MANUSCRITOS VIII

O querer

“Sejam orgulhosos ou humildes, vaidosos ou despojados, egoístas ou solidários, todos querem o melhor para si. E nada há de errado nisto. O acesso a bens de modo que os dias se tornem mais agradáveis, não constitui por si só em um desvio da jornada espiritual. A questão reside no conteúdo e na motivação do querer, assim como no modo utilizado para o alcançar. Seja uma casa, um emprego, um enlace romântico ou a busca pela paz. Nem toda conquista é uma vitória, nem todo bem nos faz bem. Como já dizia o alquimista do Recôncavo, o dinheiro ergue e destrói coisas belas. Tanto prédios quanto almas. Com o querer não é diferente”.

Ela fez uma breve pausa antes de continuar: “Querer o melhor para si trata de um desejo válido e legítimo. O ponto angular reside em saber o que é melhor para si. Não raro, a beleza da vida escorre pelos vãos da escalada até o bem desejado. Seja material ou invisível. O avarento acredita ser precavido, o soberbo crê defender a honra, os covardes desdenham os desafios que se negam a enfrentar, os violentos alegam se defender das agruras do mundo, os egoístas apenas retêm aquilo que consideram essencial à própria felicidade. Os enganos são tantos quantos os motivos que nos fazem querer. Impulsionados por raciocínios tortuosos, muitos dão vazão às próprias sombras sob pretextos aparentemente justificáveis. Atrapalham-se entre o bem e o mal por não os distinguir com clareza. Discernir o certo do errado nunca foi uma leitura fácil. Do contrário, ninguém erraria”.

Olhou-me com compaixão e sugeriu: “Aceitar o melhor caminho, diferente daquele até então percorrido, é gesto de correição árdua, disponível apenas para quem está disposto a se reconstruir sob novos fundamentos. Faz-se necessário descortinar as camadas de enganos, aceitos como verdades inevitáveis por nunca haver cogitado a possibilidade de se permitir uma escolha diferente, fora do padrão ao qual foi condicionado desde sempre. Comportamentos arraigados, transmitidos por gerações desde tempos imemoriais, cujo intuito é de proteger do errado, do mal e do pior, por não sabermos escolher, terminam por nos envolver com o errado, o mal e o pior. Propagamos conflitos dentro e fora da gente. Sofremos. Pelas mãos da própria incompreensão, acabamos por encontrar aquilo que evitamos. Mantemos uma jornada existencial em conluio com o imobilismo, o atraso e a dor. Mover-se pelos dias na mera repetição de comportamentos que já se mostraram ineficientes, é aceitar o errado, o mal e o pior como realidades perenes. Acreditamos estar em paz quando, em verdade, apenas fugimos dos desafios evolutivos oferecidos pela vida. Instauramos a tensão interna nas vezes que nos negamos a enfrentar as dificuldades externas. Desperdiçamos o certo, o bem e o melhor da vida”.

Como se fizesse uma viagem, singrou com o olhar pelo azul do mar até o azul do céu no horizonte distante, antes de prosseguir: “Identificar o jeito de ser que restringe as possibilidades do viver é fase primordial ao autodescobrimento, sem o qual não haverá nenhuma transformação pessoal. Romper com esse comportamento secular e ineficiente, contrário à liberdade – por nos manter cativos às próprias sombras – e à dignidade – enquanto nos impedir de oferecer o tratamento que gostaríamos de receber – é o desejo sincero de muitas pessoas. Contudo, poucos conseguem. O motivo é simples. Não basta querer, é preciso aprender a querer. Por vezes, demoramos demais a nos dar conta de que escolhas até então impensadas, não são apenas possíveis, porém, nos oferecem ainda mais: são elas que abrem as passagens entre as muralhas existenciais que até então acreditávamos intransponíveis”, ponderou Cléo, a bruxa.

Eu estava no topo da Pedra Bonita, um enorme maciço de granito debruçado centenas de metros acima e à beira do Atlântico, no Rio de Janeiro. Como de costume, subo essa montanha para meditar quando me encontro diante de algum dilema existencial. Muitas vezes, apesar de acreditar saber qual é a melhor escolha, algo em mim resta desestruturado. A paz desaparece, a minha alma grita em forma de agonia. Algo em mim precisa ser corrigido sem demora. Um sinal de que, quando desconectado da minha essência, termino por me desviar do bom caminho. Embora tão próxima, nem sempre é fácil ouvir a voz da alma, apenas manifestada no encontro permitido pelo silêncio e pela quietude. Por vezes, nem sempre consigo, pois, de tão intensa, a tensão interna não me permite. É quando preciso de ajuda. Então, busco a ventura de encontrar a Cléo no alto da montanha. Ela nem sempre aparece, mas quando isso acontece, me traduz a luz da minha alma. A linda bruxa morena, de corpo longilíneo e cabelos pretos lançados ao vento, bailando em compasso com os seus vestidos esvoaçantes de tecido fino estampados em cores quentes, sempre se aproxima e vai embora rodopiando entre gaivotas, como coadjuvantes de um fantástico balé encantado. Cléo é considerada uma lenda urbana. Embora todos já tenham ouvido ao menos um história sobre as manifestações da bruxa carioca, poucos a viram. Muitos não acreditam na sua existência. Dizem que é delírio ou imaginação. Eu não me importo. Por mais de uma vez tive a bruxa sentada ao meu lado como uma valiosa intérprete da minha alma. Naquele dia, enquanto conversávamos, a cidade pulsava aos nossos pés.

A Unesco abrira um edital em busca de um livro que, através da ficção, alertasse as crianças da aproximação indevida de adultos mal-intencionados. Um assunto atual, sério e necessário. Tínhamos recém-publicado uma obra maravilhosa de uma jovem pedagoga com esse exato conteúdo, exposto de modo criativo e lúdico ao universo infantil. O livro selecionado seria comprado em quantidades colossais para distribuição mundo afora em uma infinidade de idiomas. Era muito dinheiro. A editora atravessava uma séria dificuldade financeira. Seria não apenas uma solução econômica, mas também editorial. Poderíamos pagar as contas atrasadas, assim como publicar mil outros autores cujos trabalhos mereciam ser conhecidos e reconhecidos. Havia originais maravilhosos à espera para ganhar vida. Escalaríamos um patamar empresarial. Muitas coisas boas aconteceriam. Após uma pré-seleção, quando editoras de todos os cantos do planeta enviaram obras para avaliação, apenas dez livros restaram selecionados para a fase final do processo. O nosso estava entre eles. Como em situações anteriores semelhantes a essa, quando havia grandes interesses envolvidos, a ética não costumava moldar o comportamento dos editores. Defender o próprio livro não bastava. Apontar incongruências e incompletudes nas obras concorrentes era uma postura costumeira na disputa. Soube disto ao contratar um experiente consultor para preparar a exposição do nosso livro perante os jurados. Fui avisado que um desagradável trabalho de bastidores me aguardava. Eu teria de procurar cada um dos jurados, os convidar para um café ou almoço, quando, de maneira sutil e aparentemente desproposital, tentaria destruir os concorrentes. Não se tratava de um concurso, mas de uma guerra sem pólvora nem pudor. Caso me recusasse a fazer, fui alertado que não teria a menor chance. Todos os outros editores fariam isso com o nosso livro. Eram as regras do jogo. Não as aceitar seria ingenuidade. Ninguém é desonesto ao faltar com a honestidade no trato com desonestos, orientou o consultor. Concordei em fazer o trabalho desagradável. Eu precisava ganhar. Significava a sobrevivência da editora. Os fins justificam os meios: seria um mal menor diante de um bem maior, justifiquei para mim mesmo. O pesadelo da falência rondava as esquinas das minhas noites insones. Eu não tinha escolha.

A bruxa retrucou: “Todos têm escolhas. Qualquer situação, por mais complicada que pareça, permite um caminho diferente daquele pelo qual o fluxo dos condicionamentos ancestrais costuma convencer as multidões a permanecerem no mesmo lugar. A vida exige movimento. Sempre será possível uma escolha diversa e arrojada, ainda que não seja a dos sonhos dourados. Aliás, quase nunca a melhor decisão se coaduna com facilidades e privilégios. Acreditar que a vida está fadada à fatalidade, como se as ocorrências do cotidiano de uma pessoa a colocasse a bordo de uma nau sem leme, à mercê das marés e das correntes desconhecidas, sujeita a inevitáveis naufrágios, é não compreender o direito inalienável ao livre-arbítrio, no qual reside o poder do direcionamento pessoal rumo ao destino compatível às escolhas realizadas”. Cléo deu de ombros e arrematou: “Por vezes, a melhor opção não é fugir da tempestade, mas consiste em abraçar a dificuldade”. Atônito, questionei como eu poderia acolher algo que poderia me destruir. Ela sorriu e comentou: “Acreditar que algo ou alguém tem o poder de nos destruir é uma ideia contrária às forças da Luz que ordenam e equilibram o Universo. Apenas cada um pode fazer isso consigo mesmo. Ninguém mais. Por isso digo que precisamos aprender a querer”. Falei que somente desejava salvar a editora da falência. Era uma questão de sobrevivência. Uma vontade justa e natural, aleguei. Cléo foi rigorosa: “Os fins, por mais nobres que sejam, jamais justificam os meios torpes usados para os conquistar. Nenhum mal, por menor que seja, serve para alicerçar o bem. Argumentos contrários não passam de falácias usadas na tentativa de evitar o esforço indispensável ao progresso espiritual”. Contrariado, sibilei que o preço cobrado pelo bem era muito caro. Foi quando ela me desconcertou: “O bem tem um preço. O mal também. Escolha qual dos dois quer pagar”.

Envergonhado, mas não disposto a aceitar os argumentos da bruxa, ponderei que deixar a editora falir não seria uma escolha sensata. Equivalia ao suicídio empresarial. Lembrei dos funcionários que perderiam seus empregos. Muitos eram arrimos de família. Confessei que eu não conseguia vislumbrar outro caminho que não fosse aceitar as regras do jogo. Todos os outros editores se valeriam delas. Não fui eu quem as impôs, tampouco teria como as evitar caso quisesse salvar a editora da bancarrota. Foi quando a Cléo tornou a me surpreender: “Você conhece o Sermão da Montanha?”. Achei graça da pergunta. Claro que eu conhecia. Era o eixo principal dos meus estudos na OEMM – Ordem Esotérica dos Monges da Montanha –, lugar que eu frequentava havia anos. O Sermão é um autêntico manual para quem deseja direcionar os passos rumo à luz, respondi. A bruxa citou um pequeno trecho do texto sagrado: “Passai pela porta estreita, porque larga é a estrada da perdição. Numerosos são os que por ela trafegam. Difíceis são os caminhos da vida. Raros são os que conseguem atravessar”. Ela prosseguiu: “Qual o significado da porta estreita?”. Calei-me. A bruxa expressou o meu pensamento: “Valer-se das virtudes e da verdade como orientadoras de todas as escolhas. Atrelar o querer à ética. Uma ideia muito simples, porém, de dificílima execução. Alguns dos nossos desejos mais aguardados se mostram ao nosso alcance de modo inadequado”. Olhou para o mar antes de comentar: “Ah! As tentações… as da alma costumam causar mais danos do que as do corpo”.

Em seguida, se virou para mim e prosseguiu: “Todos querem o bem, mas poucos estão prontos para utilizar o bem como roda em prol do próprio movimento. Para tamanho intento se faz necessário trazer consigo um atributo indispensável ao amor e à sabedoria: a abnegação. Uma virtude escassa de encontrar porque prioriza as riquezas da alma em detrimento dos tesouros do mundo, um entendimento fundamental para quem compreende a importância de iluminar os próprios passos através do Caminho. Muitos a entendem como loucura, covardia ou desistência, quando, na verdade, a abnegação exige os mais altos níveis de sinceridade, coragem e comprometimento com a verdade. Trata-se da renúncia às ambições movidas por fama e fortuna, pelas quais multidões guerreiam todos os dias, para as substituir em favor das manifestações pacíficas, silenciosas e honradas de uma alma forjada no fogo de uma existência, na qual a dor trouxe à tona da vida um amor raro, improvável e pouco conhecido. Quem ainda não entendeu quais são as prioridades da vida nada aprendeu sobre o bom querer. Primeiro compreenda as prioridades. Depois, as use para orientar as suas escolhas. Cada querer traz consigo o poder de manter a rota rumo à luz ou conduzir a um desvio que desemboca nos becos escuros da incompreensão. Priorizar as prioridades não é pleonasmo nem redundância, mas ressalta a importância do querer como um definidor de destinos”. Insisti que todos os outros concorrentes se valeriam de um mesmo recurso escuso. Eu ficaria em franca desvantagem. Não me restaria a menor chance. Seria o fim. Cléo me corrigiu o raciocínio: “Os erros alheios jamais servirão de desculpa para justificar os nossos. Seja pelas trilhas sombrias, seja pelas veredas ensolaradas, cada indivíduo decide por qual lado da estrada viajará”. Deu de ombros e acrescentou: “O que os tolos acreditam ser o fim, os sábios enxergam como uma maravilhosa oportunidade de transformação”.

Fazendo alusão a outro trecho do mesmo texto sagrado, em total consonância com a nossa conversa, argumentou: “Muitos não têm consciência ou não dão a devida importância ao valor incomensurável da própria luz. Não se importam de ganhar o mundo ao preço de perder a alma. Têm enorme dificuldade em resistir às tentações do luxo e do brilho por todas as facilidades e privilégios que permitem. Conquistas rasas que pesarão na bagagem para adiante e além da estrada do tempo. A sua alma estará amanhã onde hoje estiver o seu querer”. Questionei se não havia uma enorme dose de ingenuidade em pensar assim. Ela discordou: “O que você entende como ingenuidade, eu vejo como sabedoria. A abnegação é uma virtude desprezada por muitos. Poucos compreendem a enorme força de movimento que essa ferramenta evolutiva possui. Abdicar de um bem material em favor de um valor espiritual é um querer ainda desconsiderado pelas multidões. Um ato de amor à vida. Um autêntico compromisso com a luz. Os abnegados são genuinamente fortes e sábios, embora a maioria os veja como fracos e tolos. Nada há de errado em querer o ouro, desde que jamais entregue a sua alma na barganha de troca. Nem tudo que reluz é luz. Fora da abnegação não há como atravessar a porta estreita”. Ela me olhou com seriedade e perguntou se nas suas palavras havia algo que eu desconhecesse. Respondi que não com a cabeça. Cléo arrematou a conversa: “Ideias sem ação não movem os moinhos da evolução”.

Observei-a se afastar rodopiando por entre as gaivotas até sumir do meu olhar. Desci atordoado da montanha. Aproximar-se da verdade causa medo. A razão é simples: a verdade transforma. Mas traz uma incerteza: será que conseguirei lidar com a nova realidade com que passarei a conviver? Uma dúvida natural. Quando mudamos o padrão de pensar e sentir, de posturas e escolhas, a realidade – formada pelos limites da verdade alcançada – também se altera. Haverá um lugar dentro de mim ainda em construção. E será nele que passarei a viver. Terei à disposição novas ferramentas que ainda terei de aprender a usar até a perfeição. As antigas reações e mecanismos de sobrevivência, úteis até aqui, não servirão mais por serem ineficientes para me conduzir adiante. O aprendizado constante será a tônica da nova realidade. Descobertas, encontros e conquistas contínuas exigem a ousadia e a coragem de querer diferente. Evoluir é uma jornada rumo ao desconhecido. A verdade, de início, parece assustadora. Não é fácil acreditar naquilo que você percebe, mas não vê. Enquanto tiver medo de se sustentar no ar invisível, a lagarta jamais conhecerá as asas ocultas em si.

Entender a verdade não basta. É preciso que se torne elemento indissociável de quem somos. Precisei de alguns dias para assentar ideias e sentimentos. Convoquei os funcionários da editora para uma reunião. Contei sobre as mudanças de planos. Dispensaríamos os serviços do experiente consultor. Abdicaríamos do usual encontro com os jurados no intuito de difamar a concorrência. Expliquei os fundamentos da decisão, assim como os riscos assumidos. Falei que entenderia quem preferisse sair da empresa naquele instante, enquanto ainda tínhamos dinheiro para pagar a rescisão contratual. Se viesse a falência, talvez nem isto fosse possível. Pelos mais diversos motivos, quase todos preferiram se desligar da empresa. Eu esperava que isso acontecesse com alguns, não com tantos. Afastei a tristeza inicial e respeitei a decisão sem contestar. Era parte inerente das dificuldades à porta da estreita. Agradeci o tempo que estivemos juntos e os encaminhei ao contador. Vida que segue. E precisa seguir. Sem lamento, mas com movimento. Com trabalho e nenhum ressentimento. Tínhamos uma apresentação na Unesco para preparar. Montei uma equipe de criação com os funcionários que restaram. Por suas atitudes em um momento tão significativo, uma linda família cósmica se formou pelos laços de luz que passou a nos unir. Da Teresa, a premiada ilustradora, ao Jonas, o rapaz responsável pela limpeza e pelo cafezinho, foi montada uma frente de combate, superação e sobrevivência com aqueles que ficaram. Numa brincadeira séria, nos autodenominamos Os trezentos de Esparta. Não passávamos de meia dúzia. Apenas fazíamos alusão ao fato histórico de quando poucos tiveram a determinação e a coragem para enfrentar muitos. Todas as ideias foram analisadas com carinho. Todas as opiniões foram avaliadas com atenção. Apesar do enorme perigo que se avizinhava, os dias foram moldados com alegria e esperança. Ao final, tínhamos preparado uma linda exposição para apresentarmos na Unesco. Sem nenhuma modéstia ou cabotinagem, entre os trabalhos apresentados pelas editoras concorrentes, considerei o nosso trabalho o mais bonito e completo de todos. Talvez por conter o melhor de cada um nós nos mínimos detalhes da sua criação. Foram momentos inesquecíveis de uma riqueza incomensurável.  

Perdemos o concurso.

Avisei os funcionários através de uma ligação e desliguei o telefone em seguida. Eu não queria falar com ninguém. A minha mente girava entre pedir um empréstimo bancário para quitar as despesas do fechamento da editora até as palavras que eu usaria em agradecimento àqueles que não me abandonaram num momento tão difícil, bonito e delicado. Tinham escolhido atravessar a porta estreita ao meu lado. Foram maiores do que eu. Mereciam todo o meu amor e respeito. Apesar da tristeza relativa à perda da empresa – e ao consequente desligamento daqueles guerreiros pacíficos que caminharam comigo até o fim –, havia uma estranha sensação de paz, talvez até mesmo uma alegria serena, por eu ter me permitido buscar o meu querer da melhor maneira, sem me valer de subterfúgios, das sombras nem do mal. Onde muitos enxergariam uma derrota acachapante, existia uma vitória singela, porém, grandiosa a um só tempo. Algo em mim tinha sido conquistado. E isto me fazia muito bem. Não me faltavam equilíbrio emocional nem força mental para seguir adiante, apesar dos pesares. Havia firmeza e lucidez. Eu sempre compreendi o poder da luz, mas nunca o havia sentido com tamanha magnitude.

Fiquei ainda dois dias em Paris, onde se localiza a sede da Unesco. Mantive o telefone desligado pelo restante da viagem. Tentei vender o catálogo da editora para editores franceses. Seria uma maneira de ao menos pagar a rescisão contratual daquelas pessoas incríveis que acreditaram em mim. Não tive sucesso. Desembarquei no Galeão nas primeiras horas de uma linda manhã de sol. Sem passar em casa, fui direto à editora em São Cristóvão, um bairro repleto de pequenas vilas habitadas por operários. Com o deslocamento de algumas fábricas para outros bairros, havia alguns anos, aproveitamos uma dessas vilas desocupadas para montar a sede da editora. Um local simples, porém, muito aconchegante. Fizemos uma grande reforma projetada pela minha mulher, a Denise. Inspirada no Caminito, a famosa rua de Buenos Aires, cidade onde ela morou, as casas foram coloridas com tintas alegres e vibrantes. Flores foram plantadas nos beirais e nas janelas. Ficou lindo. Eu me sentia bem ali. Eu sentiria falta daquele lugar. Pensei nisto quando tentei destrancar a porta que, para minha surpresa, estava aberta. Era muito cedo. O expediente ainda não tinha começado. No mais, ninguém tinha mais nada a fazer numa editora falida.

Ao entrar, uma surpresa. Os funcionários tinham preparado um farto café da manhã para me recepcionar. Fui recebido com muitos abraços e sorrisos. Percebi que eles se divertiam por eu estranhar aquele movimento. Agradeci o carinho, mas ressaltei que não havia motivo para comemorações. Então, outra surpresa.  Foi quando me contaram que um dos editores que eu havia procurado em Paris após o resultado do concurso, que como os demais tinha recusado a oferta para adquirir o nosso catálogo, entrara em contato com editora. Como ele tinha assistido e gostado da nossa exposição na Unesco, se permitiu analisar o material com mais calma. Acabou encontrando muitos pontos em comum entre a nossa editora e a dele, uma das maiores da França. Viu nisso uma oportunidade para ambas. Como sempre teve vontade de oferecer os seus livros no mercado brasileiro, tentou entrar em contato comigo no mesmo dia. Como o meu celular estava desligado, não conseguiu. Entusiasmado, enviou um e-mail com uma proposta para comprar metade das cotas societárias da editora. Os catálogos se fundiriam, permitindo que nossos livros também chegassem ao leitor europeu. Não somente quitaríamos as dívidas, mas ganharíamos fôlego e fomento para emergir à tona e voltar a crescer. Uma oferta generosa em todos os aspectos. Sem ter como me consultar, mas sem deixar a oportunidade escapar, os funcionários reunidos decidiram, em meu nome, dizer sim a proposta. Os trezentos de Esparta tinham virado a História ao avesso e vencido uma guerra considerada perdida.

O contrato estava em cima da minha mesa de trabalho, na casa ao lado onde funcionava o meu escritório. A sós na sala, li o documento quase sem acreditar naquelas palavras. Em seguida, liguei para o editor francês para agradecer o interesse e comunicar que o negócio estava fechado. Ao assinar a cessão de cotas, ouvi a voz da Cléo atrás de mim: “Não existe derrota para quem se mantém na luz”. Virei-me, mas não havia ninguém. Eu conhecia aquela voz. Em silêncio, agradeci à bruxa por ter me ensinado que saber querer é fator primordial para atravessar a porta estreita. Haverá outras portas à medida que a viagem avançar. Agora sei que todas elas estarão relacionadas ao meu querer.

Yoskhaz

8 comments

SCHWEITZER julho 18, 2025 at 8:18 pm

Perfeito, o caminho estreito levou a derrota, e no final a derrota era o caminho da vitória da alma.

Amei.

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Raimundo Cirilo julho 19, 2025 at 4:59 pm

Grato, Yoskhaz.

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Rai julho 19, 2025 at 5:01 pm

Grato, Yoskhaz.

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Paulo Vitor julho 20, 2025 at 5:52 pm

Grato por mais uma bela e iluminada história.

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LUIZ CARLOS DIAS julho 23, 2025 at 3:19 pm

Gratidão, mais um artigo que nos faz reflerir em qual caminho seguir, a Luz está dentro de nós a dificuldade é abrir os olhos da alma. Luz e paz.

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Sergio Abreu julho 28, 2025 at 6:09 pm

Muito obrigado, mais uma vez, por partilhar tanto aprendizado… seus textos tem o poder de mudar até a nossa vibração! Gratidão!!

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Terumi julho 31, 2025 at 12:59 am

Gratidão 🙏

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Renan agosto 1, 2025 at 8:32 pm

Obrigado!! Como sempre cirúrgico!

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