“De todas as brutalidades que nos atingem, a que mais nos afeta é a tentativa absurda de viver um modelo de comportamento incompatível com os nossos gostos, olhares e verdades. A beleza latente, existente no âmago de todos, sempre à espera de movimentos singulares para que possa florescer, termina por minguar quando não encontra o solo fértil necessário ao seu desenvolvimento. Fingimos nos satisfazer com a beleza de aluguel de um personagem encaixado numa pretensiosa e preestabelecida fórmula de sucesso fácil e felicidade aparente. Então, perdemos quem poderíamos nos tornar. Ao abdicar da originalidade, sem darmos conta, sucumbimos em atos contínuos de traição. De autotraição”, disse Loureiro, o sapateiro amante dos livros de filosofia e dos vinhos tintos, enquanto colocava um bule com café fresco sobre o pesado balcão de madeira da oficina.
Leila era filha de Jean, amigo de infância do sapateiro, que regressara havia pouco tempo para as Terras Altas. Ela precisava desabafar com alguém que confiasse. Desembarcou do mesmo trem que eu chegara. Sem nos conhecermos, caminhamos da estação à oficina pelas estreitas e sinuosas ruas da pequena cidade, iluminadas parcamente pelos antigos lampiões de ferro fundido. A madrugada ainda não encerrara a noite. Como se intuísse que nos dirigíamos para o mesmo lugar, ela se virou para mim e sorriu quando viu a bicicleta de Loureiro encostada no poste em frente ao ateliê. De modo velado, sem palavra, esse trajeto feito lado a lado a deixou à vontade para me permitir ouvir as suas angústias e mágoas. Desde jovens, Jean construíra uma amizade diferenciada com Loureiro. Como confidentes, conversavam sobre os seus sentimentos, ideias e sonhos mais íntimos. A pedido do pai, Loureiro batizara Leila antes de a menina completar um ano de idade. Acompanhara de perto o crescimento da moça.
Jean tinha um talento nato para o comércio. Desde cedo, comprava e vendia os mais diversos produtos como quem nascera para este propósito. Logo após a adolescência, montou um pequeno mercadinho que, duas décadas depois, se tornara uma grande rede de supermercados em uma metrópole próxima, a cerca de uma hora de trem dali. Com os lucros, reinvestira na abertura de novas filiais na região. A fortuna não lhe furtou a simplicidade nem o jeito carinhoso de tratar as pessoas. Um homem encantador, com uma incrível capacidade de agregar pessoas ao seu redor. Leila crescera numa ambiência de negócios, ao lado dos irmãos gêmeos, Rafael e Gabriel, apenas um ano mais novos do que ela. Apaixonados pelo pai, os filhos se empenhavam em o agradar, se dedicando com afinco à administração da rede de lojas, numa competição velada em busca dos seus elogios. Embora nada exigisse dos filhos, Jean se mostrara satisfeito em os ver trabalhando ao seu lado, compartilhando de um mesmo projeto de vida.
Quando se aproximou dos trinta anos de idade, Leila se casou com Maurice, um economista pós-graduado na Sorbonne, prestigiosa universidade de Paris. Jean o havia contratado para cuidar dos investimentos financeiros da rede, que se sofisticavam à medida que o mundo mudava. O casamento agradou ao pai. Os gêmeos tinham entre si uma ligação mais visceral. Não raro, à título de supostos esquecimentos, sonegavam à irmã algumas informações importantes, num movimento sub-reptício para aos poucos a alijar da administração dos negócios. Jean acreditou que o matrimônio equilibraria as forças na direção da empresa quando ele não mais estivesse no comando.
Até que aconteceu. Apesar da tristeza pela partida do pai, além da falta que a sua presença física faria, Leila acreditava que quase nada mudaria, tanto na empresa quanto na sua vida. Passado menos de um mês, Maurice comunicou o seu desligamento da firma. Estava de partida para Londres, onde atuaria no mercado financeiro. Este fora o seu plano desde que entrara na faculdade, admitiu. Numa conversa franca e desagradável, confessou que o casamento era apenas parte indissociável ao emprego, indispensável ao seu projeto profissional a longo prazo. Não havia amor. Nunca houvera. Emprego e matrimônio representavam a ponte necessária para atravessar o abismo das dificuldades até que adquirisse condições de se tornar sócio de uma corretora de valores mobiliários. Tinha fascínio pelo universo do mercado de ações. E, agora, sem a forte presença de Jean, chegara o momento de levar adiante o antigo plano, no qual, claro, a esposa não cabia. Assim, Maurice se foi sem outras explicações. Tampouco precisava.
Como se não bastasse, ao retomar a rotina na empresa, já sem a presença de Maurice, a convivência com os irmãos transcorrera de mal a pior. Tinham chegado ao ponto de trocar meros cumprimentos formais, sem qualquer resquício de afeição e respeito. Os gêmeos já não mais ocultavam a intenção de que a participação da irmã se tornasse figurativa. Juntos, na ausência do pai, se tornaram majoritários na sociedade. Planejavam para ela um cargo na diretoria com muita pompa e nenhum poder. Algo que Leila jamais admitiria. Reunira-se com um importante escritório de advocacia sobre o comportamento segregacionista dos irmãos. Restava-lhe uma batalha judicial longa e cara pelo controle da rede de supermercados.
Declarou-se cruelmente traída pelo marido e pelos irmãos, justamente aqueles que lhe eram mais próximos. A sua família ruíra. A vida que escolhera para si, desmoronara. Considerava-se uma guerreira. Construiria outra, ainda melhor. Não fugiria da guerra nem se daria por vencida. Estava disposta a encontrar um amor verdadeiro, assim como lutar incessantemente até assumir o comando definitivo e absoluto da empresa. Jamais desistiria. Não descansaria um único dia até que a justiça lhe fosse feita. Uma decisão irrevogável, afirmou antes de bebericar o café.
Loureiro a ouviu com muita atenção e nenhuma interrupção. Quando ela finalizou, a questionou: “Tem certeza de que essa é a batalha que deseja lutar?”. Leila disse não ter escolhas. O sapateiro ponderou: “Sempre temos escolhas. Contudo, muitas vezes, acreditamos restar somente as escolhas que esperam da gente. Noutras, nos falta lucidez para desmontar as escolhas condizentes com o personagem que inventamos para viver”. A executiva disse não ter entendido. O sapateiro explicou: “Quando você se define como uma guerreira, e não há nada de errado nisso, fica pendente saber qual tipo de guerreiro a define. Gengis Khan e Mahatma Gandhi foram dois guerreiros de perfis, métodos, eficiência e luminosidade diametralmente opostos. Enquanto o imperador dominou a Ásia ao preço de um colossal tapete de sangue, o monge derrotou o poderoso Império Britânico sem disparar um único tiro. Nada os aproxima, no entanto, ambos eram guerreiros”. As feições da mulher pediam para ele prosseguir. Loureiro pontuou: “A primeira escolha é decidir se a prioridade é derrotar os seus irmãos ou vencer a si mesma. Isto estabelecerá os seus objetivos, limites e métodos de atuação. Se caminhará na luz ou nas sombras. Atitudes de autorrespeito e amor-próprio são fundamentais ao equilíbrio emocional e à força necessária aos movimentos em prol da sua plenitude. Tudo mais são vitórias vazias”.
Leila questionou se o padrinho a aconselhava a entregar o controle da empresa aos irmãos. Loureiro refutou o raciocínio: “Eu não disse isso. A questão reside na imagem que criamos para transitar pela vida. Esta imagem nos compele a determinadas escolhas, reduzindo muitas das possibilidades à disposição. Então, ao contrário do que imaginamos, nos tornamos menos quando poderíamos ser mais. Por exemplo, se me considero fraco ou manso, fujo ou evito a luta. Assim, possibilidades se abrem e se perdem. De outro modo, se me vejo como um guerreiro, não posso desistir da batalha. Tenho que enfrentar os meus inimigos. Contudo, não basta. Importantes perguntas ficam pendentes: qual será o verdadeiro combate que me aguarda? Quem são os meus maiores adversários? Onde eles estão, no mundo ou em mim?”. Olhou a afilhada com doçura e ponderou: “Faz-se necessário responder essas perguntas antes de iniciar qualquer movimento, sob risco de sucumbir sem entender a guerra perdida antes mesmo de a iniciar. Não importa o resultado. Não há como vencer a batalha errada”.
O sapateiro bebeu um gole de café e comentou: “Noutras vezes, escolhemos em função dos outros, do personagem que queremos manter vivo aos olhos das pessoas que nos admiram, desconsiderando por completo aquilo que, no fundo da alma, tínhamos vontade de fazer”. Leila afirmou não haver ninguém que quisesse agradar. Loureiro a corrigiu: “Existe você. Ou deveria haver”. Ela disse não ter entendido. Ele perguntou: “Quem decide os rumos da sua vida? A executiva decidida e eficiente, que sempre se esforçou para agradar ao pai, a jovem que cresceu em busca da admiração das pessoas ao redor, ou a empresária capaz de superar todas as crises com uma determinação inabalável?”. Fez uma pausa proposital para enfatizar a conclusão do raciocínio e voltou a indagar: “O que aconteceria se, pela primeira vez, ouvisse a mulher sensível e delicada, genuína e autoral, que pode ser igualmente forte e poderosa, só que de um jeito diferente, que nunca sequer ousou conhecer?”. Aturdida, Leila se calou. Loureiro arqueou os lábios em doce sorriso e arriscou: “Uma mulher até então desconhecida por ter sido abandonada, mas que ainda a aguarda em semente”.
A empresária pediu para que Loureiro explicasse melhor. O sapateiro pontuou: “Quando uma batalha se anuncia, alguns fogem, outros a negam. Há os que se levantam para a enfrentar. Vencem somente aqueles que descobrem que batalhas não são guerras, porém, portais de transformação”. Bateu com o dedo no balcão para prestarmos atenção ao raciocínio e disse: “Quando alguém se opõe ao nosso caminho, interesse ou vontade, nos deparamos com um antagonista. Etimologicamente, de origem grega, a palavra significa aquele que nos impede de ganhar o prêmio. Na literatura ou na vida, quando temos um adversário, temos um conflito à espera. Derroto o adversário para vencer a guerra. Simples assim, certo?”. Leila respondeu que sim com a cabeça. Loureiro a corrigiu: “Nem sempre. Tombar o inimigo não é garantia de vitória. A verdadeira função dos antagonistas, muitas vezes, não é a de impedir o acesso ao prêmio, mas nos levar a descobrir que o melhor prêmio não era aquele que imaginávamos quando a batalha se apresentou. Se desconsiderarmos as questões de fundo do combate, desperdiçaremos as melhores oportunidades oferecidas pelos conflitos: as transformações existenciais”.
Leila questionou qual seria a questão de fundo a que se referia. O sapateiro explicou: “Todo conflito externo sinaliza uma potencial descoberta interna. Este é o ponto crucial das genuínas conquistas, quase sempre desconsiderado nos combates. Como guerreiros contemporâneos, nos armamos de advogados, contadores, peritos, laudos, entre outros apetrechos bélicos, movidos de acordo com o nível de poder econômico, político ou social dos contendores envolvidos. Embora não se use mais as espadas, lanças e catapultas da Antiguidade, a ideia ainda é aniquilar o inimigo, no sentido de o tornar impotente à nossa vontade ou interesse. Este ainda é o significado de vitória que move as multidões”. Antes que a afilhada perguntasse, Loureiro explicou: “Sem dúvida, há situações que o enfrentamento se faz necessário. Embora precise de melhor entendimento, não se despreza o senso natural de justiça nem se negocia com a verdade. Contudo, na grande maioria das vezes, o adversário serve apenas para apontar algo mal construído dentro da gente ou sinalizar por uma decisão angular, capaz de mudar para melhor a rota e o rumo das nossas vidas, seja mundo afora, seja universo adentro”. Fez uma breve pausa antes de concluir: “Embora não seja a sua intenção, quando o seu papel em nossas vidas é compreendido, o antagonista nos faz entender, aceitar e manifestar a mudança interna até então reprimida. Jamais pelo medo de se colocar diante de ninguém, mas pela coragem de renascer perante a si mesmo sob novos fundamentos existenciais”.
A empresária se calou. Por longos minutos, ninguém disse palavra. Até que Leila indagou se os argumentos do sapateiro seriam para demonstrar o despropósito de uma guerra entre irmãos. Se fosse, queria avisar que não estava disposta a abrir mão dos seus direitos e do seu patrimônio. Loureiro recolocou o raciocínio dela no prumo: “Eu não disse isso”. Em seguida, a questionou: “Você sempre se mostrou muito firme nas suas escolhas e na condução da própria vida. Se essa batalha judicial é mesmo necessária, o que a trouxe aqui? Veio na tentativa de ouvir palavras que pudessem abafar as vozes que transbordam do seu coração? Se foi, não vai acontecer”. Leila perguntou o que ele acreditava que ela se negava a ouvir. O sapateiro foi categórico: “Só você saberá responder”. A afilhada o olhou com doçura como quem diz não faça isso. Ele franziu as sobrancelhas e pontuou: “Não há outro jeito. Apenas a plena responsabilidade pelas consequências de cada escolha cria as condições indispensáveis à maturidade. Somente então, a beleza da vida floresce”.
Leila tornou a se calar por alguns instantes. Tentava alocar novas ideias à velha maneira de pensar. Depois, questionou Loureiro apenas com o olhar: Será? O sapateiro sorriu satisfeito e deu de ombros como quem responde não sei. Emocionada, ela sorriu de volta, não sem deixar escapar uma lágrima rebelde. Neste breve diálogo sem palavra, eles se referiam a um hobby de Leila. No seu tempo livre, Leila gostava de estudar e ler sobre moda. Tinha fascínio pelo assunto. Por paixão e prazer, montara uma alfaiataria artesanal para desenhar e fabricar as roupas que usava. Um estilo de vestir como reflexo da sua maneira de pensar e sentir a vida. Com o tempo, passou a presentear as amigas que se afinavam ao seu gosto. Gostava mais de cuidar da alfaiataria do que administrar o supermercado. No entanto, apesar dos elogios recebidos, nunca considerara fazer da confecção uma grife. Do hobby, uma atividade profissional. “Por quê?”, indagou Loureiro. Leila ensaiou algumas respostas, mas não conseguiu oferecer nenhuma com argumentos consistentes.
Neste instante, enquanto ouvia a fragilidade dos próprios argumentos, Leila se deu conta da traição que cometia contra si mesma. Era o ponto de mutação consciencial. As suas escolhas não podiam mais servir para sustentar as expectativas que criara para manter viva uma personagem que não mais lhe servia. Por motivos justificáveis de acolhimento, pertencimento e validação, principalmente do pai que tanto amava e admirava, a narrativa escolhida servira de condução até aquele momento. Dali em diante, se quisesse seguir em frente, precisaria matar a personagem. Do contrário, a verdadeira autora nunca assumiria o controle da história.
Falando à medida que os pensamentos borbulhavam na mente, Leila considerou a hipótese de, ao invés de brigar indefinidamente pelo controle da empresa, deixar a administração por conta dos gêmeos. Embora fosse receber uma parcela menor dos lucros, teria todo tempo necessário para fazer o que sempre desejou, mas nunca teve a lucidez de aceitar nem a coragem de realizar. Ela sorriu diante do cenário imaginado. Num breve instante de deslize, comum às transições evolutivas, lamentou ter de jogar fora os vinte anos dedicados à rede de supermercados. Loureiro a lembrou: “Foram vinte anos de convivência intensa ao lado do seu pai. Isto tem um valor afetivo impagável. No mais, a experiência acumulada na direção de um grande negócio será útil e indispensável à nova empreitada. Nada se perderá”.
Notei que as suas mãos tremiam. Perguntei se era medo do futuro. Ela respondeu que não. Leila estava emocionada por se perceber na plataforma de embarque da viagem mais importante da sua vida. Uma viagem sem volta por levar ao encontro da outra face da mulher que ainda desconhecia em si mesma. Essa possibilidade a encantava. Deu um beijo na bochecha do padrinho, agradeceu a conversa e foi embora. Muito a esperava. Sem saber, eu assistira o espocar do embrião de uma grife de enorme sucesso alguns anos depois.
A sós, Loureiro se levantou para preparar mais um pouco de café. Enquanto isso, elogiei a têmpera da Leila. Não era uma decisão fácil. Foi quando o sapateiro se valeu dos argumentos citados na abertura desta história: “De todas as brutalidades que nos atingem, a que mais nos afeta é a tentativa absurda de viver um modelo de comportamento incompatível com os nossos gostos, olhares e verdades. A beleza latente, existente no âmago de todos, sempre à espera de movimentos singulares para que possa florescer, termina por minguar quando não encontra o solo fértil necessário ao seu desenvolvimento. Fingimos nos satisfazer com a beleza de aluguel de um personagem encaixado numa pretensiosa e preestabelecida fórmula de sucesso fácil e felicidade aparente. Então, perdemos quem poderíamos nos tornar. Ao abdicar da originalidade, sem darmos conta, sucumbimos em atos contínuos de traição. De autotraição”, disse Loureiro, o sapateiro amante dos livros de filosofia e dos vinhos tintos, enquanto colocava um bule com café fresco sobre o pesado balcão de madeira da oficina. Em seguida, finalizou: “Ao compreender esse processo, a dificuldade se desmancha. O complicado se torna simples”.
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Perfeito, muitas vezes oq queremos é o oposto de nós, então nosso querer na verdade o inverso do nosso verdadeiro ser.