MANUSCRITOS VI

Sobre sintonia, asas e bagagens

Havia muito tempo, fui convidado pelo Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo do mosteiro, a acompanhá-lo em uma série palestras que ele ministraria. Seria uma viagem de dois meses por diversos países. Animadíssimo, não tive dúvida em aceitar e me programei para aproveitar a experiência ao máximo. Na época, como estava à frente de uma agência de publicidade, projetei todas as atividades que estavam previstas para aquele período e tratei para que tudo ficasse esquematizado sem a necessidade da minha intervenção. Apenas deveriam me acionar caso surgisse uma situação de extrema gravidade na qual não fossem capazes de solucionar. Na prática, eu me programara para um período sabático, uma espécie de balanço geral existencial que entendia necessário naquele momento. Como um espectador que assiste a um filme da própria vida, eu queria entender mais e melhor o protagonista da minha história. Desconhecia, no entanto, as surpresas que a narrativa preparara para mim.

Os primeiros dias foram maravilhosos, como costuma acontecer no início de quaisquer férias, quando alteramos a rotina e nos desligamos dos inúmeros compromissos e obrigações. Éramos muito bem recebidos por onde passávamos. Já tínhamos visitado, até então, três cidades. Em todas, eu comprara lembranças da viagem. Após a primeira semana, aos poucos, fui me deixando remoer por antigos conflitos, que me entristeciam ou irritavam. Sem perceber, eu não estava mais por inteiro na viagem. O corpo viajava, a alma permanecia aprisionada aos conflitos recentes e remotos. Foi quando o Velho passou no meu quarto para irmos para o café da manhã e me viu envolvido com a dificuldade de arrumar as malas, as quais não mais cabiam tantas coisas que eu tinha comprado. Ele comentou: “Não se aproveita uma viagem sem entender a bagagem”. Falei que não tinha entendido. Ele tentou me ajudar: “A bagagem faz o relatório da viagem e identifica o viajante”. Nada falei. Descemos para o desjejum no hotel.

Como o tema da palestra do Velho, Harmonia e Sintonia, era o mesmo naquele ciclo de conferências, não demorou para eu me entediar. Achei que tinha entendido tudo o que precisava. O tédio trouxe de volta as preocupações costumeiras e as recorrentes lembranças dolorosas. Por que algumas situações do passado nos atormentam tanto? Quando pensamentos assim dominam os nossos dias, a alegria escapa, ficamos chatos, somos uma péssima companhia, principalmente para nós mesmos. Embora acreditemos que a culpa seja do lugar, das circunstâncias ou das pessoas ao redor. O coração se torna sombrio e a mente fica embaçada. Mal-humorado, comecei a implicar com tudo e com todos. Sem me dar conta, comprar se tornara o único prazer de uma viagem que perdia o encanto a cada dia. Comentei com o Velho que como já assistira a sua palestra várias vezes, dali em diante eu aproveitaria melhor o tempo passeando pelas cidades que visitávamos. Ele disse que entendia a minha ausência das palestras. 

Comentei que precisava de outra mala. Com a sua apurada sensibilidade e refinada percepção, ele se mostrou compreensivo: “Entendo perfeitamente o seu afastamento das palestras. Lembre que somente um viajante ingênuo viaja para esquecer de si mesmo, dos seus problemas e dificuldades. Estamos na bagagem de todas as nossas viagens”.

O monge avançou na conversa e me alertou: “Não importa onde vá. Sempre seja e esteja por inteiro. Do contrário, será uma viagem perdida”. Falei que não tinha entendido aquela colocação. Ele tentou me ajudar por outro viés: “Qual a sua opinião sobre as minhas palestras?”. Falei que achava bem interessante, mas como era a mesma em todos os lugares, confessei que estava cansado delas. Ele comentou: “Sei que você compreendeu o conteúdo das palestras, mas tenho dúvidas se as palavras chegaram ao seu coração”. Fez uma pausa e acrescentou: “A harmonia se caracteriza pela arte de viver desmanchando conflitos ou, em estágio mais avançado, nem ao menos permitir que surjam. Muitas vezes, não consigo que as pessoas deixem de ficar contrariadas ou ressentidas comigo. Não raro, são questões pessoais delas com elas mesmas; nada ou pouco posso fazer. Noutras ocasiões, os conflitos são efeitos dos meus equívocos. Se errei, devo pedir desculpas e, se possível, reparar o dano causado. Em ambos os casos, há que se ter humildade para aceitar as minhas próprias dificuldades e não exigir de ninguém a perfeição que também não possuo; simplicidade para afastar os subterfúgios que me distanciam da verdade de quem sou e compaixão para entender e, principalmente sentir, a dificuldade do outro em se relacionar com a realidade da maneira como a construiu. Ninguém vai além de onde já é capaz de chegar. Entendimento e sentimento, percepção e sensibilidade. Um sábio sem amor é como um templo que possui uma belíssima fachada, mas o interior está em ruínas”.

Deixou os olhos vagarem através da vidraça que nos separava da rua e divagou: “É impossível a harmonia, seja consigo, seja com o mundo, sem o exercício do perdão. Todos conhecem o valor do perdão para encerrar sofrimentos e impulsionar indispensáveis libertações. O que poucos sabem é que o perdão é um mestre, por excelência, na arte de amar. Muitos interpretam o perdão como um gesto de humilhação por se acreditarem diminuídos na confissão de uma fraqueza ou dificuldade. O orgulho os impede de perceber a grandeza do gesto e trava o passo primordial para entender a transformação necessária à evolução. Contudo, não basta se desculpar. Lembre que o pedido de desculpas deve vir acompanhado do compromisso sincero, perante a si mesmo, de fazer diferente e melhor dali em diante. Além de entender, é preciso sentir a dor causada para que o erro não se repita. A palavra deve vir impulsionada pelo verdadeiro sentimento que a representa. O vazio entre o significado da palavra e o sentimento que a dignifica pode agravar ainda mais o sofrimento alheio pela insensibilidade demonstrada. Quando razão e sentimento se alinham em um mesmo propósito, a reconstrução do ser se completa na coerência do viver. Resgato o melhor da minha essência. Liberto-me do erro para seguir em frente. Reconquisto a dignidade e a paz. Reacendo a minha luz e a uso como farol dos meus próximos passos. Agrego um pouco mais da verdade em mim”. 

“Aqueles que não entendem a grandeza de um pedido de desculpas ainda não estão prontos para aprender com os erros e adiam o indispensável encontro com os seus mestres. Preferem a fuga através da construção de um raciocínio tortuoso, como método de justificar a própria incapacidade. Assim, sem se darem conta, a perpetuam. Não entendem o motivo de as suas vidas se tornarem uma fábrica de conflitos. Continuarão a ver dificuldades em tudo e serão um problema para todos. São teimosos prisioneiros por se negarem a harmonizar os seus conflitos. Desconhecem a importância da sintonia”.

“Diálogos são as pontes que nos permitem chegar aos outros. Inexiste comunicação sem escuta; no mesmo diapasão, para que nos ouçam, se faz necessário uma voz serena e ideias claras para que entendam nossas razões e sentimentos. Não há harmonia sem sintonia”.

“A sintonia é a capacidade de encontrar a frequência possível para escutar cada pessoa e conseguir que a nossa voz seja ouvida por todos. Isto será impossível enquanto não descobrirmos a sintonia que nos permite ouvir as nossas próprias vozes. Enquanto eu não aprender a conversar comigo não conseguirei dialogar com mais ninguém. Tudo que há no mundo possui alguma relação com o conteúdo que existe dentro de mim. Seja para entender aquilo que não quero mais, seja para compreender como posso ir além de onde estou. A falta de sintonia impede a harmonia. A confusão interna impera. Na ausência de sintonia é impossível se tornar pleno pela desarmonia que nos causamos”. Pedi para ele explicar melhor. O Velho esclareceu de modo sucinto: “Cada indivíduo precisa aprender a encontrar a própria sintonia para que consiga dialogar consigo. Senão, haverá apenas ruído e nenhuma voz. Lembre, somos muitos em um. Quem não sabe conversar consigo permanece incapacitado de se comunicar com os outros. Esta é a razão de grandes e constantes conflitos. Preciso encontrar a minha paz para me harmonizar com o mundo”. 

Falei que nada daquilo era desconhecido para mim. Ponderei que todos têm problemas e, por vezes, ficamos chateados. Nada de anormal. O Velho balançou a cabeça e como quem propõe um enigma: “Ninguém encontra a própria sintonia sem decifrar o mistério da bagagem”, e não disse mais palavra. Fiquei sem compreender a correlação.

No dia seguinte, seguimos para outra cidade. As minhas malas, repletas de compras, não surgiram na esteira do aeroporto. O bom monge estava livre desse desconforto, pois viajava somente com uma pequena mala de bordo. Restou-me a mochila e a expectativa de que as malas fossem entregues sem demora.

Fiquei chateado com o sumiço da bagagem. Eu havia comprado muitas coisas bacanas, algumas para uso pessoal, outras para presentear os amigos. De repente, tudo desaparecera como em um show de ilusionismo. Desanimado em prosseguir no ritmo das compras enquanto as malas não chegassem, decidi aproveitar os dias de uma maneira diferente. Vaguei a esmo pelas ruas. A sensação de perda me fez despertar, embora ainda não completamente consciente, para quais bens eram meus e aqueles que eu somente tinha a posse. Qual a importância de ter aquilo que posso perder sem que eu tenha qualquer controle? Era a pergunta que eu me fazia. Como quem saí para passear logo após um breve estio, me deixei surpreender pela luz do sol. Observei os detalhes e entalhes dos prédios, os rostos das pessoas, a beleza das cores, a magia dos aromas, os paladares inusitados e o encanto das palavras que me chegavam a partir do momento que me tornei disponível para ouvir as pessoas. Sem me dar conta, ao me permitir ficar por inteiro comigo mesmo e vivenciar a disponibilidade das coisas que estão no mundo, sem nenhuma ansiedade de possui-las, eu aprimorava a escuta da minha própria voz. Comecei a perceber a enorme importância de estar em sintonia com todas as minhas vozes para a construção de quem posso me tornar. 

Aprender a ouvir nos faz aperfeiçoar a voz. Quando melhoro o diálogo interno, aprimoro a comunicação com as pessoas, as conexões com as estrelas, dignifico as relações, pacifico conflitos, me liberto de antigas prisões e sigo rumo a voos inimagináveis. Encontro a felicidade por não ser mais quem eu era e por me encantar pela possibilidade de me transformar em tudo o que posso ser. Penso melhor e amo mais. Uma conquista que se consolida na consciência de um verdadeiro poder intrínseco e se realiza através de uma nova realidade. O mundo é igual e as pessoas são as mesmas. No entanto, tudo se modifica.

Naquela tarde, sentado sozinho em uma cafeteria, apreciando o movimento do mundo, me ocorreu uma questão. Seguir rumo a voos inimagináveis seria apenas poesia ou era uma realidade possível? Caso fosse, para voar precisaria de asas. Onde elas estariam? Eu não sabia a resposta.

Ao final do terceiro dia, vivendo essa nova rotina, com a sintonia um pouco mais apurada e um melhor diálogo interno, desabou uma torrente tempestade. Decidi voltar a pé para o hotel. Foi divertido andar na chuva, algo que eu não fazia havia muitos anos. Quando cheguei, recebi a notícia de que as malas estavam à minha disposição no aeroporto. Surpreendi-me com a quase indiferença que o fato me causou. Apesar de não compreender a totalidade dos fundamentos naquele instante, algo se transformava. Na manhã seguinte, fui buscá-las. Voltei ao hotel de metrô. No vagão, sentado ao meu lado, uma senhorinha tinha um olhar triste. Ao puxar conversar, soube que ela possuía uma pequena banca onde vendia diversos artigos em um mercado popular na cidade. A sua tristeza era porque a forte chuva da noite anterior tinha carregado todo o seu reduzido estoque que ficava guardado em um depósito próximo ao mercado. Como não tinha dinheiro para repor as perdas, não sabia como nem quando voltaria a trabalhar. 

Eu não hesitei nem por uma fração de segundo. Coração e mente, em sintonia, me permitiram a plena harmonia daquele voo. Expliquei para a senhorinha que as malas que eu carregava estavam repletas de objetos adquiridos para diversos fins. Eram coisas de boa qualidade. No entanto, nada que houvesse na mala me traria maior alegria do que vê-la recomeçar o seu negócio. De início ela recusou, pois temia que no mercado desconfiassem da origem lícita daquelas mercadorias. Propus-me a acompanhá-la e prestar todas as explicações que porventura fossem necessárias. Ajudei a montar e arrumar a pequena barraca. Fiquei ao seu lado até que fosse realizada a primeira venda. Era o marco inicial de um novo ciclo. Para ela e para mim. Quando vi a luz de um sorriso no seu rosto, girei nos calcanhares e fui embora sem dizer palavra nem olhar para trás. Tenho certeza que em suas preces tenho o mais puro de todos os agradecimentos. Aprendi que isso será sempre a melhor recordação de qualquer viagem.

Foi quando compreendi o significado da bagagem.

Flanei pelas ruas da cidade como um pássaro que aprende a voar fora da gaiola, encantado por descobrir que as grades não são as últimas fronteiras da realidade. Ao final da tarde, me dirigi para o local do simpósio. O Velho era o último a palestrar e estava quase encerrando quando cheguei. O bom monge esclarecia para o público, mas tive a clara sensação que era continuação da nossa conversa: “Aprimorar a sintonia é indispensável à harmonia. Do mesmo modo, a bagagem determinará os rumos da viagem”. Fez uma pausa para finalizar: “Para mudar a viagem é preciso modificar a bagagem”. Apesar de se tratar do mesmo tema, o Velho não fazia duas palestras iguais.

Naquele instante tive a resposta para a pergunta que me intrigava. Voar rumo ao inimaginável não é somente poesia, porém, uma sincera realidade. As asas? Ora, estão na minha bagagem.

Desde então, faço como o Velho. Viajo com uma pequena mala de bordo contendo apenas o necessário. As coisas importantes, valiosas e indispensáveis, um pouco a cada dia, coloco nos bolsos da mente e nas gavetas do coração. Eu sou a minha bagagem.

9 comments

Gleiza Jordânia setembro 30, 2020 at 9:47 pm

“Para mudar a viagem é preciso modificar a bagagem”… Belo texto! Gratidão profunda 😊🌟🌟🌟

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Fernando Cesar Machado outubro 1, 2020 at 3:35 am

Gratidão profunda e sem fim Yoskhaz, sem fim…

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Leticia Fonseca outubro 1, 2020 at 9:43 pm

“Lembre que somente um viajante ingênuo viaja para esquecer de si mesmo, dos seus problemas e dificuldades. Estamos na bagagem de todas as nossas viagens”. Sintonia total Gratidão Yoskhaz

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Terumi outubro 2, 2020 at 4:43 pm

Gratidão!

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Michelle outubro 5, 2020 at 11:02 am

Obrigada!

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Viviane Barbosa outubro 7, 2020 at 9:11 am

Gente esse texto é lindo e maravilhoso! Eu sou profundamente grata por essa oportunidade de aprendizagem.
Meu coração está aquecido.

Gratidão infinita.

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SCHWEITZER outubro 7, 2020 at 11:12 am

Nos nao escolhemos nossos acontecimentos, mas sim a bagagem com a qual vamos.enfrentar eles. Foi q bela.lição q aprendi com este belo conto.

Amei.

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Greyce outubro 10, 2020 at 12:40 pm

Não poderia ter lido algo melhor e gratificante. Estou no processo de entender as “bagagens” que ando carregando, os verdadeiros valores da vida, então, me ajudou muito. Obrigada pelos textos maravilhosos!

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ADELIA MARIA MILANI dezembro 14, 2020 at 3:55 pm

Gratidão!!!

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