MANUSCRITOS VII

A medicina do dragão

Sou tomado por intensa alegria todas as vezes que o carro percorre as estradas sinuosas das montanhas do Arizona rumo a Sedona. Quem retorna de lá nunca é o mesmo; sou eu, mas sou outro. Algo se modifica em mim. A transmutação é fundamental à evolução. Aquele quem sou me trouxe até aqui, porém, não conseguirá me levar adiante. Para seguir em frente preciso me transformar. Sempre. Cada incômodo revela uma incompreensão; incompreensões geram medos; medos estabelecem limites; limites impedem avanços; como consequência, me aprisiono na crença da incapacidade. Torno-me dependente de fatores externos, sejam coisas ou pessoas, para experimentar amostras escassas de felicidade, amor, dignidade, paz e liberdade. Passo a ter dentro de mim uma máquina de fabricar sofrimentos que trabalha noite e dia em ritmo cada vez mais frenético. Desconstruir cada parte desse processo gerador de dores existenciais é fundamental para me tornar dono de mim e me sentir pleno. Canção Estrelada, o xamã que tinha o dom de perpetuar a filosofia ancestral do seu povo por intermédio das palavras e das músicas, conseguia me mostrar os portais que me levavam a distintas realidades, sempre possíveis quando estamos dispostos a caminhar. A realidade se modifica a partir do momento que conseguimos elaborar de maneira diferente as experiências vividas. Como ele sempre falava, “somos criadores das criaturas que somos”. Vale salientar que o xamã apenas me fazia enxergar os portais; atravessar cada um deles era parte que me cabia na arte de me reconstruir. Assim é com todos.

Canção Estrelada estava na varanda, sentado na cadeira de balanço. Conversava com um homem na faixa dos quarenta anos de idade. Fui recebido com um sorriso sincero e um forte abraço. Após deixar a mala no quarto de hóspedes, me sentei ao lado deles. Brady, como se chamava, admitia estar desorientado. Tinha se graduado em uma faculdade de Direito e atuava nos tribunais da região. Tivera um início de carreira bastante promissor, porém, nos últimos anos a clientela desparecera. O movimentado escritório de outrora parecia abandonado. As dívidas se acumulavam. Colegas de faculdade que haviam se formado com notas mais baixas que as suas prosperavam continuamente. Estava convencido de que energias misteriosas impediam o seu progresso. Contou que tivera um rompimento tumultuado após o envolvimento afetivo com a Beth, uma moça que fazia uso de feitiçaria. Não por acaso, tudo degringolara com o término do relacionamento. Precisava da ajuda do xamã.

Canção Estrelada preencheu com tabaco o seu indefectível cachimbo com fornilho de pedra vermelha. Acendeu o fumo, baforou algumas vezes e se deixou encantar com o bailado da fumaça. Sem pressa. A aflição e a ansiedade de Brady não o contagiara. Aqueles movimentos tranquilos me fez lembrar de um antigo ensinamento do xamã: “Quando sentimos o sofrimento de alguém adquirimos a possibilidade de levar luz; ao sofrer o sofrimento alheio expandimos a escuridão”. Em seguida, ele fez algumas perguntas para entender como era o relacionamento profissional de Brady com os seus clientes. Indagou se eles retornavam em busca de novos serviços, se o indicavam aos amigos, qual o percentual de sucesso que obtivera nos últimos anos; que entendesse como sucesso a relação entre as promessas feitas aos clientes e os resultados alcançados. Pediu que o advogado fosse sincero consigo mesmo para que pudesse haver honestidade nas respostas. O xamã as ouviu sem tecer qualquer comentário. Ao final, pediu para que retornasse no sábado pela manhã, no belo cerimonial que realizava todas as semanas no quintal de casa. Sentado debaixo de um frondoso carvalho, contava antigas histórias do seu povo para dezenas de pessoas de todas as idades, acomodadas sobre a grama. Já tradicional em Sedona, era um singelo, porém, significativo ritual em razão das inúmeras oportunidades de transformações oferecidas.

Brady estranhou. Nada havia sido perguntado sobre o envolvimento da namorada com a prática da feitiçaria. Questionou o motivo. O xamã afirmou: “Ela não o prejudica. As suas dificuldades profissionais nada têm a ver com a moça”. O advogado discordou; as evidências eram muitas. Argumentou que o acaso não existe. Canção Estrelada disse sim com a cabeça e concordou: “Nada acontece por acaso. A vida reequilibra o que está desequilibrado. Sempre. Assim funciona a Lei Maior. Porém, quase nunca compreendemos o processo. Não raro, acreditamos estar voando enquanto caímos no abismo”.

Insatisfeito, Brady disse ter certeza de que a moça o prejudicava. O xamã foi firme: “Nada que ela faça tem relevância diante do mal que você pratica contra si mesmo. Esta é a magia que precisa ser revertida”. O advogado disse não ter entendido. Canção Estrelada pediu para que retornasse no dia do cerimonial.

Era uma linda manhã de sábado. Desde cedo, as pessoas estendiam mantas sobre o gramado. Pais e filhos, avós e netos, casais e amigos compartilhavam os lanches enquanto aguardavam alegremente o início do ritual. Muitos já tinham aproveitado os portais ali oferecidos; outros entendiam a oportunidade e se preparavam para o importante avanço intrínseco capaz de alterar a realidade que viviam. Como ensinava o xamã, “realidade são as fronteiras do mundo pela ótica do observador. O mundo se expande na mudança do olhar”. Muitos acreditam que a realidade está ligada às condições materiais do indivíduo. “Não”, ele explicava: “Diferentes pessoas, agraciadas com as mesmas capacidades financeiras e físicas vivem realidades completamente distintas. É o olhar que define a realidade. Nada mais. Trocar as lentes pelas quais observamos todas as coisas, inclusive a nós mesmos, é o movimento primordial à cura existencial. No entanto, tenha cuidado para não as substituir pelas lentes da ilusão. Não há cura fora da verdade. Para tanto, use as lentes da simplicidade para que haja clareza, sem a qual não conseguirá enxergar além das miragens proporcionadas pelos próprios enganos”.

O olhar a que o xamã se referia era a consciência, cujos pilares estruturais são a percepção e a sensibilidade que expandem o alcance e refinam o entendimento à medida que se aprimoram. Quando o olhar é simples todo o universo é luz, ensinou o grande Mestre no Sermão da Montanha.

Sentado debaixo da copa generosa da árvore, Canção Estrelada rufou uma suave melodia ancestral no tambor de duas faces para serenar conversas, emoções e outras agitações internas, criando uma atmosfera favorável para que as palavras encontrassem lugar na consciência das pessoas ali presentes. O ritual se iniciava. Não é preciso muito para acessar as esferas mais sutis de existência, permitindo o adequado tráfego de energias, ideias e sentimentos. Foi neste momento que o Brady chegou. Estava amuado, quase contrariado por estar ali. Ficou em pé junto à cerca da casa, de modo estratégico a bater em retirada caso o desconforto aumentasse. Ao encerrar a música, o xamã começou: “Essa história aconteceu há muito tempo, numa época em que as barreiras entre mundos eram menores. Um período fantástico, em todos os sentidos da palavra, quando os registros eram apenas orais, dando origem ao que hoje comumente denominamos lendas e mitos. São narrativas que pertencem a todos nós, pois estão nas estruturas formadoras da nossa personalidade e temperamento, maneira de criar e elaborar as ideias, além de interpretar sentimentos e acontecimentos. Por não perceber as suas presenças, elas nos influenciam, determinando comportamentos e escolhas sem nos darmos conta disto. Faz parte de quem somos, mas desconhecemos. Há um reino poderoso escondido dentro de cada um de nós”.

“Em um tempo distante, havia um mundo chamado Morserus. Era habitado por animais antropomórficos, ou seja, tinham aspectos humanos, porém, mantendo as características distintas de cada espécie. Assim, leões, gorilas, cães, ratos, entre outros, se relacionavam como indivíduos de culturas diversas, com princípios e valores próprios. Quanto maior as diferenças mais rica é a diversidade, produto do intercâmbio intenso de diferentes maneiras de pensar e sentir, de ser e de viver”.

“Em Morserus, havia o reino das serpentes. Elas não eram malvadas por gosto, apenas desejavam o melhor para si. Não há nada de errado nisto. O problema surge quando não entendemos que não há necessidade de prejudicar os outros nem fazer mal a ninguém para que floresça a beleza que existe em nós. A serpentes tinham a crença de que a felicidade apenas era possível se suas peles fossem cravejadas de diamantes e rubis. Quanto mais pedras preciosas tivessem no corpo, mais poderosa era aquela serpente perante as demais. As pedras preciosas surgiam à medida que devoravam outras serpentes. Os diamantes e rubis da serpente subjugada brotavam instantaneamente na pele da vencedora. Essa era a maneira como se destacavam e causavam a inveja e a cobiça das demais.  Ocorre que para crescer as serpentes precisavam trocar de pele. Tratava-se uma exigência da natureza. No entanto, a cada troca de pele a serpente perdia todas pedras conquistadas. Assim, ela se tornava uma serpente maior, mas com a pele lisa, empobrecida para os seus padrões culturais. Quando parecia atingir o auge, as circunstâncias do determinismo biológico a fazia recomeçar o processo”.

Naquele momento me lembrei da lenda de Sísifo, capítulo memorável da Mitologia Grega, no qual o mais esperto dos homens, descoberto após enganar os deuses, foi condenado a carregar uma enorme pedra até o alto de uma montanha. No entanto, quando estava quase chegando ao cume, a pedra escapava das suas mãos rolando montanha abaixo. Todos os dias Sísifo reiniciava uma mesma tarefa sem fim. Enganamos aos deuses todas as vezes que mentimos para nós mesmos ou insistimos em negar a verdade que já temos condições de compreender. Ao fugir de quem podemos nos tornar, não na aparência, mas na essência, somos obrigados a recomeçar. Porém, não compreendemos o motivo de estarmos presos em círculo vicioso de ações repetitivas sem alcançar o resultado esperado.

Canção Estrelada prosseguiu com a história: “Uma serpente repleta de diamantes e rubis, porém pequena, era poderosa para aquelas do seu tamanho, mas insignificante diante outra com igual riqueza, porém, com um corpo de maior. Portanto, dois eram os requisitos de poder no reino das serpentes: tamanho e quantidade de diamantes e rubis”.

“Certo dia, uma serpente muito hábil e astuta chamada Draco – que já tinha passado por vários ciclos de vitórias sobre outras serpentes, dava continuidade a sua saga de ser, não apenas a maior das serpentes, mas também a que possuía tantos rubis e diamantes encrustados em seu corpo que seria impossível ver qualquer nesga da sua cor original –, entra em luta com outra serpente como fizera muitas vezes ao longo da existência. Desta vez, ao contrário do que estava acostumado, foi surpreendido por um adversário mais ágil e sagaz. Embora não tenha sido devorado, saiu bastante ferido desse combate. Debilitado física e emocionalmente, foi se esconder nas montanhas. Longe de tudo e todos, encontrou uma caverna para se esconder. Ficou lá por longos dias; a sua vontade era de nunca mais sair da gruta escura e distante. Sentia-se seguro por não precisar mostrar as visíveis marcas da sua derrota. A vergonha era a sua ferida mais dolorosa”.

Fez uma breve pausa para um comentário: “Sentimos vergonha todas as vezes que não conseguimos lidar com a verdade de quem somos. A vergonha pode se tornar uma escola ou uma prisão. Se houver humildade e simplicidade para aceitar quem genuinamente somos, com todas atributos e dificuldades presentes, sem qualquer subterfúgio para esconder a verdade de nós mesmos, estaremos prontos para a indispensável transformação. Do contrário, nos manteremos encarcerados nas celas do trauma, do remorso ou da mentira”.

Em seguida, prosseguiu com a história: “A fome obrigou Draco a sair da caverna. Precisava encontrar algo para se alimentar. Contudo, ao fugir do território das serpentes, sem perceber, entrara no país da águias, poderosos pássaros que viviam nas montanhas altas. Debilitada pela fome e pelos ferimentos, quase nada pode fazer diante do ataque de Zenão, uma águia já próxima da velhice. No seu apogeu, Draco teria evitado a investida sem maiores dificuldades. Enfraquecido, aprisionado nas garras de Zenão, foi levado ao ninho do pássaro. Naquele momento foi tomado por uma estranha ideia que nunca ocorrera antes: todas as lutas, sacrifícios e conquistas que se dedicara em nada serviriam para melhorar o seu destino. Toda glória que um dia desfrutou entre as serpentes desaparecera na perspectiva de se tornar um mero jantar para uma velha águia. Nada mais. A sensação de inutilidade o envolveu em profunda tristeza. Pela primeira vez, chorou”.  

“Momentos antes de devorar a serpente, Zenão reparou que havia um rubi no corpo de Draco. A única pedra que sobrara após a luta derradeira. Perguntou do que se tratava. Embora espantado com a pergunta, a serpente explicou que os valores que auferiam poder entre aqueles da sua espécie eram a quantidade de pedras preciosas e o tamanho do corpo. Atributos que se intercambiavam: um corpo maior permitiria uma maior quantidade de rubis e diamantes; logo, maior seria o poder”.

“Zenão disse não entender, pois, para as águias, poder é a capacidade de realizar escolhas; quanto maior o poder, mais amplas e profundas se tornam as decisões. Para isto, rubis e diamantes não têm nenhuma serventia, ao menos para as escolhas essenciais e fundamentais. As possibilidades de se autodeterminar resta definida à medida que a percepção e sensibilidade do indivíduo se aperfeiçoam, expandindo os limites da verdade. Isto aumenta o alcance da visão, ampliando e aprofundando as possibilidades de escolhas. Assim se origina a autêntica liberdade. Esse era o verdadeiro poder; tudo mais eram enganos”.

“Por alçarem voos altos, as águias não apenas viam mais longe, mas enxergavam o mundo por uma ótica inusitada. As grandes montanhas que tanto atrapalhavam as viagens da maioria das espécies, para as águias tinham a altura de um risco de giz no chão. Os abismos, que amedrontavam quase todos os animais e os fazia desistir de prosseguir a caminhada, embelezavam a paisagem quando avistados em voos de grandes altitudes. Medos, conflitos e obstáculos comuns inexistiam para as águias”.

“Draco perguntou pela família e amigos de Zenão. Ele esclareceu que as águias eram solitárias. A serpente quis saber como ele podia compreender as próprias capacidades, e as aprimorar, sem a experiência dos relacionamentos. A águia confessou que era impossível. Elas viviam como um sofisticado laboratório sem acesso à matéria-prima para elaborar e produzir remédios. Draco disse não entender a utilidade de um olhar aguçado, capaz de enxergar tanta beleza e afastar os piores medos, se não havia com que quem compartilhar nem onde usar tamanho tesouro. Questionou a razão de a águia possuir uma ferramenta, que embora poderosa, não era usada para construir nenhuma obra. Zenão não conseguiu responder”.

“Sem a necessidade de qualquer outra palavra, ambos entenderam que as experiências tribais de Draco, se elaboradas através do olhar refinado pelas alturas dos voos de Zenão, os conduziria a um diferente estágio existencial; as escolhas de Draco se transformariam, desaparecendo a necessidade de devorar outras serpentes na busca inútil por um poder efêmero, de muito brilho e nenhuma luz. Ao modificar a rota e o rumo dos seus dias, não mais seguiria na jornada para ser a maior de todas as serpentes, tampouco desejaria se tornar melhor que as demais, pois isto seria a face oculta das mesmas sombras, apenas disfarçadas por argumentos sorrateiros típicos do orgulho e da vaidade. Substituir um engano por outro não conduz ninguém à verdade”.

“Para a serpente, dedicar sua vida a devorar a si mesmo proporcionaria uma transformação angular. Cada vez que conseguisse, as sombras do Draco derrotado brotariam em virtudes no Draco vencedor. Seria ele, mas seria outro. Uma conquista sobre si próprio. Poucos perceberiam a luz que reverberaria do seu corpo. Não importava, ele saberia. Contudo, para conseguir tal intento, dois requisitos eram fundamentais. Um deles seria se aventurar na sala de espelhos oferecidas pelos relacionamentos. Somente diante do outro consigo entender quem ainda não sou, então, compreendo aquele que posso ser. Por sua vez, de nada adianta estar diante de um espelho se tenho a visão embaçada pela névoa dos enganos ou com a clareza reduzida pela escuridão. Para tanto, se faz necessário o olhar cristalino das águias, apenas possível em razão de voarem em grandes altitudes, alcançando uma visão sem a qual a serpente jamais encontrará os inusitados e impensados ângulos para compreender de maneira diversa uma mesma paisagem”.

“Tais conquistas não tornaria Draco poderoso diante das demais serpentes; jamais seria declarado rei. Contudo, traria leveza e suavidade até então inimagináveis aos seus dias. Ganharia poder sobre si mesmo. Não há conquista maior. Uma glória quase invisível às multidões, porém, com efeitos encantadores para quem a experimenta”.

“O olhar refinado de Zenão adquiriria uma desconhecida, porém, fantástica utilidade se aplicada às experiências tribais da serpente. Finalmente, a matéria-prima advinda dos relacionamentos seria elaborada em um laboratório capaz de as transformar em remédio ou perfume. Nunca mais produziria venenos ou porções amargas. A vida conquistaria diferente sentido; outra seria a realidade tanto para Draco quanto para Zenão. Estariam diante de um poder incomensurável, caso um se completasse no outro”.

“Quietos e apaixonados, adormeceram abraçados pela verdade revelada. Foi uma noite longa como são as noites que antecedem as mais belas auroras. Despertaram do sono profundo com os primeiros raios de sol da manhã. A luz concede o poder da evolução por mostrar o que a escuridão não deixa ver. Ao acordarem, Draco e Zenão tinham sido fundidos e transmutados. Naquele caso específico, serpente e águia deixaram de existir isoladamente para, unidos sob um mesmo propósito, darem origem ao Dragão primordial. Nascia um novo e poderoso reino em Morserus”.

Canção Estrelada rufou no tambor de duas faces uma melodia ancestral para encerrar o cerimonial mágico. Magia significa transformação. Ao observar o sorriso de encantamento na face das pessoas, não tive dúvida que elas vislumbravam portais capazes de as conduzir a elevados estágios de consciência. Atravessá-los é a viagem de uma vida. O Mito do Dragão narra o poderoso alinhamento entre ego e alma, a individuação indispensável. A transmutação final.

Lembrei-me de Brady. Envolvido com a história, tinha me esquecido dele. Não o encontrei. Talvez tivesse achado chato aquele ritual, pensei. Depois que todos foram embora, Canção Estrelada se sentou na cadeira de balanço e acendeu o cachimbo de fornilho de pedra vermelha. Conversamos sobre o efeito do cerimonial sobre as pessoas; depois falamos sobre diversos assuntos. Anoitecia quando o advogado se aproximou. Acompanhado por uma bela mulher, tinha os olhos inchados de tanto chorar. Apresentou-nos a Beth, a namorada que supostamente lançara feitiços deletérios sobre ele. A moça tinha uma aura clara e um sorriso sincero. Ela estava no ritual daquela manhã; ao vê-la o advogado foi se sentar ao seu lado. Ao contrário do que eu imaginara, ele ficou até o final. Depois foram conversar. Daí, decidiram voltar para trocar algumas palavras com o xamã. Canção Estrelada fez um gesto para que ficassem à vontade. Sentaram-se no sofá da varanda. Brady desabou sobre a própria narrativa. A história contada no cerimonial desobstruiu a escuta para que finalmente entendesse, não apenas os motivos pelos quais a moça terminara o relacionamento, mas as razões da sua derrocada profissional. Eram os mesmos. Admitiu que atribuir as dificuldades que atravessava à poderes obscuros era negar os próprios erros e desperdiçar as possibilidades de transformação que esses mestres maravilhosos – os erros – oferecem. Confessou que ele era quem tinha destruído a sua carreira de advogado. Ninguém mais. Entender que cada pessoa é responsável pelas experiências que vive e, conseguinte, pelos seus efeitos, é passo primordial à libertação dos próprios sofrimentos. A ganância, o orgulho e a vaidade fizeram com que enganasse os clientes ao prometer resultados que sabia impossível de entregar. Manteve essa imagem deturpada de si mesmo por alguns anos até que as sentenças judiciais revelaram a mentira que contava para todos, inclusive para ele mesmo. Ninguém chega ao destino certo percorrendo o caminho errado. Perdeu muito mais do que dinheiro, ficou sem credibilidade. Já havia perdido outro patrimônio de maior valor, a dignidade. A carreira é o menor dos prejuízos diante do estrago de uma luz que se apaga. Enquanto ganhava a terra perdia o céu onde podia morar na terra; cada um habita dentro de si mesmo. Enfim, vendera a alma para enfeitar o ego. Não há pior negócio, admitiu. A história daquela manhã trouxera a clareza necessária para entender que, como as serpentes, ele se alimentou de outras pessoas para ostentar diamantes e rubis que, ao final, nenhuma utilidade tiveram para a sua felicidade. Brady enfeitiçara a si mesmo com as próprias sombras e decisões. Assim como Draco, ele precisava aperfeiçoar o olhar, apenas possível se encontrasse e se fundisse ao seu Zenão. Brady queria se reconstruir.

Canção Estrelada arqueou os lábios em sorriso e disse: “A história que contei pela manhã é muito pequena diante da história que você está prestes a escrever. Atenha-se à verdade alcançada; mova-se através das virtudes. Cada dia será uma página na qual terá de vencer a si mesmo. A superação traz consigo a magia das mais lindas histórias, cujo final narra o nascimento de mais um dragão”.

E finalizou: “O Zenão habita dentro do Draco. Em nenhum outro lugar a serpente encontrará a águia. Assim é comigo, contigo e com todos. Fundir o monge com o guerreiro faz nascer o sábio. Quando os combates encontram o melhor lugar o universo se ilumina”.

O casal agradeceu e foi embora. Não seria fácil para o Brady, assim como para a Beth, que decidira o apoiar nesse momento tão delicado e angular. Ao contrário do que se falava, tinha se revelado uma mulher incrível, uma autêntica feiticeira da luz. Apesar da enorme dificuldade que enfrentariam, havia alegria no casal. Questionei o motivo, principalmente em relação ao Brady, que, aos quarenta anos de idade, teria de reconstruir a si e a vida. Canção Estrelada explicou: “Todo renascimento tem o poder de fundir partes de quem somos que, enquanto isoladas por falta de compreensão, nos manterão incompletos, raiz de todos os erros e sofrimentos. Vislumbrar um portal é entender uma possibilidade real de conquista em si mesmo. Cada avanço, ainda que mínimo, significa um pedaço agregado ao todo. Então, a vida muda. Essa é fonte da felicidade. Não há outra”.

Toda viagem precisa de uma plataforma de embarque para começar; a de Brady tinha sido o quintal daquela casa em Sedona. Não seria fácil, mas seria lindo. Apesar de estar com as feridas abertas, ele levava consigo o elixir do dragão.

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* O mundo de Morserus foi resgatado por MM Schweitzer das profundezas do inconsciente coletivo. Cada uma das suas histórias são viagens sem volta para o leitor. Absolutamente encantador! Tomamos a liberdade de nos aventurar nesse universo fantástico e participar um pouquinho dessa maravilhosa e sagrada criação.

14 comments

SCHWEITZER dezembro 7, 2022 at 1:52 pm

Amei meu querido, uma das estorias mais lindas que já li em toda.minha vida.

Eternamente grato por ter vc em minha vida.

Brilhante.

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Terumi dezembro 8, 2022 at 1:09 am

Gratidão 🙏

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Fernando Machado dezembro 8, 2022 at 5:13 pm

Gratidão profunda e sem fim Amado irmão das estrelas, sem fim….

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CRISTINA BOVI MATSUOKA dezembro 15, 2022 at 3:24 am

Amo a medicina do dragão.
Eles se apresentam com energia ambígua, não se sabe se são “bons” ou “maus”. São cautelosos ao se aproximar, porém, com o guardião certo, se mostram lindas criaturas.
Guardam os 4 elementos e nos relembram que o verdadeiro guerreiro é aquele que vence os condicionamentos e escolhe o caminho das virtudes.
Me lembrou também a serpente emplumada mexicana.
Texto magnífico

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Adilson Pimentel dezembro 17, 2022 at 1:51 pm

Por falar em “Morcerus”… Li e ficou gostinho de quero mais!

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Tiago dezembro 17, 2022 at 9:17 pm

A paz seja convosco..

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Vânia Aparecida Da Silva dezembro 17, 2022 at 10:00 pm

Apaixonada!!❤️🥰❤️🦅🐍🐲👏👏👏🙏🏼🥰

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Glória dezembro 20, 2022 at 1:05 am

Gratidão preciso reler dezenas de xxxx….

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Michelle janeiro 24, 2023 at 12:14 pm

Gratidão

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Haian janeiro 29, 2023 at 10:01 am

Obrigado por dedicar seu tempo a iluminar cada vez mais nossas realidades.

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Alex fevereiro 18, 2023 at 4:16 am

Obrigado professor ♥

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Alex fevereiro 18, 2023 at 4:17 am

Obrigado professor ♥

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Mateus julho 15, 2023 at 3:07 pm

Inspiradoradora sua narrativa, fui tocado e motivado pela mesma, obrigado por compartilhar.

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Mateus julho 15, 2023 at 3:09 pm

Inspiradora

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