MANUSCRITOS IV

O Quarto Portal – Os Oito Portais do Caminho.

Os meus estudos sobre os Oito Portais do Caminho prosseguiam. O Velho, como carinhosamente chamávamos o monge mais antigo da Ordem, me revelara que no Sermão da Montanha, mais precisamente no trecho das bem-aventuranças, restava codificado os portais da jornada espiritual de iluminação. Como ele também me ensinara, para ultrapassar cada portal é necessário o andarilho trazer em si um determinado grupo de virtudes, as quais aumentam em grau de dificuldade à medida que avança pela estrada da luz. O exercício das virtudes torna uma pessoa melhor. Quanto mais inseridas às práticas cotidianas, maior a sensação de plenitude. Devidamente compreendidos os três portais iniciais, eu partia em busca do devido entendimento sobre o Quarto Portal. “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!”, ensinou o Mestre, segundo as letras de Mateus. Era, sem dúvida, ao contrário dos outros, um portal de fácil compreensão: exigia a virtude da justiça. Afirmei ao monge, enquanto ele podava as rosas do jardim interno do mosteiro, que eu me considerava um homem justo.

O Velho me olhou como quem está diante de um menino intrépido, porém ingênuo. Sorriu com compaixão e voltou a cuidar das flores. Inconformado com a reação dele, questionei se ele não me considerava pronto para o Quarto Portal. O monge tornou a me olhar. Desta vez havia paciência em seus olhos. Colocou o alicate no bolso da túnica marrom e, como quem sabe que aquela conversa seria demorada, se sentou no banco de pedra que havia ao lado. Em seguida respondeu com a sua voz serena: “Tomara que sim.” Mostrei-me indignado pela resposta inconclusiva. Ele explicou: “Não sou o guardião do portal. Não cabe a mim dizer se você está pronto para prosseguir. A minha opinião não fará a menor diferença. Aliás, não esqueça que para avançar o Quarto Portal significa que você ultrapassou os três portais anteriores, trazendo em si a prática das virtudes relativas a cada um deles, sem exceção. As virtudes antecedentes são alicerces indispensáveis para as virtudes que virão.” Fez uma pausa e disse: “Aconselho a perguntar a si mesmo se você já preenche todas as condições. Lembre que a jornada é interna e os guardiões do Caminho são inexoráveis.” Sem pestanejar, afirmei que eu não tinha nenhuma dúvida. Sim, eu era um homem justo. Eu nunca tinha me apoderado de nada que não me pertencesse. Tampouco tinha qualquer dificuldade em discernir o certo do errado ou o bem do mal. Confesso que o meu raciocínio me pareceu de uma obviedade incontestável e, por esta razão, embora em silêncio, por dentro eu saltava de contentamento. Sim, só agora eu me dava conta, em verdade, o Quarto Portal já tinha ficado para trás. Por lógica, os três limiares anteriores também já não eram obstáculos para a minha jornada evolutiva. Não me contive e confessei a minha conclusão ao Velho. Ele apenas me olhou e nada disse.

O acaso não existe; infinitas são as veredas na estrada da luz, que se cruzam inesperadamente, ora para proteger o andarilho, ora para que a verdade se revele. Na maioria das vezes por ambos os motivos, pois a verdade protege a todos, até mesmo àqueles que fogem dela. Naquele instante se aproximou outro monge, como denominamos os membros da Ordem. Vasquez, como ele se chamava, era um galego conhecido pela maneira franca de se expressar, sem se preocupar em escolher as palavras para dizer o que pensava. Disse que precisava conversar comigo. Respondi que podíamos falar ali mesmo. Vasquez reclamou que eu o havia excluído de um dos cursos daquele período. Aleguei que ele tinha chegado ao mosteiro dois dias depois de iniciado as aulas. As regras da Ordem eram nítidas e como coordenador daquele curso não me restara outra opção. O galego argumentou que havia comunicado que se atrasaria por motivos pessoais. Lembrou que no ano anterior, quando ele foi o responsável por outro curso, tinha abonado as minhas faltas, evitando a minha exclusão das aulas. Ponderei que naquela época o meu atraso se dera em razão do cancelamento do voo pela companhia aérea, um motivo alheio à minha vontade e além do meu poder de solução. No entanto, aleguei, ele somente avisou que chegaria depois das aulas iniciadas, sem ao menos justificar a ausência. Vasquez disse que todos têm os seus problemas e que não os detalhou pelo fato de não gostar nem ter a obrigação de expor a intimidade da sua vida pessoal a ninguém. Entendia que o simples fato de dizer que estava impossibilitado de chegar na data marcada teria que ter a mesma força dos motivos que eu aleguei. Que cada um sabe dizer a dimensão e a dificuldade dos seus próprios problemas. Acreditar que os obstáculos dos outros são mais fáceis de solucionar do que os nossos é um equívoco comum. Ao final concluiu dizendo que eu tinha que aprender a ser justo. Contestei dizendo que eu era um homem justo. Vasques me olhou firme e disse que ser justo era agir como ensinado no Sermão da Montanha: “tratar os outros como gostaria de ser tratado.” Girou nos calcanhares e se foi.

Indignado e atônito, perguntei ao Velho se ele achava que eu tinha sido injusto com o Vasquez. O bom monge tornou dar de ombros e murmurou: “Não faço a mínima ideia.” Lembrei que as nossas atitudes, minha e do Vasquez, tinham motivações diversas, logo, não poderiam ter o mesmo tratamento. Razões diferentes conduzem as decisões diferentes, insisti.

O Velho argumentou: “Razões nem sempre são questões puramente objetivas. Razões são ideias que costumam passar pelo coração enquanto são construídas. Emoções criam ímpetos ou freios em nossas escolhas. Fica difícil medir e pesar a importância de cada razão pela carga de subjetividade que costuma carregar. A minha vida não é mais nem menos importante do que a de ninguém. Cada um encontra as dificuldades concernentes ao aprendizado daquele momento da existência. Problemas são apenas problemas ou lições ocultas. Trata-se de encontrar ou perder o mestre escondido em cada um deles.”

“Pedimos um profundo entendimento quanto a delicadeza de nossos problemas; clamamos para que levem em consideração as nossas intenções; rogamos para que se atentem às nossas paixões antes de nos julgarem. As nossas dificuldades quase sempre são de soluções complicadas pelo valor das emoções que transportam. No entanto, julgamos o mundo pelos fatos. Nus e crus. Pedimos um pouco de mel quando somos réus; somos rigorosos enquanto juízes.”

Discordei. Falei que a justiça era a virtude de entregar a cada um o que lhe é de direito. As regras do mosteiro não davam margem a nenhuma dúvida. O Velho sacudiu a cabeça em negação e explicou: “A justiça está distante das leis. Em verdade, poucas vezes andam de mãos dadas. Não nego a importância das leis para a manutenção da ordem social. Já a justiça, por se tratar de uma virtude, fala da paz pessoal. São coisas distintas. As leis, ao serem elaboradas, levam em consideração muitos fatores extrínsecos à consciência. Questões ancestrais, sociais, territoriais, culturais, financeiras, passionais, egoístas, dominadoras, entre outras estão contidas no conteúdo das leis. Elas mudam na equação tempo-espaço. Já a justiça é consciencial e muda na medida da evolução do indivíduo e, também por isto, traz a exata dose de amor que ele possui naquele instante da existência. Diferente de uma mera sentença prolatada nos moldes de uma legislação qualquer.”

Questionei se o Quarto Portal me incentivava a desobedecer as leis. O Velho tornou a explicar: “O Quarto Portal fala da justiça. Portanto, fala primordialmente de amor e dignidade.”

Pedi para ele ser mais claro. O monge foi didático: “As virtudes, antes de serem ferramentas para melhorar o seu relacionamento com o mundo, são instrumentos para aperfeiçoar a relação do indivíduo consigo mesmo, pois falam de evolução pessoal. Não há como fazer bem ao mundo sem estar bem consigo mesmo; não consigo amar ninguém se não tenho amor por mim e em mim; sou justo contigo porque quero ser digno comigo. Tão e somente.”

“Deve-se afastar a orgulhosa ideia de ser justo por favor ou pretensa superioridade na oportunidade de atender a algum desconforto alheio. Seja justo pela própria necessidade de viver e sentir a dignidade em si. Seja justo por amor para que nunca restem dívidas e devedores para com as suas decisões. Ou não existirá justiça.” Fez uma pausa para citar uma das variantes da Lei Maior: ‘Farei aos outros apenas aquilo que gostaria que eles fizessem a mim.’”

“Qualquer atitude diferente desta ideia é pobre em amor. Logo, indigna por ser injusta.”

“Por isso o Quarto Portal é conhecido como o Portal da Dignidade. Somente entregando o que eu gostaria de receber me torno uma pessoa digna. Falo de todas as minhas relações, das mais importantes até às situações mais banais do cotidiano.”

“Sem amor restam somente interesses mesquinhos, exercício vis de poder mundano ou, pior, a asquerosa vingança. Tudo muito distante da justiça. E da dignidade.”

Fiquei um tempo sem dizer palavra. Era preciso arrumar as ideias na mente. Entregar a cada um o que lhe é de merecimento não é uma tarefa das mais fáceis, pois passa por descontruir ideias egoístas que sempre sustentaram um jeito ancestral de pensar. Comentei isso com o Velho. Ele balançou a cabeça em anuência e aprofundou a explicação: “A dificuldade é ainda maior. Todas as virtudes são compostas por trazerem contidas em si outras virtudes. A justiça é uma virtude de complexidade extrema por tornar indispensável a presença de muitas outras virtudes, sob pena de ela, a justiça, não existir. São elas, a responsabilidade, a honestidade, a sinceridade, a paciência, a firmeza e a sensatez.” Pedi para que ele falasse um pouquinho sobre cada uma delas. O Velho era um bom professor.

“A responsabilidade é a virtude que faz ao indivíduo entender a parte que lhe cabe em tudo o que acontece em sua vida, as suas dores e delícias. Ela afasta a sombra da vitimização e aproxima a luz da liberdade. A responsabilidade é a arte de desenhar o próprio do destino.”

“A honestidade é a virtude ligada à verdade nas relações com os outros. É a antítese da mentira, da fraude, da vantagem indevida e dos privilégios. A verdade está sempre ligada ao seu nível de consciência, o que exclui a mentira das relações, não necessariamente o erro. É estar de boa-fé no trato com os outros; é a retidão do discurso e das intenções. A honestidade é aliada da simplicidade por não admitir artifícios, dissimulações ou falta de transparência. Não basta apenas não mentir, há que se ter compromisso com a clareza. É a arte de viver pela verdade.”

“A sinceridade é a virtude ligada a verdade em relação a si mesmo. Trata da difícil tarefa de não enganar a si próprio. A sinceridade não negocia com a ilusão. A sinceridade ilumina as escolhas e são vitais ao processo de autoconhecimento. É a arte de viver com a verdade.”

“A prudência é a virtude que nos alerta dos perigos, mas também, e principalmente, das oportunidades surgidas. Ao contrário do que muitos acreditam, a prudência está mais ligada a coragem do que ao medo. Ela nos lembra que podemos fazer diferente e melhor a cada dia. A prudência nos avisa que longe das relações justas ficaremos distantes da dignidade. É a arte de viver sem esquecer do poder transformador do amor.”

“A paciência nos lembra que todos estamos em processo de aprendizado. Que tudo tem o seu momento e nos mostra a importância da tolerância para consigo e com os outros. A justiça não pode existir sem a paciência. A paciência é a arte de lidar com o tempo.

“A firmeza é a virtude que impõe limite ao erro e estabelece o alcance da tolerância. Assim como a tolerância afasta o rigor das relações, a firmeza impede o abuso nelas. É a arte da construção do respeito.”

“A sensatez é a virtude do equilíbrio. É a fronteira divisória entre o esperar e o agir; entre a paciência e a firmeza; entre o suficiente e o excesso. Ela harmoniza as minhas necessidades em relação à vida; de quanto menos precisar mais livre serei. Livre das sombras para discernir com luz. Isto torna a sensatez primordial na construção da justiça. A moderação é a semente da serenidade; é a arte da medida exata.”

“Todas essas que acabei de explicar são denominadas virtudes-meio, sem as quais não se consegue atingir a virtude-fim, a justiça.”

Tornamos a ficar em silêncio. Sim, o Velho não tinha condições de dizer se a minha decisão de excluir o Vasquez do curso havia sido justa. Era preciso um mergulho nas profundezas da consciência, longe das sombras, perto da luz da alma, para eu entender as motivações da minha decisão, para admitir se o que entreguei era o quanto eu pensava ser justo que me fosse entregue. Somente eu podia fazer isto. Eu tinha passado por uma situação parecida e ele agira comigo de maneira diferente do que eu fizera com ele. Não, a decisão dele não podia se constituir em dívida, pois a justiça não gera débito. Sim, as situações também não eram idênticas. De outro lado, as pessoas passam por experiências únicas em suas vidas. Isto cria dificuldades emocionais que muitas vezes não conseguimos entender pela incapacidade de sentir o que o outro sente. Era preciso um pouco de empatia; em empatia fala sobre humildade, compaixão, generosidade, virtudes típicas dos portais antecedentes. Empatia é uma bonita maneira de amar. Fui dormir com esta ideia.

Na manhã seguinte não restava qualquer dúvida. Procurei pelo Vasquez e lhe pedi desculpas. Admiti que eu tinha errado em exclui-lo do curso. Como o curso tinha a duração de uma semana, falei que talvez o meu novo entendimento tenha sido tardio, pois uma boa parte das aulas já restavam transcorridas. Lamentei por isto, falei que havia sido uma grande lição para mim e uma enorme perda para ele. O monge galego, famoso por seu temperamento nem sempre moderado, me olhou fixo nos olhos. Foram poucos, porém longos segundos. Em seguida, ele me ofereceu um sorriso sincero e abriu os braços para me receber em abraço. Disse que a minha atitude era valiosa e que não havia mais qualquer traço de ressentimento entre nós. Falou que é no exercício das decisões, entre erros e acertos, ora de um lado, ora do outro, que ampliamos a nossa consciência. As escolhas nem sempre são fáceis. Disse para eu não me deixar abater, pois as inesperadas horas vagas, por não estar no curso, servira para ler alguns livros cujas leituras ele vinha adiando há tempos. Acrescentou, ainda, que debatera as leituras com o Velho e que seus ganhos acabaram sendo enormes. Fiquei encantado com a sua grande compreensão. O episódio serviu para nos tornar amigos até hoje.

Serviu também para eu entender que conhecer um portal não significa já tê-lo atravessado. A distância é enorme; sei mais do que sou. O conhecimento me torna um aprendiz; somente a prática, em um dia distante, construirá o mestre.

Passou algum tempo para eu perceber que a maior lição sobre o Quarto Portal não tinha sido oferecida pelos preciosos conceitos que o Velho disponibilizara para mim sobre as virtudes que compõem a justiça, porém pelo monge galego por, em um único gesto, me oferecer a outra face de um conflito, a face que costumamos esquecer ou desconhecemos. A face da luz. A ideia de justiça existe para preparar o andarilho para um limiar bem mais complicado de atravessar pela dificuldade de entendimento, o Quinto Portal; o Portal do Perdão.

 

 

11 comments

Adélia Maria Milani julho 19, 2018 at 9:34 pm

Gratidão! ♡ ☆ ♡ ♡

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Romário Sales julho 20, 2018 at 11:25 pm

Obrigado pelo seu tempo!

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Alexssandra Finkler julho 21, 2018 at 9:35 pm

Texto incrível, como todos os outros. Nos leva a parar e pensar em nossos atos, erros e acertos, e, procurar a cada dia ser mais paciente e nos permitir buscar novos conhecimentos e ser flexível com nossas decisões.

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Marise dos Santos Gonçalves julho 21, 2018 at 10:27 pm

Gratidão!!!

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Joane julho 22, 2018 at 5:49 am

Gratidão 💗🌹

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Wllisses Thel agosto 3, 2018 at 11:01 am

Gratidão é muito pouco pra expressar o que estes textos têm feito na minha vida. Eles são meus auxílios diário em direção à luz! Não tenho palavras pra agradecer.

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Rose agosto 3, 2018 at 8:18 pm

“O perdão é uma das coisas mais libertadoras que alguém pode fazer. A falta de perdão é como uma pedra amarrada na perna de alguém, que a arrasta para o fundo do mar.

Se Deus perdoou os nossos pecados e se nós queremos ser parecidos com Deus, que motivos podemos ter para não perdoar alguém?

Se nós perdoarmos, receberemos perdão; essa é uma verdade que nos deve motivar. Se realmente compreendemos o que Jesus fez na cruz, o perdão deve fluir no nosso coração eternamente.” Om Shanti!!!
Gratidão Irmão das Estrelas.

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Jeff agosto 4, 2018 at 10:31 am

Gratidão Yoskhaz!!
Pérolas de Sabedoria!

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Helvia Dayrell Lopes Pires agosto 4, 2018 at 2:49 pm

Gratidão!🙏

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Dayse novembro 2, 2018 at 11:02 pm

Um bom livro

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Renata Ribeiro janeiro 15, 2019 at 11:19 am

Gratidão Irmão Andarilho!!!

Você é Amor/Luz e Luz /Amor
Aprende ensinando e Ensina aprendendo .

Adonai

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