberba na tentativa de esconder a fragilidade inconfessável ou os desencontros de uma existência vazia em propósitos luminosos”.

Sentei-me ao seu lado. Ele sorriu ao constatar o meu interesse em suas palavras. Comentei que, em determinado momento, o valor desses sábios, ou indivíduos de bem, será reconhecido, ao menos por algumas poucas pessoas. O jovem balançou a cabeça como se esperasse por esta observação e esclareceu: “Mesmo assim, ao ficar acima, não por ter se colocado, mas por ter sido colocado pelo outros, o sábio não pesa para ninguém, não se exibe nem nada exige. Tem consciência de que apenas serve de instrumento à luz para que nele a luz se acenda e intensifique. Ninguém lhe deve nada; ele sabe que não poderia ter recebido nada mais valioso do que a geração e a manutenção da sua luz interior. Agradece e segue em paz consigo mesmo. Livre e digno. Transformando desertos em jardins dentro de si ao semear flores para o deleite de todos. Somos a luz do mundo; ou deveríamos ser. Todos têm capacidade para isto, poucos estão dispostos a isso. A porta é estreita. Para ultrapassá-la existe a necessidade da renúncia, o deslocamento interno para reestabelecer uma nova escala de valores pelos quais se movimentará pelo mundo em busca das riquezas que colocará na bagagem, os tesouros que levará às Terras Altas. Somos todos viajantes. É preciso entender o que levará consigo. De nada serve conquistar castelos ao preço de deixar que a sua luz se apague. As tentações serão muitas, as provas surgirão a todo instante, as mais diversas vozes dirão se tratar de bobagem ou loucura, tentarão o convencer de desistir ou o afastar do Caminho. Sofrerá desprezo, escárnio e zombaria. Muitos se afastarão, outros o farão alvo de suas incompreensões e ofensas por verem em você o avesso da imagem do abandono que impuseram às próprias almas. Jamais terá as glórias do mundo. Não importa, elas não cabem na bagagem. Vale o bem que você faz. A sua força e equilíbrio não vem da validação alheia ou dos aplausos do público, mas da alegria de se guiar pela verdade, na última fronteira de como a compreende, e se mover pelas virtudes, as mil maneiras de expressar o amor invisível, silencioso e sábio”.

Argumentei que haveria muita resistência, a ponto de impedir a jornada. O homem esclareceu: “Você só será impedido se cometer o equívoco de duelar com o mundo. Não existe a necessidade de atropelar ninguém ao caminhar. Nenhum conflito é necessário. Tudo se resume a vencer a si mesmo, superar as próprias limitações, transformar as suas sombras em virtudes, iluminar as áreas escuras da consciência, pacificar as emoções densas, deixar o amor germinar para desmanchar as incompreensões e as mágoas. Conciliar e apaziguar as relações sem conivência com o mal. Comunique-se de modo claro, sereno e objetivo, não oferecendo margem à dúvida. Sim é sim; não é não. Agir desta maneira gera confiança e segurança nas relações. Ao abdicar da teimosia em mudar as pessoas ou da tolice de medir forças com quem quer que seja, nada nem ninguém o impedirá de prosseguir em frente. Quem não entra em disputas não pode ser derrotado. Em verdade, perdemos apenas para as nossas próprias incompreensões, vícios e relutância em transformar quem somos. Não existe outro adversário. Todas as pessoas que atravessam o nosso caminho têm a finalidade de nos aperfeiçoar. Principalmente aquelas que se colocam como obstáculo, pois assim oferecem a oportunidade para descobrirmos o desconhecido e conquistarmos algo perdido e fora de controle dentro da gente. É como se arrancassem as nossas pernas para permitir que as asas se manifestem. Portanto, ame-os pelo bem que, embora não saibam nem estas sejam suas intenções, terminam por nos proporcionar. Em verdade, elas nos convidam à superação. Agradeça-as!”. Sorriu e fez uma pergunta que não precisava de resposta: “Entende que essa compreensão tem força suficiente para desmanchar todas as mágoas?”. Em seguida, concluiu: “Ao permitir que a alma seja os olhos da consciência, encontrará a luz do sagrado em todas as coisas, pessoas e situações”. Indaguei o que ele entendia como sagrado. A resposta foi precisa: “Tudo aquilo que nos aperfeiçoa”.

Calei-me. Eu precisava concatenar todas aquelas ideias. Naquela conversa havia conteúdo para muitos livros. Talvez nenhum outro fosse necessário para quem quisesse acessar a quintessência da sabedoria. Perguntei ao jovem como guardar tamanho conhecimento para usar no momento oportuno. Ele respondeu de pronto: “Aja com as pessoas da exata maneira como gostaria que elas agissem contigo. Esta frase resume a Lei Cósmica e os ensinamentos dos sábios. Tudo mais são comentários decorrentes dessa verdade”.  

O jovem se levantou, sacudiu a poeira e disse que precisava ir. Perguntei se ele poderia me ajudar; eu não sabia por onde seguir. Como se já esperasse por isso, abriu o bloco de anotações. Um reluzente diamante, plasmado pelo conteúdo das palavras ali escritas, se manifestou diante dos meu olhos. As múltiplas facetas da sua fina lapidação se apresentaram como uma mandala da mais pura luz. Não me surpreendi. Deixei-me seguir a viagem.       

Poema Sessenta e Seis

Por viver abaixo dos vales,

O mar é o rei das cem montanhas.

Para ajudar sem constranger,

O sábio nega o próprio valor.

Fica à frente quando se coloca atrás.

Ao ficar acima não pesa.

Jamais atropela ninguém ao caminhar.

Como nada disputa,

Não pode ser derrotado.

3 comments

Alessandra Freitas junho 2, 2024 at 12:23 pm

Seus textos são tão ricos em conhecimentos sejam filosóficos ou de um português bem escrito que há muito tempo jaz esquecido em épocas de linguagem e modos obscuros.
Todos eles são deliete para a alma e para o aprendizado.
Agradeço imensamente cada lição.

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Maangoba junho 10, 2024 at 3:08 pm

obrigado

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Luiz Dias junho 16, 2024 at 12:15 pm

Gratidão Luz e Paz!

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