TAO TE CHING

TAO TE CHING, o romance (Quadragésimo limiar – O retorno)

Veneza não muda. A cidade é a mesma há muitos séculos, embora naquele momento ainda fosse um esboço do que seria algum tempo depois quando conheceu o seu apogeu na Renascença. O estilo das roupas é um fator que me ajudava a determinar a época nessa estranha viagem pelo inconsciente coletivo para conhecer o Tao. A cidade fervilhava pela sucessão de acontecimentos e novidades. De um dos navios atracados, vi desembarcarem um elefante e um rinoceronte enjaulados, provavelmente provenientes da África. Encantado com a possibilidade de estar ali, diante de tantos atrativos, eu não sabia para onde olhar. Chamou-me atenção uma mulher recostada na beira do cais. Os seus olhos estavam voltados na direção do horizonte. Embora jovem, a inegável beleza do seu rosto já trazia as marcas de quem teve de superar muitas dificuldades. Contudo, havia uma aconchegante calma em seu olhar, como quem entende a desnecessidade dos conflitos. Senti vontade de me aproximar. Assim o fiz. Perguntei se ela esperava pelo regresso de algum navio específico ou apenas apreciava a paisagem. Sem desviar o olhar, a jovem comentou com um admirável tom sereno em sua voz: “Toda a viagem, em essência, é de regresso”. Argumentei que havia navios que nunca retornavam. A mulher me situou às suas ideias: “Não falo de barcos, me refiro às almas”.

Questionei se aguardava a chegada do corpo de algum ente querido que falecera durante uma viagem. Ela me olhou com compaixão como quem entende que eu não compreendia. Esforçou-se para ser mais clara: “A fonte criadora das nossas almas é pura e perfeita. No entanto, nossas almas nascem toscas e ignorantes. Os sucessivos ciclos existenciais resultam na depuração de uma alma imatura e rude em uma alma sábia e amorosa. A finalidade da existência é a evolução; o aperfeiçoamento da alma a assemelha, passo a passo, à fonte que a originou. A alma é o espírito revestido por um corpo físico. O espírito possui em si a semente da perfeição e a pureza da fonte que o gerou; uma perfeição ainda em potencial, uma pureza ainda latente”. Olhou-me com doçura antes de concluir a explicação: “Portanto, ainda somos espíritos imperfeitos e impuros que buscam a própria luz para desmanchar as nossas próprias sombras que tanto medo e sofrimento provocam”.

Como os meus olhos pediam para que ela prosseguisse, a jovem foi generosa: “Ao modelar a si mesmo, o espírito se torna o criador da sua própria criatura. É também a bagagem que cada ser leva consigo através da estrada do tempo para além do tempo até um lugar onde o tempo não mais importa. Enfim, temos tão e somente aquilo que somos”. Tornou a olhar para o mar e disse: “Somos consciência, virtudes e escolhas. Tudo mais é menos”.

Falei que não tinha entendido a razão de ela ter falado que toda viagem, em essência, é de regresso. A mulher explicou: “Tosco e ignorante logo após a sua criação, o espírito é atingido por todo tipo de influência, tanto as boas quanto as más. Aos poucos, ele adquire o poder do discernimento. Assim, na elaboração das experiências que vive, se divide entre o bem e o mal, escolhendo o que possui mais afinidade naquele momento da sua trajetória. As escolhas definem os graus evolutivos que cada espírito se encontra, em sintonia com as sombras que ainda prevalecem e as virtudes que já traz em si. Cada virtude conquistada significa uma ou mais sombras iluminadas. Assim, ao acender a sua própria luz, na medida que intensifica o seu lume, o espírito caminha para se integrar à luz do mundo. Sem abdicar da sua individualidade, mas se libertando do individualismo, a parte se harmoniza ao todo. À medida que conhece a verdade e se movimenta por intermédio das virtudes, se torna cada vez mais luminoso, semelhante a imagem que o criou; não na aparência física, mas na consciência sutil. Vagamos perdidos pelo mundo até o despertar da alma, quando iniciamos a viagem de retorno à fonte. O regresso é o movimento do viajante no Caminho, que parte para conhecer as belezas e encantos do mundo até que compreende que precisa retornar à origem; somente após encontrar a si mesmo, ele descobrirá as maravilhas da vida”. Virou-se para mim e disse: “Essa é a lição dorsal da parábola do filho pródigo que volta à casa do pai. Os livros sagrados guardam todo o conhecimento da humanidade; há que se ter olhos para ver”. Voltou-se para o mar e disse: “Enganam-se aqueles que procuram no mundo o mel da paz e da felicidade; somente poderão saboreá-lo após conquistarem o próprio coração. O amor é o segredo e o destino. Enquanto não fizerem dele uma casa agradável para morar, não conseguirão avançar no Caminho”.

Perguntei qual a melhor maneira de atravessar essa fantástica estrada que percorremos dentro e fora da gente simultaneamente. A mulher foi precisa: “O sábio se move com suavidade e leveza. Não há outro jeito. Enganam-se aqueles que deixam rastros de asperezas em suas conquistas. Nenhuma será legítima e eterna por não agregar luminosidade ao espírito; serão todas de pergaminhos ou de tijolos, frágeis demais diante da implacabilidade das rodas do tempo; temos apenas aquilo que o tempo não destrói. Nenhum avanço será verdadeiro quando realizado por intermédio da coerção da lei ou de coações pessoais. Do mesmo modo, será impossível prosseguir com uma mente que se alimenta de conflitos e um coração pesado de mágoas e culpas. O autêntico movimento é aquele que nos leva para além de quem somos. Sem transformação não há evolução; a cada passo significa um pouco mais de luz”.

Perguntei se ela poderia definir suavidade e leveza. Falei que eu queria caminhar como os sábios. A mulher sorriu e disse: “Os sábios se orientam pela verdade e se movem através da virtudes. Isto traz equilíbrio e força pelos alicerces profundos que se firmam na construção de si mesmo, a obra da vida. Quando erguidos por esses fundamentos, nenhuma tempestade nos faz tombar”. Ofereceu-me um doce olhar e disse: “A suavidade é resultante do entendimento de que todas os desentendimentos surgem das incompreensões sobre quem somos; então, deixamos de lado a absurda crença de usar conflitos para solucionar conflitos, como quem deseja apagar um incêndio usando fogo. A suavidade é um fluir calmo e seguro por entre as adversidades e dificuldades dos dias, apenas possível quando utilizamos a verdade e as virtudes como mecanismos de resolução dos problemas”. Fez uma pausa antes de prosseguir: “Por sua vez, a leveza resulta da capacidade de não deixar que o coração se torne solo fértil para a propagação de mágoas, tampouco a mente seja celeiro de ideias destrutivas e limitantes a alimentar culpas ou desejos obscuros de retribuir o mal que nos fizeram. Todos os ressentimentos se desmancham com a compaixão, a virtude de entender que não podemos exigir de ninguém a perfeição que não temos para oferecer. Cada um age no limite da sua capacidade e entendimento a cada momento. Inclusive nós. Há que perdoar e se perdoar, se libertando não apenas das mágoas, mas também das culpas por não termos feito no passado do jeito como poderíamos fazer hoje. Fique atento e aguarde, a vida dará uma nova chance para mostrar que aprendemos e evoluímos. Muda-se o cenário e os personagens, mas a essência da lição será a mesma. Aproveite-a!”. Esperou alguns instantes para eu concatenar as ideias e concluiu: “Para tanto, a humildade de estar disposto a se regenerar continuamente, assim como a simplicidade para que possa enxergar a verdade sem qualquer subterfúgio são fundamentais”.      

Pedi que exemplificasse a sua teoria. A jovem tornou a se mostrar gentil: “A humildade mostra a vulnerabilidade do orgulho, a simplicidade evidencia a fragilidade da vaidade, desconstruindo a ilusão e o peso dos personagens que vivemos por engano e tolice. A compaixão suaviza a aspereza das relações; a sinceridade revela a verdade desconfortável, mas libertadora; a honestidade evita a fraude nas relações e livra do peso da mentira. A misericórdia me torna solidário a dor que não é minha; a delicadeza mostra ao outro a sua importância para mim; a pureza me consagra na luz e a fé faz a fogueira do medo virar fumaça. Para quem viaja com suavidade e leveza, todos os ventos impulsionam ao destino”.  

Falei que não era fácil; o mundo é cruel. Ela me corrigiu: “Não vivemos no mundo, mas a realidade; e ela não é estática. Ao contrário, a realidade muda de acordo com o olhar de cada viajante. Tudo depende de como elaboramos cada uma das nossas experiências”. Mostrei-me curioso; ela esclareceu: “Imagine uma mesma situação vivida por muitas pessoas. Se cada uma utilizar uma diferente equação para solucionar o problema, teremos resultados diversos. Assim é a realidade. Ao usar a verdade e as virtudes como fatores de solução, uma improvável porta se abrirá; ao utilizar quaisquer das sombras como elementos de resolução, uma enorme muralha se erguerá. O mundo é o mesmo para todos, as realidades se individualizam de acordo com a capacidade pessoal de se movimentar a cada momento”. Deu de ombros e citou uma das mais geniais lições sagradas: “Se houver luz no seu olhar, todo o universo será luz”. Em seguida, concluiu: “O mundo apenas oferece as experiências a serem elaboradas em realidade; a alma é o laboratório que as transformará em elixir ou veneno. Portanto, não cabe lamentar nem transferir a responsabilidade por se manter infeliz em si mesmo; aprenda a amar mais e melhor”. Fez uma pausa antes de finalizar: “Todos nascem no mundo; ele é uma escola e uma oficina onde aprendemos e realizamos. Do mundo surge a vida no despertar do espírito que somos. É o início dessa fantástica viagem”.

Antes de se despedir, disse: “A vida é um círculo maior formado por um sem-número de ciclos existenciais que variam em quantidade de acordo com a percepção e a sensibilidade de cada viajante. A vida vai além da existência. Após o fim dos ciclos existenciais, ou seja, quando não houver mais necessidade de seguirmos na escola-oficina deste mundo, o processo evolutivo prossegue nas Terras Altas. Ao atingir determinado grau de pureza e perfeição alcançaremos uma vida plena sem o ônus dos desequilíbrios, sofrimentos e medos a que estamos submetidos por causa das incompreensões e inclinações equivocadas ainda dominantes”. Ofereceu-me um lindo sorriso e me revelou um simples segredo: “A existência é o rito de passagem à vida. A verdade e as virtudes são as chaves de acesso”.

Perguntei se ela residia em Veneza. A jovem disse que morava em uma cidade próxima, Assis. Uma pequena canoa, conduzida por um marinheiro muito alto e corpulento que, de pé na popa a manejava com um longo remo, encostou no cais. A mulher fez um sinal para eu embarcar. Agradeci. Desci a escada de pedra que conduzia às margens do canal. Atravessamos um portal interdimensional quando a canoa passou sob uma ponte de pedestres.

Poema Quarenta

O regresso é o movimento do Tao.

O sábio se move com suavidade e leveza.

As dez mil nascem no mundo.

Do mundo fazem surgir a vida.

3 comments

Rhodolfo abril 7, 2023 at 12:33 am

Gratidão! 🙏🙏

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Terumi abril 30, 2023 at 1:10 am

Gratidão 🙏

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Maangoba setembro 5, 2023 at 5:49 pm

gratidão

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