MANUSCRITOS VII

A construção do perdão (A vida é perfeita)

Valentina era uma das monjas mais queridas da Ordem. Simpática, alegre, acolhedora e inteligente, interagia com facilidade entre os diversos círculos da congregação. Engenheira aeroespacial, com uma sólida carreira construída junto a uma famosa empresa de aviação, poetisa de rara sensibilidade, esposa e mãe dedicada. Com longos cabelos negros, olhos expressivos e corpo elegante, chamava atenção pela beleza tanto física quanto espiritual atingidas aos cinquenta anos de idade completados havia pouco. Entrara na irmandade logo após o meu ingresso. A amizade foi imediata. Eu conhecia a sua família e os admirava pela harmonia, respeito e amor com que se tratavam. Ela estava no mosteiro para mais um período de estudos. Entretanto, daquela vez, a engenheira se comportava de maneira diferente. Calada e cabisbaixa, sumia nos períodos livres entre as palestras e cursos para demorados passeios pelas montanhas. Achei estranha aquela maneira de agir. Nas vezes que tentei me aproximar para conversar e saber se estava tudo bem, apesar de delicada no trato pessoal, ela se valia de alguma desculpa para se esquivar. Evidente que algo tinha desandado. Comentei com o Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, enquanto ele podava as rosas do jardim interno do mosteiro, sobre o comportamento arredio da poetisa, que parecia se esconder das pessoas. “Ela se esconde dela mesma”, pontuou o Velho sem interromper o trabalho a que se dedicava. Achei ainda mais estranho. Antes que eu perguntasse, o bom monge esclareceu: “Há várias possibilidades que podem levar uma pessoa a um comportamento assim. Os traumas são as causas mais comuns. A depender de como a experiência foi elaborada no laboratório da alma, pode gerar uma vergonha”. Questionei o motivo que originava a vergonha. O Velho explicou: “A dificuldade em lidar com a realidade. Quando acontece, mentimos ou nos escondemos. A vergonha vem a reboque do sentimento de culpa. Por não ter conseguido se movimentar de outra maneira enquanto a situação acontecia, a pessoa joga sobre os próprios ombros uma carga insensata. Um peso desnecessário. A depender da situação, pode provocar a sensação de destruição, como se a imagem que tem de si mesmo fosse picotada pelos fatos. Perdemos todas as referências sobre quem somos. É muito sério. Uma equivocada construção mental, erguida a partir de sentimentos mal elaborados, pode demolir o indivíduo”.

Falei que Valentina precisava de ajuda. O Velho disse sim com a cabeça e acrescentou: “Estar arredia, de algum modo, é um pedido de socorro, embora ainda inconsciente. Tentei conversar, não obtive sucesso. Ela desconversou e se afastou. Enquanto não houver disponibilidade interna, nenhuma ajuda será possível. A vontade firme e sincera por parte da Valentina de sair do lugar escuro no qual se colocou é indispensável para que reencontre em si a sua linda luz, por ora perdida”. Argumentei que talvez não tivesse sido ela a se colocar na escuridão, mas empurrada pela força de uma situação brutal. O bom monge explicou: “Caímos no lado sombrio da vida por descuido, despreparo ou até mesmo por escolha. As sombras nem sempre prendem por brutalidade; mais corriqueiros são os seus truques de sedução. O vitimismo é o mais usual”. Fez uma pausa antes de ressalvar: “Não creio ser esse o caso da monja. Desconfio que haja outro sentimento, ainda inadmitido ou censurado, que neste instante a impede de se movimentar para sair de onde está. Enquanto o negar, permanecerá sob o domínio da própria incompreensão”.

Antes que eu perguntasse qual o sentimento a que se referia, o bom monge me passou um alicate e pediu que eu o ajudasse no serviço de poda às rosas. Entendi o recado. Trabalhamos sem dizer mais palavra por quase toda a tarde, até que fomos surpreendidos por uma voz conhecida: “Você disse que eu podia vir quando me sentisse pronta para fazer essa dificílima, porém linda, travessia para reencontrar o meu coração e restabelecer a paz perdida. Aqui estou”.

Era Valentina. Os seus olhos pareciam naufragados em tempestade de lágrimas e sofrimento. O Velho arqueou os lábios em sorriso acolhedor e a abraçou longamente como um pai dedicado. Deixou que as lágrimas dela se esgotassem. O bom monge perguntou se podiam conversar ali mesmo, sentados no banco de pedra do jardim, afastados do murmurinho do mosteiro. Ela disse que estava perfeito. Seria uma noite sem lua e sem nuvens; sem demora um manto de estrelas embelezariam aquele momento, poetizou. Fiz menção em os deixar a sós, mas Valentina pediu que eu ficasse. Tanto eu como o Velho tínhamos sido padrinhos do seu casamento. Conhecíamo-nos havia décadas. Éramos amigos. Queria que eu a ouvisse e gostaria também de me ouvir. Acomodamo-nos num mesmo banco, com o Velho sentado entre nós. Sem que fosse preciso pedir, a poetisa narrou como foi surpreendida quando o Alfredo, seu então marido, pediu o divórcio. Na verdade, confessou, tinha notado uma mudança no comportamento dele. A pretexto de tarefas no trabalho, cada vez mais passava menos tempo em casa. Aos poucos, arrefecera o carinho entre o casal e a atenção dada aos filhos. Quando questionado, o marido repetia que estava tudo bem. Passado alguns meses, ela passou a considerar normal o novo comportamento dele. Acostumou-se com que não deveria nem poderia se acostumar. O amor aprimora o relacionamento, jamais o faz desandar. Esqueceu-se do que sabia, admitiu. Ficou em silêncio por breves instantes, como que para encontrar coragem em prosseguir na narrativa. Depois de respirar fundo, contou que o impacto maior foi saber que eles estavam se separando porque o marido se relacionava, havia algum tempo, com a Sofia, uma das suas melhores amigas. Estavam apaixonados e iriam morar juntos. O golpe maior foi descobrir que, quase todo dinheiro retirado da poupança do casal, a pretexto de investir na empresa em que ele era um dos sócios, fora usado para comprar uma casa para Sofia, onde foram morar depois do divórcio. Não se preocupava com o dinheiro, pois, tinha uma sólida carreira profissional. Doía a mentira e a traição. Ou traições. A Sofia era madrinha de um dos filhos do casal, frequentava a casa de Valentina, sendo uma das amigas a quem confiava algumas confidências, entre as quais, a mudança de comportamento do marido.

Sentia raiva, muita raiva. Sabia que precisava perdoar. Conhecia o poder libertador do perdão. Tinha, inclusive, aconselhado muitas pessoas a perdoar para que a mágoa, uma ferida da alma, não fosse expurgada através de uma doença no corpo físico. Precisava perdoar para que o passado não fosse mais uma prisão, o transformando em escola de amor e dignidade para consigo mesmo. Somente assim conseguiria se sentir livre e em paz novamente. A raiva, o ódio, a mágoa ou o ressentimento, variantes de uma mesma incompreensão, aprisionam mais profundamente do que a cela de uma penitenciária de segurança máxima, que detém somente o corpo; por estreitar a mente e envenenar o coração, a raiva e a mágoa apequenam o espírito, a essência de quem somos. Para agravar a situação, torna amargo o lugar onde verdadeiramente moramos. Não importa o país ou a rua que residimos, em análise mais profunda, cada um mora dentro de si mesmo. Tornamo-nos menos do que somos. Um desperdício. Embora soubesse tudo sobre a teoria do perdão, naquele momento habitava em um lugar sombrio e triste. Não conseguia aplicar as equações do saber aos problemas do coração. Por quê? Precisava entender. Confessou duvidar se o perdão realmente existia.

O Velho a ouviu sem interrupções e, ao final, ponderou: “O perdão é tudo isso e muito mais. Trata-se da expressão máxima do amor, por toda compreensão e superação que exige, e da liberdade, pelo resgate que oferece. Restaura a paz e a dignidade no trato consigo mesmo e abre os caminhos da felicidade pelo passo evolutivo que proporciona”. Fez uma pausa para iniciar o raciocínio e disse: “Quando as equações do saber parecem não servir para desmanchar os sofrimentos, que tantos danos causam, significa que a equação está errada ou incompleta em seus elementos. Faz-se necessário entender as fases do processo. O perdão não é um mero querer. É uma construção. Um trabalho de engenharia mental e emocional. Como tal, as etapas seguem uma lógica que, se forem ignoradas, o perdão não será mais do que um prédio de papel, no qual ninguém consegue se abrigar”. Fez uma pausa antes de concluir: “Sim, o perdão nos protege de nós mesmos”.

Valentina pediu para que explicasse melhor. O Velho foi didático: “A raiva que sentimos não vem da pessoa que nos fez mal. Ela é nossa. Sempre esteve dentro da gente, latente, aguardando um momento de descontrole para emergir. Este é o ponto primordial. Não se trata de uma batalha contra ninguém, mas da construção interna de uma ponte que nos permitirá atravessar o abismo do sofrimento”. Olhou para a monja e disse com doçura: “Sim, quem tem raiva sofre. E muito. Quanto mais rápido construir a ponte, menor as consequências do sofrimento”. Ela fechou os olhos em anuência. O bom monge a alertou: “Toda construção tem método e fundamentos. Sem entender o processo, continuará perdida em si mesma. Não conseguirá erguer a ponte para atravessar o precipício sombrio que a impede de seguir adiante”.

A monja perguntou por que não conseguia perdoar. “Porque sente raiva”, respondeu o bom monge. Valentina argumentou que queria perdoar para justamente não mais sentir raiva. Um sentimento que a envenenava. Queria se curar. O Velho explicou: “Os livros sagrados, assim como os antigos sábios, nos ensinaram o valor incomensurável do perdão. Estão certíssimos. Nem uma vírgula deve ser modificada nos valiosos ensinamentos legados à humanidade. Contudo, enquanto a raiva predominar em seu coração, não haverá espaço para o perdão”. Ela disse que não estava entendendo. Quis saber se o tempo a curaria, como muitos dizem. Ele esclareceu: “O tempo nada cura. O tempo é apenas uma estrada que devemos aproveitar e percorrer. Sem os corretos movimentos, jamais sairemos do lugar. O tempo de nada serve para aqueles que não entendem que toda mudança acontece dentro da gente para somente depois se manifestar na vida. Para estes, de nada servem as horas dos séculos. Permanecerão atolados nas próprias incompreensões”.

Fez uma pausa para retornar ao cerne da questão e nos desconcertou: “Sinta raiva. Permita pulsar toda a raiva que arde em suas entranhas. Você tem esse direito pelo que fizeram a você. Não tente expulsar a raiva, mas a abrace, acolha e a deixe transbordar até que se esgote. Enquanto se punir por senti-la ou negar a sua existência, ela a dominará”.  Em seguida fez uma importante ressalva: “Contudo, jamais se permita praticar qualquer mal por causa da raiva. São coisas diferentes. Se fizer, se envolverá em veneno e areia movediça. Será bem mais difícil retornar ao eixo de luz que, por ora, se deslocou. Haverá muito arrependimento. Porém, não se censure por sentir raiva na ebulição dos fatos. É normal. Não se recrimine pelos seus sentimentos; apenas tenha o zelo de saber o que fazer com eles. Você tem de estar no controle da raiva, nunca o contrário. Dentro de cada pessoa pulsam os melhores e piores sentimentos. Entender como lidar com eles define quem somos e o destino próximo. Há quem se deixe dominar pelo sentimento denso e termine por despencar pelo viés da loucura, da vingança, em suas múltiplas modalidades, e até do crime. Os noticiários relatam essas tristes histórias todos os dias. A raiva não pode se tornar combustível para nenhum mal, seja aos outros, seja a você. Jamais se torne uma pessoa amarga e descrente do amor e da vida por causa do comportamento dos outros. Use como exemplo aqueles que, sabiamente, usam a raiva como impulso para se descobrirem mais e melhor ou como ferramenta para realizações desde sempre adiadas. Como fazer uma viagem de veleiro ao redor do mundo, escalar uma montanha, desenvolver um dom nunca ousado, mudar de profissão para ir ao encontro de um sonho jamais confessado, escrever um livro, entre mil outras possibilidades”. Deu um sorriso e sugeriu: “Escolha a sua. Aproveite a oportunidade para aprender a direcionar os seus sentimentos como instrumentos ao autodesenvolvimento. Todos, absolutamente todos, os sentimentos servem aos melhores propósitos se conduzidos com amor e sabedoria, serenidade e ousadia”. Em seguida, prosseguiu: “A raiva é uma energia pulsante que deve ser usada na realização de algo que movimente você à frente. Ao se permitir – e não há nada que a impeça –, quando se der conta, a raiva se desmanchou para dar vez a alegria originada por uma nova conquista. Então, há que se agradecer por ter vivido a difícil, porém linda, experiência transformadora. Sem aquela não haveria esta”. Depois, concluiu: “Somente então estaremos prontos para perdoar. O terreno foi limpo; não se ergue uma obra em cima de entulhos. Poderemos iniciar a construção da ponte”.

Valentina argumentou que se raiva havia se esgotado, o perdão acontecera. O Velho disse não com a cabeça: “Ledo engano. Restam a mágoa e o ressentimento que, em síntese, são os resíduos da raiva e do ódio. Todas as vezes que se recordar dos fatos será envolvida por um sentimento ruim. Tentará não se lembrar, mas ninguém esquece. Apenas varremos a sujeira para o porão da casa onde moramos, o inconsciente. A dor que fingimos não existir, está lá. E interfere bastante. Isto explica algumas das nossas reações, que muitas vezes nem sequer damos conta, mas nos deixa fora de controle. Em um piscar de olhos, já falamos ou fizemos. Deixamos nos levar por um impulso mais rápido do que a nossa capacidade de raciocinar e ponderar. O inconsciente é isto e muito mais. Somos mais o nosso inconsciente do que somos capazes de compreender. As experiências mal elaboradas, motivos dos nossos medos e sofrimentos, estão escondidas a espera da faxina. O perdão faz a limpeza consciencial, jogando fora tudo aquilo que dói e irá nos prejudicar enquanto estiver guardado dentro da gente. Jogar fora se traduz em aprender, aceitar e usar os fatos como elementos de transformação e, então, conseguir folhear as páginas da memória sem medo ou dor. É a cicatrização definitiva das feridas emocionais. Assim arrancamos o mal que nos devora. É a cura. Há que se agradecer por todas as experiências proporcionadas pela escola-oficina da vida. Sem os desencontros e desastres não nos seria possível compreender a perfeição da vida”.

A monja disse ter entendido a equação do perdão. A etapa inicial seria transmutar a raiva através da prática de atividades criativas, inusitadas e que gerem o bem e o bem-estar; a fase do perdão viria em seguida. Queria saber como seria na prática o processo de construção do perdão após o esgotamento da raiva. O Velho explicou: “Quando você, ao invés de reprimir ou negar, admite a existência e os justos motivos geradores da raiva, inicia um diálogo interno de compreensão e solução para os seus conflitos. Ao aceitar e entender a raiva, parte inevitável de quem somos no atual estágio evolutivo, adquirimos poder para assumir o controle sobre as nossas escolhas, impedindo que raiva nos domine e empurre para o abismo das emoções corrosivas e atitudes destrutivas. Ao canalizar o sentimento denso para a prática de boas realizações, o esgotamos por transformação. Do mal fazemos o bem. A luz é a consequência natural. O coração serena, a mente expande”. Tornou a fazer uma pausa para que o raciocínio pudesse acompanhar a lógica: “Possuir um conhecimento não significa tê-lo em si. Levar para a oficina um saber adquirido na escola para a construção de uma obra é que o torna sabedoria e evolução. Sabemos que não podemos exigir de ninguém a perfeição que não temos a oferecer. Temos os nossos erros também. Sem exceção. Comparar os nossos equívocos com os dos outros, sob a alegação que os nossos não são tão graves é se valer de um argumento ineficaz; seria usar outras pessoas como réguas para dimensionarmos o nosso tamanho. Nada mais imaturo. Se ninguém é igual a ninguém, comparar erros é como procurar equivalências entre camelos e tigres. Deixamos de lado a tarefa de superar as próprias dificuldades e imperfeições para duelar e derrotar os outros. Não haverá avanço. Sempre encontraremos quem possua níveis de consciência maiores e menores que os nossos. A corrente elétrica entre os polos positivo e negativo dos dias e da vida, se bem aproveitada, nos move rumo à luz. Essa virtude se denomina compaixão, o amalgama capaz de unir todas as pedras sob um mesmo propósito: a construção da ponte do perdão”.

O Velho prosseguiu: “Movimento seguinte é a desconexão completa com aqueles que nos prejudicaram. Não me refiro evitar todo tipo de convivência; isto seria se negar a enfrentar as provas do perdão. Não existe liberdade na fuga; apenas medo. A liberdade surge na autonomia, aceitação e encantamento por quem somos”. Por instantes observou uma das rosas vermelhas próximas de onde estávamos, passou suavemente a mão por seus espinhos sem se deixar cortar, e disse: “Evitar o convívio, não raro, tornaria a vida ainda mais difícil, como no caso de funcionários de uma mesma empresa, pessoas de uma mesma família ou círculo social. Falo em não se imiscuir a procura de notícias para saber se houve alguma punição divina ou algo parecido com essas pessoas. Se estão felizes ou não”. Sorriu resignado e pontuou: “Sim, é um vício comum e vulgar. Trata-se de uma grande tolice acreditar que as Leis Cósmicas estariam a serviço de vinganças comezinhas e pessoais. Isto é a antítese do perdão por total incompreensão da sua função, alcance e poder. Tamanho sincronismo e ordenação celeste cuida da educação e evolução de todos, aplicando as lições conforme a exata necessidade de aprendizado de cada indivíduo. Nem mais nem menos. A cada um será entregue segundo as suas obras, nos foi ensinado por um antigo mestre. É a Lei da qual ninguém escapa. Não se trata de punição, mas de aprendizado visando a evolução. Não se desperdice pelo mal que os outros fizeram. Faça o seu melhor, perdoe. Confie em si, se movimente internamente para conseguir se mover mais e melhor através da vida e pelo mundo. No tempo oportuno, todas as situações encontram o devido encaixe. Inexoravelmente”. Valentina revelou que o fato do Alfredo e da Sofia não mostrarem nenhum arrependimento pelo que fizeram, tornava a raiva maior e o perdão ainda mais difícil. O Velho pontuou: “O perdão é um gesto de amor e libertação. Quem sofre e está aprisionada é você. Esperar pelo arrependimento de alguém é transferir ao outro o poder para você se curar, voltar a se amar e seguir em frente. Uma autorização que pode nem acontecer. O perdão é ato personalíssimo, portanto, intransferível. Um movimento que independe da validação ou atitude alheia. É você consigo mesma. Não há razão para negar a si o poder e o direcionamento sobre a sua própria vida”. A engenheira confessou que se incomodava com o fato de os filhos se relacionarem bem com pai, mesmo depois dos acontecimentos. O bom monge ponderou: “Ainda bem. Ou você preferiria que a separação do casal significasse para os meninos a perda do pai? Nada proíbe que eventuais equívocos no casamento o impeçam de ser um bom pai. Já não basta o sofrimento que tiveram com tudo que aconteceu? Não seria pior se fosse doloroso para os garotos o convívio com o Alfredo? Amá-los é se alegrar por saber que eles estão felizes. Não faça do divórcio uma guerra desnecessária na qual a pessoas precisem escolher um lado. Use-o para se reinventar e iniciar um novo ciclo. Os melhores capítulos da sua história começam agora”.

Não mais havia lágrima nos olhos da Valentina. Ainda que tênue, retornava uma luz conhecida, que se turvara por tanto sofrimento. A poetisa conseguia vislumbrar com nitidez todas as etapas que precisaria ultrapassar até que se reconstruísse por completa, quando, mesmo sendo a mesma mulher, se tornaria outra, aquela que renasceu em si. O autêntico significado da transmutação, a genuína magia da vida. A luz no seu olhar era oriunda da firme e sincera determinação de construir a ponte. Atravessá-la era um compromisso assumido consigo mesma naquele instante.

Já naquela noite, na cantina, observei as primeiras mudanças. Embora fosse nítido o esforço que realizava, isto não a desmerecia. Ao contrário, a intenção aplicada ao movimento a fortalecia. Valentina conversou com todos demonstrando desenvoltura e simpatia. Ainda que pequeno, algo começava a se modificar dentro dela. Não era mais a mulher arredia que parecia envergonhada por ter sido traída, como se isso a depreciasse ou a revelasse incapaz de manter um relacionamento saudável e de qualidade. Não havia feito nada de errado. Relacionara-se no casamento com amor e ética por todo tempo. A cada um de acordo com as suas obras. Não queria mais desperdiçar tempo e energia no julgamento de ninguém. Tinha muito mais o que fazer por si mesma.

No ano seguinte, Valentina pediu dispensa dos estudos no mosteiro. Soubemos que negociara um período sabático com a empresa que trabalhava. Com a anuência dos filhos, e sem nenhum traço de ressentimento, os deixou com o pai. Passou um tempo sem que tivéssemos notícias. Até que, sem avisar, apareceu no mosteiro. Trouxe o Ragnar, o seu namorado norueguês. Contou que trabalhou como cozinheira na Espanha e garçonete na Croácia. Na Grécia deu aulas de mergulho. Em Mikonos conheceu o Ragnar, um médico que enviuvara havia quase dois anos. Viveram a paixão daquele verão. Ao retornar, não por acaso, soube que a empresa de aviação, na qual trabalhava, abriria um escritório de representação em Oslo. Candidatou-se. A aprovação foi imediata. Os filhos a acompanharam, animados em viver a experiência de morar em um país de cultura tão diversa. Reencontrou Ragnar. Na convivência, da paixão se fez o amor.

Mais um ano se passou. A engenheira reapareceu. Os longos cabelos negros deram vez a um corte rente à nuca, ressaltando a luz intensa dos seus olhos, tornando mais significativas as expressões faciais. Estava ainda mais bonita. Estava feliz como nunca. Estava curada. Ela viera solicitar a entrevista de admissão do Ragnar na Ordem. Ele estava encantado com a possibilidade de participar dos estudos e dinâmicas de autoconhecimento disponibilizados no mosteiro. Valentina contara muitas das histórias que ali presenciara. Numas, fora a protagonista; noutras, uma atenta expectadora; em todas, um punhado de aprendizado. No mais, a poetisa publicara outro livro, no qual, através de dezenas de poemas e ilustrações, dissecava e aprofundava os meandros e as filigranas da construção e da travessia de uma ponte chamada perdão. Neste instante, fomos interrompidos pela entrada do Velho na cantina, que se aproximou com os seus passos lentos, porém, seguros. Ao saber das novidades, sorriu e perguntou sobre o título do livro. Valentina olhou para o bom monge, piscou um olho como se nenhum segredo fosse possível, retribuiu o sorriso e disse: “A vida é perfeita”.

O Velho quis saber o motivo de ter escolhido esse título. A poetisa explicou: “É impossível alcançar esta compreensão antes de entender as razões das perfeitas imperfeições da vida”. O bom monge sorriu satisfeito.

1 comment

Lucas Teixeira Oliveira junho 24, 2024 at 11:01 pm

Gratidão

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