Era uma tarde modorrenta de uma segunda-feira ensolarada no Rio de Janeiro. Eu tinha trabalhado desde cedo. Decidi encerrar o expediente. Antes de voltar para casa, caminhei pelas ruas transversais, tranquilas e arborizadas da Gávea até uma cafeteria escondida dos burburinhos da cidade. Funcionava no térreo de um antigo casarão do bairro. Não havia placa ou letreiro na fachada. O portão aberto e as luzes acesas indicavam que estava disponível ao público. Apesar da completa ausência de divulgação, as mesas estavam quase sempre ocupadas. Quando não chovia, era possível se sentar em uma das mesas disponíveis no agradável jardim ao fundo. Entre canteiros de flores, era possível se acomodar debaixo de uma frondosa e secular mangueira. Eu gostava de ficar no salão interno. Com as paredes repletas de estantes com livros publicados por editoras independentes, alguns quase impossíveis de serem encontrados nas livrarias tradicionais, tinha o ambiente sublimado pelos clássicos do jazz, do blues ou da bossa-nova, em volume suave, servindo de inspiração às reflexões e sem a necessidade de elevar o tom da voz para entabular um boa conversa. Ao menos uma vez por semana eu passava por lá. Já conhecia de vista alguns frequentadores habituais e travara amizade com a Bárbara, a barista, responsável pelo estabelecimento que, sem dúvida, servia o melhor café da cidade.
De estatura mediana, tinha os braços completamente ilustrados por belos desenhos eternizados por tatuagens sobre a pele clara. Os cabelos se mantinham cortados rentes à nuca, estampando cores sazonais que se alternavam do azul ao ruivo, da intensidade negra do ébano às diversas tonalidades de loiro, a depender do estado de espírito do dia. As finas argolas de ouro nas orelhas, somadas ao surrado avental de couro usado pelo seu pai durante muitos anos, enquanto foi operário de uma famosa, porém, extinta fábrica em Vila Isabel, proporcionavam à Bárbara uma aparência bonita, exótica e singular. Eu brincava com a moça, dizendo que ela era uma personagem escapada de algum mangá nunca publicado. Ela se divertia. Dizia que para conhecer as suas histórias era preciso entender aquela cafeteria encantada. O que fascinava na barista, mais do que a personagem ou o cenário, era a sua personalidade, dom e sensibilidade. Graduada em psicologia e amante da psicanálise, em certo momento da carreira profissional, abdicou da clínica e dos pacientes sem jamais abandonar o estudo e a paixão pelos mistérios da psique. Ao contrário, as dores e os prazeres da alma a fascinavam mais e mais a cada dia. Assim como Sócrates ensinava em praça pública, duas vezes por semana, ao final da tarde, a barista subia em um pequeno púlpito, discretamente instalado num dos cantos do salão, para abordar de maneira concisa, clara e profunda, mas sem qualquer academicismo, algum tema que servisse ao interesse de todos. As palestras eram gratuitas e de livre acesso. Mesmo sem nenhuma divulgação, a casa transbordava de tanta gente. Aqueles que conseguiam se valer das ideias, a transformavam em ferramentas do bem-viver, transitando pelo mundo e pela vida com leveza e suavidade crescentes.
Entretanto, o maior encantamento se manifestava de outra maneira. Não raro, a sua apurada percepção a fazia interromper o serviço, pedir licença para se sentar à mesa ocupada por alguma pessoa que ela sentisse precisar de algumas palavras, assim como um viajante perdido e assustado necessita entender que sempre haverá caminhos ensolarados à sua disposição, difíceis de visualizar nos momentos tormentosos e incertos da viagem. A sensibilidade e o conhecimento sintetizados em palavras certeiras atingiam o alvo da consciência em poucos minutos. Então, Bárbara se levantava e retornava à confecção dos cafés. Deixava o indivíduo consigo mesmo para metabolizar as ideias oferecidas em prol da resolução das suas próprias dificuldades existenciais. “Podemos oferecer as sandálias, jamais caminhar pelos outros”, explicava os fundamentos do método utilizado. Por vezes, nenhum resultado satisfatório era alcançado, noutras, o mecanismo se mostrava fantástico e revelador. Um detalhe importante: era a barista quem escolhia o viajante. Era inútil requisitar uma orientação. “Aqui não é um consultório, é uma cafeteria”, repetia Bárbara. Contudo, era bem mais que isso. Creio não haver no planeta outra igual a essa da Gávea.
Naquele dia, me sentei à mesa próxima à estante repleta dos livros sobre Morserus, o fantástico universo habitado por seres antropomórficos criado pelo genial escritor MM Schweitzer. Com cabelos ruivos, Bárbara se aproximou, me ofereceu um sorriso acolhedor e perguntou se podia trazer um espresso duplo acompanhado de um generoso pedaço de bolo de milho com coco. Era o meu pedido de sempre. Retribui o sorriso e disse sim com a cabeça. Foi quando vi Elisa entrar. Quase não a reconheci. Havia alguns anos, como arquiteta de um estiloso escritório, fora a responsável pelo projeto de reforma da vila residencial, localizada em um bairro operário no subúrbio do Rio, transformada em sede da editora onde eu trabalhava. Sob o seu comando, as casas foram modernizadas e conectadas internamente, sem alterar os aspectos históricos da antiga construção, salvo nas cores alegres e vibrantes utilizadas nas fachadas. Alguns telhados receberam claraboias para aproveitar a iluminação natural. O paisagismo também ficou sob a sua responsabilidade. O resultado foi fantástico. Eu adorava trabalhar lá. Soube que o projeto lhe rendera não apenas muitos elogios, mas também vários outros contratos de maior porte. Depois, nunca mais a encontrara.
Eu a tinha na memória como uma mulher bonita, elegante e, o que mais me chamava a atenção, dona de si. Mostrava convicção nas suas decisões, expressadas de maneira firme e tranquila, sem se deixar abalar pelas opiniões contrárias. Cheguei a duvidar se era a mesma pessoa. Cabelos desgrenhados, pele sem viço, olhos sem brilho. Vestia-se de modo desleixado. Não se trata de elogiar a vaidade, mas de entender a importância da autoestima. Elisa parecia apenas uma sombra daquela mulher luminosa que alguns anos antes irradiava alegria e entusiasmo. Como as mesas estavam todas ocupadas, a convidei para sentar-se comigo. Elisa hesitou por uma fração de segundo, mas aceitou. Notei que por trás do balcão, a barista a observava. Indagada pelo garçom, disse que me acompanharia no espresso e no bolo. Antes que eu falasse algo, fomos surpreendidos pela Bárbara, que nos olhou com doçura e pediu para se sentar conosco. Deixei que Elisa decidisse. A arquiteta tornou a hesitar e, mais uma vez, consentiu. Iniciei a conversa perguntando se ela continuava a desenhar os lindos projetos que tanto refletiam o seu talento. Expliquei à barista que Elisa tinha a capacidade de sintetizar em poucos traços, ideias de extrema criatividade. Lembrei que a logomarca da editora, uma máquina de escrever desenhada com apenas algumas linhas, nos havia sido presentada por ela na ocasião. Um dom raro e precioso. A arquiteta se calou por alguns instantes. Com o olhar distante, como quem assiste a uma cena longínqua, avaliou se abriria ou não o seu coração naquela mesa. O olhar bondoso e delicado da barista lhe quebrou a última resistência.
Contou que logo após a obra da editora, quando a vida parecia melhorar, tudo começou a ruir. Nos projetos seguintes sofrera severas críticas. Ninguém se mostrara satisfeito com os seus traços e ideias. Um cliente sibilou ter vontade de colocar abaixo o prédio recém-construído. Outro, cancelou o contrato assim que o projeto foi apresentado. Horroroso foi o adjetivo usado no encerramento da reunião. A partir daí todas as suas ideias e desenhos passaram por constantes questionamentos no ambiente de trabalho. Tornou-se medrosa e insegura. Tinha a sensação de que o mundo passara a observá-la com lentes rachadas e embaçadas, sem condições de encontrar nela o menor resquício de talento. O mesmo talento que até pouco antes, sobrava. A demissão não tardou. Passaram-se os dias. Nenhum outro escritório teve interesse em a contratar. Sentia-se como se não prestasse mais para viver. Estava cansada, desanimada e infeliz. Pior, não via perspectiva de mudança à vista.
Calou-se quando o garçom se aproximou trazendo o nosso pedido. Ele colocou os cafés e os bolos sobre a mesa. Ao invés de dois, eram três xícaras e pratos. A barista perguntou à arquiteta: “Por que tanto abandono?”. Elisa disse não saber a razão de as pessoas se afastarem dela. Bárbara a corrigiu: “A questão não é essa. Qual a razão para você ter se afastado do seu próprio centro de força e equilíbrio?”. A arquiteta alegou ser impossível obrigar o mundo a aceitar. A barista anuiu com a cabeça e acrescentou: “Só os tolos se lançam nessa luta insana. No entanto, repito, a questão não é essa”. Elisa confessou que a rejeição sofrida a desequilibrava e fragilizava. Bárbara a alertou: “Ninguém precisa da aceitação alheia. Para cada um, basta a aceitação de si mesmo”. A arquiteta deu de ombros e alegou que lhe restava aceitar que tinha sido banida do mercado por ser quem era. A barista contextualizou o enredo: “A questão é outra. Em verdade, quando você vai aceitar que as coisas podem dar errado? O ideal de infalibilidade é uma grave enfermidade da alma”. Bebeu um gole de café e arrematou: “Não reconhecer os próprios erros é o que movimenta a engrenagem da exclusão. A autoexclusão. Orgulho e vaidade escondem sentimentos de inferioridade. Daí a sensação de abandono. A genuína solidão não é proveniente do distanciamento das pessoas, porém, de quando nos afastamos do nosso eixo de luz. Então, passamos a viver numa noite escura que parece não ter fim”.
Elisa disse não ter entendido aonde Bárbara queria chegar. A barista explicou: “Após um excelente trabalho, me pergunto se não houve erros nos projetos seguintes. Digo isso porque as críticas chegaram de todos os lados. Inclusive de quem a admirava. Se aconteceu, resta saber como você reagiu a elas”. A arquiteta olhou para a barista com a fúria de quem tem a intimidade da alma invadida. Bárbara sustentou o olhar com serenidade, como se oferecesse o remédio amargo indispensável à cura. Foram breves instantes que pareceram demorar uma eternidade. Aos poucos, a fúria se transmutou num arrependimento que se mantinha inconfessável. Uma lágrima escapou para mostrar o sofrimento reprimido na alma pelo orgulho e pela vaidade de não aceitar ou não saber lidar com os próprios erros. Elisa balançou a cabeça, respirou fundo e admitiu: “Após os aplausos e os elogios, passei a me comportar como se tudo que eu fizesse tivesse a marca da genialidade. Fiz os projetos ao meu gosto, sem me importar com os clientes que tinham os seus próprios gostos e interesses. Sem dúvida, motivei uma quebra de confiança com aqueles para quem eu prestava serviço. Quando vieram as reações contrárias, as repudiei com a arrogância daqueles que acreditam que o mundo tem que se ajoelhar aos seus pés”. Mais calma, saboreou um pedaço de bolo, arqueou as sobrancelhas como aprovando o sabor, bebeu um gole de café e questionou: “Essa é a manifestação do sentimento de inferioridade a que se referiu há pouco?”.
A barista disse sim com a cabeça e esclareceu: “Desde a tenra idade, seja através da educação recebida ou dos condicionamentos culturais que nos modulam, reprimimos ou negamos a diversidade de sentimentos e emoções do nosso universo interior. Mormente aqueles considerados ruins ou errados. Isto não os elimina nem os faz desaparecer. Ao contrário, permitimos que campeiem soltos e sem controle, influenciando de modo desordenado as nossas construções mentais e, por consequência, nosso comportamento. Criamos crenças equivocadas, quando não, desvairadas, que terminam por nos furtar o banquete da vida. Faz com que as experiências, em sua maioria, tenham um terrível sabor amargo. Sem saber lidar com nossas emoções e sentimentos, perdemos o controle da existência e as rédeas do destino. Ainda que negada ou irrefletida, a sensação de navegarmos numa nau sem rumo no oceano dos acontecimentos incontroláveis, traz a sensação de inferioridade diante do poderio de um inimigo imponderável e invencível”. A arquiteta pontuou sobre a insensatez de tentar controlar o incontrolável. A barista a corrigiu: “Se quiser dominar os acontecimentos da vida, perderá. Caso se dedique a descobrir e conquistar a si mesma, nada nem ninguém a derrotará”.
Elisa quis saber mais. Bárbara esclareceu: “Refiro-me a necessidade de conhecer e aprender a lidar com todas as emoções e sentimentos, sem esconder nem repudiar aquelas consideradas feias ou ruins. Elas são inerentes a quem somos. O problema não são os estímulos amargos dos dias, mas a incapacidade de reagir de maneira saudável a eles. Apesar da sua imensidão e poder, não é o tamanho do oceano que faz um barco naufragar, porém, a falta de habilidade para navegar em águas revoltas. Somos todos timoneiros nos mares das emoções agitadas e dos sentimentos tormentosos”. Bateu com o dedo na mesa para ressaltar as palavras seguintes e concluiu: “Para ocultar essa sensação de inferioridade provocada pelo medo, face o desconhecimento de quem somos e de como funcionamos, acreditamos possível nos esconder das tempestades por trás dos nevoeiros do orgulho e da vaidade. Por ignorância, nos tornamos ainda mais vulneráveis. Daí o desequilíbrio e a fragilidade que nos abandona nas noites escuras do medo”.
Elisa disse que aquela conversa era tardia. A viagem fora interrompida. O naufrágio já acontecera. Bárbara a alertou: “Educamos os nossos sentimentos ou eles nos dominam. Isto serve para o medo que a envolveu. Após um projeto bem-sucedido, os seguintes tiveram respostas negativas. Ao invés de pedir desculpas, assumir e corrigir os erros, preferiu se comprometer com os equívocos como se a teimosia tivesse o poder de os transformar em acertos. As reações contrárias ao seu comportamento se tornaram crescentes. Num determinado momento, você não mais suportou a pressão e sucumbiu. Ninguém a destruiu. Foi um processo de autodestruição. Insistir no erro, usando o orgulho e a vaidade como alicerces, equivale a construir uma casa de areia na ventania”. Bebeu mais um gole e de café e prosseguiu: “Ao notar que não mais se sustentaria com esse comportamento, ao invés de refazer a rota, deixou-se duvidar da própria capacidade. Um triste tipo de medo que nos traz cansaço, desânimo e desesperança. Perdemos o gosto pela vida”. Fez uma pausa antes prosseguir: “O medo nos convence que não vamos conseguir superar as dificuldades, que seremos devorados pelas adversidades, nos restando apenas a fuga. O medo não explica que, em melhor análise, não fugiremos dos problemas, mas de quem somos, abrindo mão do melhor que há em nós. Abandonar-se equivale a fugir da verdade e, porquanto, da realidade. Um ato de imaturidade por negar a responsabilidade pelas inevitáveis consequências a que deu causa”. A arquiteta ouvia atenta, como se aquelas palavras ecoassem no seu âmago.
A barista sorriu e continuou: “O medo é como uma lanterna encontrada num quarto escuro que aponta para uma única direção, como se nada mais existisse ao redor. O olhar fixo num pequeno camundongo, em pouco tempo, o torna um enorme leão faminto prestes a nos devorar se ousarmos sair de onde ele quer que fiquemos. O erro superdimensiona o abismo e nos convence que somos incapazes de erguer pontes para o atravessar. Assim, nos afastamos da nossa essência e das maravilhas da vida até nada mais restar de quem somos”. Olhou nos olhos de Elisa com candura e sussurrou: “Assim como qualquer outra pessoa, você é maior do que o maior dos seus medos. Reaja!”. A arquiteta perguntou como poderia sair do lugar escuro que se escondera em si mesma. A barista foi categórica: “Confie em si mesma. Não há poder maior”.
Bárbara fez menção em se levantar. Precisava retornar ao trabalho. Concisa e objetiva, havia falado o que precisava ser dito. Tudo mais seriam comentários sobre o mesmo tema, avaliei sem dizer palavra. Elisa segurou na mão da barista, pedindo para que ficasse mais alguns instantes. Admitiu que aquelas ideias iluminavam aspectos fundamentais de si mesma, que até então mantinha na escuridão porque não os queria ver. No entanto, ao lhe serem mostrados, não mais era possível negar as evidências. Estava disposta a enfrentar tanto o medo como o equívoco das próprias incompreensões. Contudo, confessou não saber como fazer. A barista pontuou: “Recomeçar é reconstruir-se sobre melhores e diferentes pilares. É nascer de novo. Todos precisam passar por isso algumas vezes em uma mesma existência”. Elisa se calou por alguns instantes, como se precisasse arrancar um segredo guardado no fundo da alma. Depois, disse não ter vontade de retornar à arquitetura. Não queria retomar à rotina de antes. Não havia ânimo ao se imaginar fazendo as mesmas coisas, independentemente das críticas ou elogios que viesse a receber. O ciclo se encerrara. Bárbara a provocou: “Para quem sempre trabalhou com criação, qual dificuldade em criar para si uma nova realidade?”. A arquiteta pediu para que fosse mais clara. A barista esclareceu: “Falo de inventar uma vida diferente, na qual caiba uma nova rotina e profissão. Algo no qual você se identifique e lhe dê prazer, sem cair nas armadilhas dos devaneios ou da ilusão. A cabeça pode e deve viajar até as estrelas, mas os pés precisam aprofundar as raízes no solo da sensatez. Esse é o equilíbrio indispensável”.
Bárbara a alertou: “Não espere por solenidades, plateia ou aprovação alheia. Não haverá. Recomeçar é um ato íntimo e solitário, exclusivo de uma consciência que retomou as rédeas da existência e traçou uma nova rota e destino. Trata-se de um gesto íntimo de amor-próprio e autovalidação, ao viver a verdade no limite que a percebe, assumindo os seus gostos e escolhas, crenças e sentimentos, sem depender da aprovação do mundo. Uma alegria serena e silenciosa. Um ato de humildade e fé em si mesmo. Etimologicamente, a palavra humildade é derivada de humus, terra fértil, apta a germinar sementes ainda não cultivadas. Refiro-me às novas ideias, descobertas e conquistas capazes de elevar o padrão de equilíbrio emocional e clareza mental, fundamentais à viagem evolutiva. Fé é a força que nos movimenta ao encontro do sagrado que nos habita e envolve. Confiar na própria capacidade de realizar e progredir é um ato de fé”. Elisa a olhou como quem diz que a teoria era ótima, mas lhe faltava a aplicação prática. Bárbara identificou o anseio, sorriu e sugeriu: “Um jeito eficaz e seguro é ir em busca do dom, um talento pessoal com o qual nos identificamos e que nos nutre de alegria e prazer”.
A barista a provocou: “Há tempos a observo. Vejo-a se sentar debaixo na mangueira no jardim e desenhar por horas. Impressiona-me o brilho dos seus olhos nesses momentos”. A arquiteta abriu a bolsa e colocou sobre a mesa um calhamaço de papel repleto de desenhos feitos à mão. Os olhos de Bárbara pediram para que eu os examinasse. Sem pressa, passei as folhas uma a uma. Na medida em que avançava na leitura, o meu encanto aumentava. Eram tiras de quadrinhos, com histórias curtas, de no máximo quatro imagens cada uma. Nelas, uma mesma personagem, representada por uma menina, lidava com questões comuns ao cotidiano, sempre reagindo com um sarcasmo demolidor e divertido quanto às obsoletas formas de responder à realidade. Com um humor singular e discreto, a menina se mostrava capaz de reinterpretar as situações sem as amarras dos condicionamentos socioculturais. Com graça, encontrava a beleza inusitada por trás das incoerências a que nos habituamos no dia a dia. Sem que se desse conta, a personagem trazia consigo a coragem que faltava para trazer à tona a verdade oculta e reprimida de Elisa. Mostrei à barista. Depois de ler, ela arqueou os lábios em um lindo sorriso e murmurou: “Quem é essa menina? O mundo precisa a conhecer”. Elisa sorriu sem jeito. Bárbara complementou: “É a voz silenciosa e profunda da consciência batendo à porta da existência para realizar a transformação que não mais pode esperar. Um autêntico convite ao recomeço”. Elisa quis saber se lhe era sugerido fazer do passatempo uma profissão. Bárbara esclareceu: “Não se trata de um mero passatempo, porém, de uma genuína terapia. A personagem traz a face oculta da Elisa, que até então era desconhecida ou reprimida. Através dela, você se descobre. Conhece a sua autêntica personalidade. Apresenta-se, provoca e faz repensar conceitos e comportamentos que se acreditavam definitivos. Não com discursos longos e enfadonhos, mas com agilidade e bom humor. O biscoito fino da arte. Esse material, que considera sem valor, encontrará voz em um sem-número de pessoas que atravessam processos semelhantes, mas ainda não conseguiram trazer das profundezas da alma as suas verdades transformadoras”. Em seguida, segurou nas mãos de Elisa com carinho, lhe deu um beijo no rosto e se levantou para voltar ao trabalho.
A sós com a arquiteta, ela quis saber se, como editor, eu poderia a ajudar. Disse que faria por gosto e prazer. O material era de excelente qualidade. Publicamos uma edição experimental com uma tiragem bastante reduzida. O lançamento foi realizado na cafeteria da Gávea, numa tarde de segunda-feira, sem qualquer solenidade especial. Elisa não convidou ninguém. Em ato simbólico, a cartunista assinou dois exemplares, um para mim, outro para Bárbara, entre espressos e pedaços de bolo de milho com coco. Era um momento exclusivo de Elisa. De reencontro, regeneração e recomeço. Desconfio que, universo adentro, a alma festejava repleta de júbilo. Nada mais importante e significativo. Os poucos exemplares demoraram a esgotar. Por algum desses mistérios da vida, um dos livros chegou às mãos de um influente editor chileno com grande penetração na América Latina, Europa e América do Norte, que adquiriu os direitos de publicação. A partir daí, ganhou o mundo.
Passado algum tempo, comentei com a Bárbara sobre a cartunista. Elisa voltara a ser aquela linda e elegante mulher; forte, equilibrada e dona de si. Contudo, não era a mesma mulher. A barista ponderou: “As mais lindas histórias de recomeço têm início quando tudo parece dar errado. Na verdade, é a vida nos corrigindo a rota para que tudo possa dar certo. Quase sempre de um jeito inesperado. Basta não desistir. Por vezes, desde que com novos e melhores fundamentos, é preciso persistir quando os projetos permanecem válidos e reais. Noutras, se faz necessário se reinventar. Em todas, é preciso recomeçar”.